Os garçons do deus Sol
Os astecas notabilizaram-se por realizar sacrifícios humanos em honra ao Sol. O objetivo: garantir a continuidade da vida na Terra.
Rosângela Almeida
Os astecas habitavam a região onde hoje é o México e ali fundaram a importante cidade de Tenochtitlán, atual Cidade do México. Sua cultura floresceu entre os séculos 14 e 16. Eles desenvolveram diversas técnicas agrícolas, tinham um artesanato riquíssimo e eram ótimos em matemática, astronomia e arquitetatura. Mas o forte deles mesmo era a arte da guerra, essencial para cumprir seu compromisso com o deus Huitzilopochli, um guerreiro que simbolizava o Sol e exigia sacrifícios em troca da sobrevivência da humanidade.
Para os astecas, o Sol morria todas as noites e renascia no dia seguinte para combater as estrelas e a Lua com seu facho de luz. À noite, Huitzilopochli morria e retornava à sua mãe, a Terra, para recobrar suas energias. Para renascer com a força necessária para empreender sua luta diária, precisava ser alimentado com a seiva da vida – o sangue humano. Os astecas acreditavam ter sido escolhidos para servir de garçons para o deus Sol.
“A seiva vital de animais não poderia dar a Huitzilopochli a vida necessária para defender o universo e a humanidade”, diz Ubiratan D’Ambrósio, professor dos programas de pós-graduação em Educação Matemática e em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Por isso, os astecas precisavam de vítimas humanas, que obtinham em guerras e em trocas rituais com comunidades subjugadas. “Prisioneiros de todas as guerras eram conduzidos a Tenochtitlán para a oferenda”, conta D’Ambrósio. Os sacrifícios ocorriam nos templos e em praça pública. Eles abriam o peito da vítima com uma faca de calcedônia e removiam o coração com as mãos para oferecer a Huitzilopochli. O deus Sol retribuía prometendo-lhes o domínio do mundo.
Não se sabe ao certo quantas pessoas foram mortas nesses ritos. Alguns cronistas relatam que, somente para comemorar a ascensão do líder Ahuitzotl ao trono, em 1486, nada menos do que 80 mil prisioneiros foram sacrificados, seus corações retirados e seus corpos servidos num banquete ritual. Tudo isso parece ser uma crueldade atroz, mas não se pode julgar o comportamento dos astecas à luz dos valores de uma cultura completamente difererente da deles. “É importante lembrar que não era sacrifício pura e simplesmente, mas sim parte de uma estratégia de sobrevivência dentro de uma crença e útil como instrumento político. Não se pode demonizar os povos pré-colombianos”, afirma D’Ambrósio.
Os astecas não foram os únicos a sacrificar vidas humanas como uma tradição cultural e religiosa. Segundo D’Ambrósio, o conceito de deuses que encontram sua vitalidade no sangue humano é comum em todas as culturas pré-colombianas. “Havia muitas divindades semelhantes”, diz ele. Por esse e outros motivos, diversas civilizações praticavam esses ritos (leia quadro na próxima página).
Esporte radical
Na falta de guerras, os astecas promoviam competições nos quais os perdedores eram mortos e ofertados a Huitzilopochli. O antropólogo David Stuart, da Universidade de Harvard, relaciona o sacrifício humano ao esporte. Segundo ele, havia uma simbologia importante no Jogo de Pelota, ou Tlachtli. A regra era clara: duas equipes enfrentavam-se em um campo dividido em dois, em formato de “I” deitado, utilizando uma bola feita de lava de vulcão. Parece nosso futebol? Sim, mas a redonda só podia ser rebatida com o antebraço, o ombro, as costas e os glúteos. Os jogadores atiravam-se ao chão para tocá-la e fazer com que passasse por dentro de um arco no alto dos monumentos. Os membros do time perdedor eram sacrificados.
O Jogo de Pelota originou algumas modalidades contemporâneas e ainda é praticado no México, com algumas mudanças nas regras – e os derrotados não têm mais um fim tão trágico como antigamente.
Mas, ao que parece, os astecas gostavam mesmo era de sacrificar os forasteiros. Há pouco tempo foram encontrados centenas de esqueletos no sítio arqueológico de Zultepec, perto da Cidade do México. Os restos indicaram que os astecas haviam capturado, sacrificado e comido parte dos corpos de homens, mulheres e crianças que viajavam numa caravana a serviço das forças invasoras espanholas, em 1520.
A descoberta é um indício de que nem todo o povo asteca estava feliz com a chegada dos europeus, liderados por Fernando Cortés. Até então, os livros de história registravam que o imperador Montezuma II havia dado boas-vindas aos “cavaleiros de pele branca”, acreditando serem deuses astecas, retornando ao país. “Este é o primeiro lugar a fornecer tantas evidências de resistência à conquista. Mostra que nem tudo foi submissão”, declarou o arqueólogo Enrique Martinez, que chefiou a escavação. Especula-se que os viajantes foram feitos prisioneiros e colocados em jaulas. Todos os dias, sacerdotes escolhiam alguns, punham sobre uma pedra e cortavam fora seus corações, em oferenda religiosa. As escavações indicaram também que sacerdotes e outros líderes comiam os corações crus dos prisioneiros e cozinhavam a carne dos braços e das pernas, o que ficou comprovado pelas marcas de facas e dentes nos ossos. Algumas mulheres grávidas tiveram seus fetos apunhalados ainda no ventre.
Ao tomar conhecimento do massacre, Cortés enviou um exército para exterminar os astecas de Zultepec, que jogaram os pertences das vítimas dentro de poços, o que ajudou a preservar botões, jóias e outros objetos. “Eles ocultaram as provas. Graças a isso, pudemos descobrir um capítulo desconhecido na história da conquista do México”, afirmou Martinez.
Há quem acredite que as chacinas tenham contribuído para a queda do império asteca, já que os povos inimigos se aliaram a Cortés, facilitando a entrada dos europeus no México. Mas, para D’Ambrósio, a explicação é outra: “As matanças não são exclusivas dos astecas. O apoio que Cortés recebeu não foi uma revolta contra essas práticas, pois os povos que o apoiaram tinham uma religião semelhante. O apoio foi pura estratégia na luta pelo poder”, afirma. “A esperança era que, com a derrota dos astecas, esses povos tomassem o poder. Essa esperança foi frustrada por algo muito pior, o império espanhol.”
Para saber mais
LIVRO
A Civilização Asteca, Jacques Soustelle, Jorge Zahar, 1987
O livro baseia-se em documentações históricas e arqueológicas e é rico em mapas e ilustrações.
Ritual comum
Há relatos de sacrifícios humanos praticados por diversos povos
Sacrifícios humanos ocorreram em quase todo o mundo. Um exemplo clássico é o do cristianismo, em que o sacrifício de Jesus serviu para a purificação dos pecados da humanidade.
Na Escandinávia, há relatos de que o povo nórdico matava em nome do deus Odin, enquanto os reis suecos sacrificavam escravos homens, a cada nono ano, para serem ofertados durante o solstício do inverno.
Na cidade de Cnossos, em Creta, foram encontrados inúmeros corpos de crianças, sugerindo a chacina para oferenda e consumo. Os fenícios tinham religião politeísta, com deuses que também exigiam sacrifícios humanos. Além dos astecas, outros povos pré-colombianos, como os maias e os incas, realizavam rituais de mutilação e sacrifício humano, numa tentativa de trazer prosperidade a seu povo.
Na Polinésia, quando o líder dos nativos morria, seu sucessor era escolhido num ritual que envolvia mortes.
Na Argentina, a antiga cultura condorhuasi realizava violentos rituais, utilizando alucinógenos para os sacrifícios humanos.Alguns tipos de sacrifícios persistem ainda hoje em certas religiões na África do Sul. Nesse caso, os rituais não são de cunho religioso, mas para fins supostamente medicinais: pessoas são mortas e mutiladas para que partes do corpo sejam adicionadas a fórmulas de remédios.