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Seja humano, seja herói

O heroísmo está dentro de nós ainda hoje. Qualquer ser humano que vá além de seus limites está se reconectando com as lendas e mitos do passado. Um exemplo atual? Nelson Mandela, que preferiu permanecer preso a renunciar à sua luta pela igualdade racial na África do Sul. E ganhou a parada.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 19 mar 2011, 22h00

Leonardo Mourão

Você pode até nunca ter percebido, mas estamos todo o tempo cercados por heróis e heroínas. Melhor ainda: somos, todos nós, heróis e heroínas, seres mitológicos que, no momento certo, podem corporificar sua identidade secreta e fazer ações… heroicas. Isso acontece porque nós, humanos, trazemos impressos na base da nossa mente modelos de comportamento e formas de nos relacionar com o mundo que são chamados de arquétipos na psicologia analítica, escola fundada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Os arquétipos confundem-se com a mitologia – e o herói é o mito mais conhecido e cultivado por todas as culturas.

Pode-se comparar os arquétipos àqueles avatares existentes nos videogames. Você escolhe um personagem básico e acrescenta a ele armas, roupas, poderes e cores. Mas a sua característica inicial – que determina seu comportamento e objetivos – permanecerá a mesma. Da mesma maneira, os arquétipos se repetem em todas as sociedades humanas.

A Grande Mãe, que nos acolhe, nos alimenta e protege, é um deles. Há 25 mil anos, ela já era representada em uma pequena estátua de um ser do sexo feminino, com seios, nádegas e coxas abundantes, batizada Vênus de Willendorf pelos arqueólogos que a desenterraram na Áustria. O mesmo arquétipo poderia ser registrado pelo nosso subconsciente na pessoa, digamos, maternal e ameigada da apresentadora Hebe Camargo.

Seres que desafiam o tempo e não envelhecem nunca: os deuses da mitologia grega Dionísio, que apresentou o vinho à humanidade, e Eros, deus do amor, são antepassados diretos do forever young Peter Pan, criado em 1911 pelo escocês James Barrie. O mito foi perseguido, de maneira obsessiva, pelo cantor Michael Jackson, que, como seu herói adolescente, morava na Terra do Nunca e também gostava da companhia de crianças. Já se fosse apagado da nossa mente de um dia para outro o mito do herói solitário, que toma para si a tarefa de enfrentar inimigos muito mais poderosos para salvar o mundo do extermínio, os estúdios de Hollywood iriam à falência em uma semana. Mas tais mitos estão firmes e fortes: são os Pelés, os Ronaldos, os bombeiros e os presidentes que prometem dedicar sua vida a defender seus concidadãos e livrá-los dos horrores da miséria. E o mito que nos aterroriza, o grande cataclismo final que um dia nos transformará em pó e que se disfarça no dilúvio enfrentado por Noé, na guerra nuclear, em um possível apagão global da internet, tsunami, gripe suína, aquecimento global, 2012…

“O ser humano é essencialmente religioso”, afirma a doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP, Malena Segura Contrera. “E mesmo hoje, quando o mundo parece ter deixado de lado toda a sua espiritualidade, ainda criamos e cultuamos nossos mitos.” Certamente ninguém espera ver homens musculosos vestidos com peles de leões perseguindo dragões pelas avenidas da cidade ou alguém com asas nos tornozelos voando pelos corredores de um shopping.

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Esses arquétipos nos aparecem hoje, diz a professora, como alguém que enriquece de maneira inimaginável, como Bill Gates, criador do império Microsoft, que teve início em uma garagem; ou Mark Zuckerberg, fundador, aos 17 anos, do website de relacionamento social Facebook , hoje ziliardário. As deusas da beleza são Giseles Bündchens, magras e lindas, que saíram de pequenas cidades rurais para as passarelas. As poderosas divindades são cantores que batem recordes de acesso no YouTube. “Continuamos a encontrar nossos objetos de culto. Não importa se eles são assim tão diferentes dos mitos e heróis da Grécia e da Roma antiga, ainda traduzem arquétipos eternos do ser humano”, diz Malena Contrera.


Rebeldes com causa

Todo herói mitológico é, por definição, um rebelde, um subversivo. Alguém, enfim, que desafia a lógica natural das coisas e consegue impor sua ação e vontade contra um governo autoritário, um exército inimigo, um animal em fúria ou a falta de dinheiro. Por essa definição, Nelson Mandela, por exemplo, pode ser considerado um herói. E dos bons. Quantos entre nós seriam capazes, depois de passar 27 anos em uma prisão, de recusar uma proposta de liberdade porque ela estava condicionada a desistir da sua luta pelo fim da discriminação contra os negros? Mandela preferiu continuar preso, mas a irresistível força da sua vontade iria garantir a sua liberdade pouco tempo depois. Eleito o primeiro presidente negro da África do Sul, seria a figura-chave para o desmanche do apartheid, um regime cruel que por cerca de 50 anos proibiu os negros de morarem nos mesmos bairros que os brancos, estudarem nas mesmas escolas e até mesmo beberem a mesma cerveja ou serem enterrados nos mesmos cemitérios. Eram cidadãos de outra categoria.

“Sim, todo herói mitológico é um rebelde disposto a enfrentar perigos e obstáculos que as pessoas comuns imaginam instransponíveis”, diz a pesquisadora Ana Figueiredo, membro do Instituto Joseph Campbell do Brasil. “Mas ninguém será visto de fato como um herói a não ser que sua ação traga benefícios para a comunidade.” Pode parecer um paradoxo. Afinal, acabamos de dizer que os heróis que temos hoje são aqueles que se sobressaem no mercado de ações, ganham milhões jogando futebol, nos fascinam por suas conquistas amorosas ou pela vida iluminada pelos flashes dos paparazzi.

Bem, há aí uma sutileza. Ficamos mesmerizados pelas pessoas que consideramos um grande sucesso e que têm seus movimentos acompanhados freneticamente por toda a mídia, mas eles só serão catalogados como heróis em nossa mente se, de fato, suas ações tiverem essa relevância à qual a pesquisadora Ana Figueiredo se refere. É bem provável que 100% dos leitores desta publicação saibam bem quem foi Ernesto Che Guevara. Em 1967, o mesmo ano em que foi assassinado em uma emboscada na Bolívia, o Brasil conquistaria pela primeira vez, no concurso Miss Universo realizado em Miami Beach, nos EUA, o 1º lugar na categoria trajes típicos. A representante da beleza nacional, a paulista Carmem Sílvia de Barros Ramasco, fez furor do Oiapoque ao Chuí. Carmem Sílvia foi capa de todos jornais e revistas brasileiros. Sua coroação, no Maracanãzinho, no Rio, foi transmitida ao vivo (e em preto e branco) pela TV Tupi. Meses depois, ela voltaria ao noticiário ao renunciar ao cetro da mais bela do Brasil para casar-se. As moças suspiravam. Hoje, quantos se lembram de Carmem Sílvia? Ou dos concursos de miss? Mas o Che, morto a tiros na Bolívia há 43 anos, está mais vivo do que nunca.

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Independentemente de concordarmos ou não com a proposta ideológica de Che Guevara, ele será sempre lembrado por se encaixar à perfeição no perfil do herói. O mitologista americano, Joseph Campbell, explica que o heroísmo está na ação heroica, e não no julgamento que possamos fazer da motivação do herói. “O heroísmo tem um objetivo moral, o de salvar um povo, ou uma pessoa, ou defender uma ideia”, explicou Joseph Campbell. “O herói se sacrifica por algo, aí está a moralidade da coisa.”

Beneficiar o próximo, ajudar a comunidade, salvar a Terra é a fórmula secreta que permite que nós, cidadãos comuns e sem superpoderes, também possamos ser heróis. Temos isso dentro de nós. “Mesmo hoje, com todos games, internet e TV a cabo, se você perguntar a um garoto o que ele quer ser na vida, ele responderá: quero ser bombeiro”, diz a pesquisadora Ana Figueiredo. “O que ele está dizendo com isso é que quer correr riscos pelos outros, fazer diferença no mundo em que vive.”

Os heróis e as heroínas estão dentro de nós e à nossa volta. Sua legião é formada na maior parte das vezes de anônimos. Quem já não sonhou em fazer parte dos Médicos Sem Fronteiras? A ideia de ir para um país assolado pela guerra ou pela fome ajudar enfermos toca em alguma coisa dentro de nós. “Todos nós podemos ser heróis”, diz Malena Contrera, que é também professora no mestrado em comunicação da Unip. “E atingimos esse estado de acordo com o que decidimos fazer no nosso dia a dia, ou seja, ser herói é o que você faz e não quem você é.” E, para transcendermos a visão limitada que temos de nós mesmos, não é preciso ir longe.

Quando nos oferecemos para realizar uma tarefa que parece desafiadora, estamos extrapolando os limites que acreditamos ter. Se nos engajamos em uma nova atitude para salvar o planeta, em um barco que enfrenta caçadores de baleia japoneses ou escolhendo um produto no supermercado que tenha menos impacto sobre o planeta, estamos mudando nosso mundo exterior e interior. “O verdadeiro herói não espera uma recompensa da sociedade”, diz Ana Figueiredo. “Não existe um herói que almeje ganhar dinheiro, fama e reconhecimento. O que ele quer é cuidar da sociedade, como fazem os heróis mitológicos.” E completa: “É essa a grande função dos mitos, colocar o ser humano, bater nas suas costas e dizer: agora vá em frente e cuide de todos nós.”

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Você pode ser um herói
Cada desafio que você encara e tem por objetivo o bem comum (não só o seu) é um ato de heroísmo. Essa é uma lição dos mitos.

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