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Roda da fortuna

O progresso humano sempre girou em torno dessa peça que só parece simples porque existe é o mais fundamental dos inventos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h10 - Publicado em 31 ago 1990, 22h00

Luiz Guilherme Duarte

Num trecho de linha perto da cidade francesa de Tours, a sudoeste de Paris, apenas um zunido indica a passagem de um TGV (trem a grande velocidade), com suas três centenas de passageiros e suas sessenta rodas de aço. Velocidade média: 400 quilômetros por hora.

Numa estrada de terra cheia de sulcos nos arredores da cidade indiana de Ludhiãna, ao sul do Himalaia, as duas rodas de madeira de um carro de bois rangem na longa viagem de seu condutor de volta no campo. Velocidade média: 5 quilômetros por hora.

No Estado americano da Califórnia, um homem vai trabalhar a bordo de um automóvel equipado com computadores, numa experiência destinada a indicar a cada momento a rota menos impedida entre as diversas vias expressas da região. Velocidade média: 50 quilômetros por hora.

Mais depressa, mais devagar, zilhões de rodas rodam o tempo todo no mundo inteiro, transformando em movimento a atividade humana. Um dos principais indicadores do progresso material de um país é, de fato, a facilidade e a velocidade com que seus habitantes podem se transportar a si próprios e os produtos de seu trabalho. Em outras palavras: quantas rodas esse país faz circular e com qual rapidez. No Brasil, onde o sistema de transportes se baseia em estradas de rodagem, havia em 1986 (últimos dados disponíveis), mais de 13 milhões de veículos motorizados, que se deslocavam por 1,4 milhão de quilômetros de pistas. Pouco, perto dos 140 milhões de veículos e dos 6,5 milhões de quilômetros de estradas dos Estados Unidos, que ainda por cima contam com extensa malha ferroviária.

A diferença que a roda — o invento fundamental da história para o destino humano — é ao mesmo tempo evidente e incalculável. Mas um pouco de aritmética sempre ajuda. Sobre os próprios pés, e nada mais, o homem percorre num dia de viagem cerca de 30 quilômetros. E a carga máxima que pode levar às costas em qualquer distância é de aproximadamente 40 quilos. Com a domesticação das primeiras bestas de carga, por volta do quinto milênio antes de Cristo, a capacidade de carga triplicou. Depois, ao transferir o peso do lombo dos bois para um trenó — uma tosca plataforma com pesados patins de madeira —, o homem conseguiu transportar de uma só tacada mais de 1 200 quilos. Acredita-se que os egípcios, estranhamente um dos últimos povos a ingressar na era da roda, usaram trenós sobre rolos giratórios feitos de troncos de árvores para mover as pedras das pirâmides, que circularam por algumas das primeiras estradas conhecidas. Ao que parece, então, algum súdito do faraó teve a idéia genial de substituir os paus roliços por um eixo fixo, em cujas extremidades se colocaram discos de madeira.

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Na verdade, a história da invenção da primeira roda é até hoje motivo de discussão entre os historiadores. Alguns sustentam que essa peça, de uma simplicidade a toda prova, mas que se manifesta só depois que se chega a ela, como a solução de certos enigmas, foi a primeira criação humana realmente original, que não se inspirou em algum modelo oferecido pela natureza. Outros, no entanto, lembram que uma das referências fundamentais do homem primitivo era o disco solar parecendo rodar em volta da Terra. Provavelmente nunca se saberá a verdade. “Por serem feitas de madeira, as rodas mais antigas se deterioraram totalmente, destruindo qualquer pista esclarecedora”, observa Shozo Motoyama, diretor do Centro de História da Ciência da Universidade de São Paulo. O óbvio é que, sem a roda, o homem não iria muito longe. Afinal, as três fontes de energia utilizadas na Antigüidade (a animal, a água e o vento) eram todas exploradas por meio dessa singela peça.

As sucessivas transformações dos veículos sobre rodas também multiplicaram a rapidez e a capacidade de transporte. De volta à aritmética: valendo-se, por exemplo, de um carrinho de mão, criado na China por volta do ano 200 do calendário ocidental, o homem passou a levar de três a sete vezes mais carga do que seu antepassado sobre os ombros. Com uma bicicleta, surgida na França em 1645, deslocou-se até três vezes mais depressa do que se dependesse apenas das próprias pernas. Um documento do século V já relatava, maravilhado: “Com a caixa de rodas um homem pode carregar seu suprimento anual de comida e mesmo após 20 milhas não se sente cansado”. Além de revolucionar os transportes, a roda possibilitou outro grande salto tecnológico—o movimento controlado de rotação, tornando-se parte vital em quase todas as engrenagens.

Os discos de moldagem do barro, cuja origem se confunde com a das rodas de veículos, podem ter sido as primeiras máquinas a utilizar o movimento giratório. Eram bastante simples—uma superfície horizontal, sobre a qual se colocava o barro, e um eixo para ser girado com uma das mãos, deixando a outra livre para moldar a peça. Mas já ofereciam alguns dos incontáveis benefícios da mecanização do trabalho. No século XIV, em várias partes da Europa, apareceram as rocas de fiar (uma roda com agulhas, utilizada para tecer), como aquela em que a Bela Adormecida dos contos de fada espetou o dedo. Desde então, novos engenhos baseados no mesmo princípio, cada vez mais complexos, não pararam de surgir. Aproveitando a descoberta de que uma roda grande leva mais tempo do que outra menor para dar uma volta completa, o homem construiu relógios com rodas dentadas de tamanhos diferentes, engrenadas de tal forma que a menor andasse mais rápido, criando a relação de tempo entre os ponteiros. E os teares rotativos ajudaram a tecer na Inglaterra a Revolução Industrial.

Rodas e revoluções andam juntas há muitíssimo tempo. Numa era de colossais conquistas tecnológicas, entre 5 000 e 8 000 anos atrás, na faixa de países semi- áridos entre os rios Nilo, na África, e Ganges, na Ásia, o homem aprendeu a usar a força do boi e dos ventos, inventou o arado, o barco a vela, descobriu os processos de fundição de metais, criou um calendário solar — mas, antes de tudo, construiu um carro de rodas. “O estágio do progresso naquela época já gerava excedentes de produção para serem trocados por outros, de outros lugares”, explica o professor Motoyama, da USP. “Em função dessas primeiras necessidade comerciais surgiu a roda.” O vestígio mais antigo do uso da roda em veículos é o desenho de uma carroça numa placa de argila, encontrada na Suméria (Mesopotâmia), datando de aproximadamente 3500 a. C. Ao que tudo indica, tratava-se de um carro fúnebre de rodas sólidas compostas, isto é, duas tábuas arredondadas presas de ambos os lados de uma tábua central, furada para se encaixar na ponta de um eixo de madeira.

Aparentemente, os sumérios descobriram que algo tão óbvio como a roda não tinha uma fórmula óbvia—como aproveitar uma fatia de um tronco—, pois uma peça feita dessa forma logo se racharia nos frágeis veios da madeira. Superada essa dificuldade, puxados por bois, os veículos ganharam usos práticos, espalhando-se pelo mundo. Foi só o começo: ainda hoje a roda continua a ser aperfeiçoada, ficando difícil imaginar tanto que os modelos atuais sejam definitivos como o dia em que o próprio instrumento se torne obsoleto. Há poucos meses, uma empresa da Califórnia apresentou a mais recente palavra em matéria de rodas de bicicleta, um modelo desenhado por supercomputadores de modo a ter a melhor aerodinâmica possível. com três aros grossos e resistentes, feitos de compostos de fibra de carbono, resina epóxi. kevlar e alumínio. As rodas tradicionais consistem em vários aros finos, os quais, embora aerodinâmicos, se deformam facilmente. Nos anos 80, discos sólidos feitos de kevlar pareciam ser a solução, mas logo se mostraram difíceis de controlar sob o efeito de ventos laterais.

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A roda, portanto, está sempre sendo reinventada. A primeira mudança no projeto original atribuído aos sumérios ocorreu por volta do ano 2000 a.C., quando apareceu uma roda completamente nova, concebida mais para a rapidez do cavalo do que para a força do boi. Com raios em lugar da estrutura maciça, ela rodou pela primeira vez no carro de guerra dos povos indo- europeus—uma pequena plataforma sobre duas rodas, atrelada a um cavalo. Favorecidos pela velocidade dos veículos seus condutores conquistaram facilmente os povos do Oriente Médio, que, logo adotaram a novidade. Egípcios, gregos e romanos, sucessivamente, souberam reinventar a roda, abrindo largos espaços para ela em seu cotidiano e na sua civilização. Para conseguir um desgaste uniforme em toda a volta da roda, revestiram-na pela primeira vez com um aro, que podia ser feito ou de uma peça única de madeira curvada com vapor ou de vários segmentos emendados

Nos Jogos Olímpicos da Grécia clássica, as competições de carros com rodas desse tipo eram o esporte preferido dos ricos e, com certeza, a modalidade esportiva mais dispendiosa da Antigüidade. Mais tarde, em Roma, a grande atração, além dos gladiadores, eram as corridas de bigas (outra versão dos carros indo-europeus de muitos séculos atrás). Os celtas, por sua vez, acrescentariam importantes avanços técnicos aos carros romanos. Seus veículos foram os primeiros a ter eixos dianteiros oscilantes, capazes de virar para os lados nas curvas. A fim de reduzir o atrito com o eixo, inventou-se uma peça intermediária (o mancal), com rolamentos internos sobre os quais a roda passava a rolar mais suavemente. Um aro de ferro com diâmetro pouco menor do que a estrutura de madeira era dilatado para revestir a roda, unindo o conjunto de raios e tornando a peça mais resistente. Calcula-se que no ano 200 os robustos carros romanos podiam percorrer num dia bons 150 quilômetros, dos 80 000 da rede de estradas nos domínios do Império.

O que ainda atrasava as viagens eram as freqüentes paradas necessárias para substituir as parelhas, já que os animais se cansavam rapidamente devido ao feitio dos arreios usados. Só no século IX, arreios mais eficientes permitiriam ao animal colocar toda a sua força nas tiras de couro que puxavam as carroças. O Renascimento, no século XV, fez surgir uma nova linhagem de veículos de tração animal, cujos descendentes povoariam os caminhos do mundo até os tempos modernos, com nomes de nostálgico sabor: os carros de carga Conestoga, os rápidos cabriolés, as diligências Concord e as charretes de marcha mais suave, além das belas vitórias, aranhas, seges, caleças, carriolas, tílburis e landolés. Só não havia como fazer uma parelha correr mais depressa, mesmo nas estradas revestidas de serragem de saibro.

Ainda em 1857, as famosas diligências do Velho Oeste levavam 25 dias de viagem, dia e noite, para vencer os quase 3 000 quilômetros entre Saint Louis, no Missouri, e San Francisco, na Califórnia. Com a disseminação das locomotivas a vapor, em uso desde o inicio do século, as diligências rodaram inevitavelmente em direção aos museus. Em 1904, acabou a última linha de diligências nos Estados Unidos. A força do vapor reescrevia o papel da roda. Antes, sua função básica tinha sido a de um dispositivo passivo para reduzir o atrito entre a carga e a superfície do terreno. Mas, quando se engrena uma máquina para transmitir força às próprias rodas, estas se tornam alavancas que efetivamente conduzem o veículo que contém a carga. As primeiras locomotivas não passavam, porém, de carroças sobre trilhos e, assim, mantinham as mesmas rodas de madeira. Não demorou muito até se descobrirem as vantagens de uma sólida roda de ferro.

Ainda uma vez a aritmética: quando uma roda é tão redonda e dura como a de um vagão e se move por uma superfície tão lisa e dura como um trilho, 4 quilos de esforço mantêm facilmente em movimento mais de 1 200 quilos de carga. Na década de 1870, os arames empregados nos raios de bicicleta foram a grande novidade, seguidos, já na década seguinte, pelo aro pneumático, criado ainda em 1847 por um anônimo inglês fabricante de carruagens. Sua idéia consistia em um aro de borracha cheio de ar com uma cobertura de couro, quase o mesmo conjunto que faria entrar para a História o veterinário inglês John Boyd Dunlop (1849-1921). Os primeiros automóveis adotaram desde cedo esse tipo de revestimento para as rodas. Alguns anos passariam antes que seus aros de madeira ou de arame fossem trocados por uma peça única de ferro fundido ou de aço estampado.

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Hoje, rodas e veículos diversificaram-se bastante, embora não se diferenciem no fundamental. A idade de ouro da roda, no entanto, parece que acabou. “É só listar as conquistas tecnológicas das pesquisas de ponta para ver que a roda não faz parte de nenhuma delas”, aponta o professor Motoyama. De fato, o estágio da roda e da mecanização foi superado pela eletrônica, que entre tantas outras coisas tornou dispensáveis muitos deslocamentos de pessoas. É claro que a roda que transportou a humanidade até aqui jamais será aposentada, embora os símbolos mais vistosos do avanço tecnológico passem já longe dela. Afinal, o carro de bois que se arrasta a 5 quilômetros por hora nas poeirentas estradas indianas faz parte de uma paisagem que inclui usinas atômicas.

 

 

Para saber mais:

Colosso de rodas

(SUPER número 2,ano 4)

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Onde a moda não rolou

Nem todos os povos da Antigüidade viram na roda uma boa idéia. Para os egípcios, por exemplo, ela não interessava. O rio Nilo lhes oferecia uma eficiente via de transporte e os trenós deslizavam com maior facilidade nas areias do deserto, onde as rodas costumavam afundar. Somente no século XVII a.C., por influência dos povos indo- europeus que alcançaram o Mediterrâneo, é que os primeiros coches egípcios com rodas e cavalos começaram a se tornar comuns. Muito antes disso e muito longe dali, na região da Lapônia, no norte do que é atualmente a Finlândia, trenós deslizavam há 7 000 anos — como ainda hoje.

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Os habitantes dessa inóspita parte do globo aprenderam com seus ancestrais que a roda não é o melhor meio para carregar suprimentos sobre a tundra escorregadia ou através de terrenos pantanosos no verão e congelados no inverno. Os habitantes da América pré-colombiana tampouco criaram veículos com rodas, embora haja notícia de seu uso em brinquedos. Para alguns historiadores, a inexistência de mamíferos domesticados aptos para a tração, explica essa lacuna. Mas os chineses não consideraram que isso fosse impedimento— construíram carros leves para serem puxados por homens.

 

 

 

 

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