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Os evangelhos proibidos

Os apócrifos são confiáveis como documentos históricos? Ou não passam de ficção?

Por Reinaldo José Lopes
Atualizado em 29 jan 2018, 19h37 - Publicado em 29 jan 2018, 19h24

Ninguém discute a enorme importância dos evangelhos apócrifos para entender as origens do cristianismo. Como vimos na reportagem que abre esta edição, esses textos deixam claro que, nos primeiros séculos cristãos, a diversidade era a norma, com a coexistência (não exatamente pacífica) das mais variadas crenças sobre a natureza de Jesus, o papel de Deus e a relação entre judaísmo e cristianismo, por exemplo.

A coisa fica mais incerta, no entanto, quando mudamos a pergunta: será que, além de retratar a diversidade de pensamento da(s) Igreja(s) primitiva(s), os apócrifos também trazem informações confiáveis sobre a vida de Jesus?

É claro que, em linhas gerais, a resposta é “depende”, justamente por causa da variedade de perspectivas representada pelas dezenas de narrativas não canônicas. Cada um desses textos foi composto em épocas e lugares diferentes, com públicos distintos em mente e mensagens teológicas próprias – o que também vale, obviamente, para os evangelhos do Novo Testamento “oficial”.

Mesmo assim, é possível apontar o que é consenso entre os especialistas no estudo do chamado “Jesus histórico” – ou seja, nos dados sobre a vida de Jesus que podemos extrair com segurança dos documentos antigos usando exclusivamente o método da pesquisa histórica, deixando de lado a fé.

Em primeiro lugar, quase todos os historiadores usam um critério meio óbvio, mas importante: quanto mais antigo o evangelho, mais confiável ele é, em linhas gerais. As histórias sobre Jesus tendiam a ficar mais espetaculares e fantasiosas com o passar do tempo. E, como muitos apócrifos foram escritos entre cem anos e vários séculos depois dos eventos que narram, essa nota de corte inicial, digamos, já elimina muitos deles.

Por isso, como você talvez já tenha imaginado, ninguém leva muito a sério os textos apócrifos sobre a infância de Jesus e a vida de Maria e José. E não é apenas pela grande quantidade de eventos miraculosos e assustadores no Evangelho da Infância de Tomé, por exemplo – embora, de brincadeira, o historiador John Meier, professor da Universidade Notre Dame (EUA) e autor da série de livros Um Judeu Marginal, compare o menino Jesus desse apócrifo a um personagem de filme de terror.

A questão é que o conteúdo dos evangelhos apócrifos da Infância indica que seus autores conheciam tanto o Evangelho de Mateus quanto o Evangelho de Lucas (os dois falam da infância de Jesus, cada um usando informações bem diferentes) e misturaram os dados presentes nesses textos canônicos, às vezes até copiando e colando trechos, para criar sua narrativa. Isso muito provavelmente quer dizer que eles não possuíam nenhuma informação independente sobre o menino Jesus.

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Dá para repetir mais ou menos o mesmo argumento para os apócrifos que versam sobre a morte e ressurreição de Cristo. Para o historiador irlandês John Dominic Crossan, professor aposentado da Universidade DePaul (EUA), uma exceção é o Evangelho de Pedro, que teria preservado boa parte do relato original sobre a Paixão de Cristo, o qual teria sido usado e modificado, mais tarde, pelos evangelistas canônicos.

Para Crossan, uma das pistas disso é que o Evangelho de Pedro retrata o povo judaico se arrependendo de ter instigado a morte de Jesus, o que seria um sinal de que a narrativa da Paixão contida nele teria sido escrita quando os cristãos, quase todos judeus nessa época, ainda tinham esperança de converter os outros israelitas. Pouca gente concorda com Crossan, no entanto – e é bom lembrar que, mesmo para ele, há poucos fatos históricos em qualquer uma das narrativas da Paixão, pois os apóstolos teriam fugido quando Jesus foi preso, impedindo que eles presenciassem o julgamento e a própria crucificação.

Ver para crer

(MarinaMariya/iStock)

Hoje, o Evangelho de Tomé é o principal texto apócrifo que, para uma quantidade considerável de pesquisadores, tem potencial para trazer informações relevantes sobre o Jesus histórico, em especial a respeito da forma original de seus ensinamentos, já que Tomé é um texto formado quase exclusivamente pelos chamados lôgia (singular: lôgion), os “ditos” ou “declarações” de Jesus. (Você pode conferir o texto integral desse evangelho nesta edição).

Aliás, foi essa estrutura de ditos que chamou, a princípio, a atenção dos especialistas, porque ela pareceu corroborar uma hipótese importante dos estudos bíblicos, a de que, nos primórdios do cristianismo, os lôgia de Cristo teriam sido reunidos num texto hoje perdido, o chamado documento Q (da palavra alemã Quelle, “fonte”). Esse documento teria servido de base para uma série de ditos de Jesus compartilhados pelo Evangelho de Mateus e pelo Evangelho de Lucas, explica Luiz Felipe Coimbra Ribeiro, professor de pós-graduação em história do cristianismo antigo da Universidade de Brasília (UnB) – ambos teriam usado Q como fonte.

Ninguém acha que o Evangelho de Tomé seja o documento perdido. Mas, para uma série de pesquisadores, a estrutura parecida com a de Q é um primeiro indício de que se trata de um texto bastante antigo, talvez do período em torno do ano 50, quando os cristãos ainda não tinham tido a ideia de escrever uma narrativa com começo, meio e fim sobre a morte de Jesus (o Evangelho de Marcos, considerado o canônico mais velho, teria sido escrito por volta do ano 65, para a maioria dos especialistas).

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Além disso, pesquisadores como John Dominic Crossan afirmam que a comparação entre a forma dos ditos no Evangelho de Tomé e a que se vê nos textos canônicos sugere que Tomé é o texto mais “primitivo” – os lôgia são mais simples, mais fáceis de lembrar e menos ligados a interpretações teológicas complicadas, o que indicaria que estão mais próximos da pregação oral de Jesus (o Nazareno, é bom lembrar, não deixou nada escrito).

Crossan e outros historiadores, partindo desse pressuposto, afirmam que as características originais dos ensinamentos originais de Cristo podem ser vistas no Evangelho de Tomé – e elas seriam bem diferentes do que se lê nos textos canônicos.

Em vez de estar preocupado com a chegada do Reino de Deus, com a ressurreição dos mortos e o Juízo Final, Jesus teria pregado um reino divino que já estaria presente caso os que o ouviam colocassem em prática sua defesa da justiça e da misericórdia. “Se vossos chefes vos disserem `Eis que o Reino está no céu, então as aves do céu hão de vos preceder no Reino. Se vos disserem `Está no mar, então os peixes do mar hão de vos preceder. Mas o Reino está dentro de vós e fora de vós. Quando conhecerdes a vós mesmos, então sereis conhecidos, e entendereis que sois filhos do Pai vivente”, afirma Jesus num dos trechos desse evangelho.

O americano John Meier é um dos grandes opositores dessa interpretação. Segundo ele, na passagem acima e em outras parecidas, a importância que Jesus dá ao autoconhecimento é sinal de que o Evangelho de Tomé é uma obra ligada ao gnosticismo, na qual a salvação depende da busca pelo conhecimento secreto e esotérico. Como as correntes gnósticas do cristianismo, para ele, só apareceram tardiamente, a partir do século 2, não faz sentido enxergar um texto com essa orientação como primitivo. É o tipo de discussão que deve continuar por um bom tempo antes que surja um consenso.

 

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