Willian Vieira
Ele cresceu entre a rua e a Febem. Foi preso quando adulto. E entre as paredes do Juizado de Menores e da casa de detenção começou a estudar. Hoje, Roberto da Silva é professor da USP, especialista em educação e direitos humanos
Roberto da Silva tinha dois anos quando foi morar na rua pela primeira vez. Foi com a mãe e os 3 irmãos – deixaram São José dos Campos (SP), rumo a São Paulo, sem ter aonde ir. A mãe acabou internada em um instituto psiquiátrico. As crianças foram parar na antiga Febem, cada uma numa unidade diferente. Sofrida, a memória foi se apagando. Um dia, aos 7 anos, quando a mãe finalmente o encontrou num orfanato, o pequeno Roberto, que mal lembrava o que era ter mãe, teve tanto medo da mulher que correu para o meio do mato. Nunca mais a veria. Assim começava uma longa luta para trilhar o caminho oposto ao de sua família. Uma história que Silva transformaria em exemplo.
Na primeira vez que deixou a Febem para ganhar a rua, aos 14 anos, Silva foi trabalhar no Juizado de Menores de São Paulo, onde teve acesso ao seu arquivo. “Foi nessa ocasião que tive consciência da minha situação”, diz Silva.
“Percebi que não tinha sido abandonado por meus pais, mas que fora confiscado pelo Estado. Isso deu uma indignação… uma indignação que viraria a palavra-chave da minha vida.” Não à toa. “Tenho 3 datas e 3 cidades de nascimento, todas registradas oficialmente pelo estado”, diz. Não reencontrei minha mãe, nem meu pai, nem ninguém que pudesse dizer, de viva voz, quem sou, onde, quando e como nasci.” Oficialmente, portanto, ele é Roberto da Silva, nascido em Garça, interior de São Paulo, no dia 31 de agosto de 1957.
Silva virou adolescente entre as paredes da Febem, onde dormia e estudava. O resto do tempo passava com os meninos na rua, seja tomando banho no chafariz recém-inaugurado da Praça da Sé, seja perambulando entre grupos de rapazes no centro paulistano. Ele até conseguiria um emprego como office-boy, que lhe daria algum dinheiro para pensar num futuro – mas que duraria pouco.
Beirando a maioridade, foi mandado embora da Febem e voltou a morar na rua. Viveu entre a Boca do Lixo, área marcada pelas drogas e prostituição no centro da cidade, onde vendia pequenos objetos de furto para sobreviver, e os Jardins, área de luxo onde dormia. Quando era expulso, acabava no Parque do Ibirapuera. Em 4 anos passados na rua, Silva foi parar na delegacia mais de 50 vezes. Na 3a vez que passou pela Casa de Detenção, ficou 7 anos.
Nem tudo, claro, estava perdido para alguém tão indignado. Na cadeia, Silva estudaria por conta própria livros de direito, mas não somente. Escrevia para editoras pedindo livros e “magicamente” os recebia, de graça. Assim leu os 60 volumes da coleção “Os Pensadores” atrás das grades, um depois do outro, com a mesma sede com que descortinou os arquivos da instituição prisional, ao trabalhar no setor administrativo. Foi quando compreendeu como funcionam as estatísticas criminais.
“Daí vem minha veia de pesquisador”, brinca. Mais que isso: ao reencontrar a maior parte dos colegas de Febem na prisão, viu como a estrutura da punição faz com que as mesmas pessoas sejam encarceradas do berço à idade adulta.
O insight teve seu preço. Silva conta que passou a ser perseguido pela polícia por conta de suas ideias: modificar o sistema prisional, dar voz aos presos, questionar o Estado. Ao sair da prisão, mudou de estado. No Mato Grosso, voltou a estudar, terminou o curso supletivo e entrou para a Universidade Federal do Mato Grosso, onde se formou em pedagogia. De volta a São Paulo com um diploma na mão, pôde, finalmente, continuar o projeto pessoal.
Entrou para a USP, onde seu projeto de mestrado foi aceito. E passou a pesquisar os arquivos penitenciários do estado, por meio dos quais fez a reconstituição da trajetória de cerca de 60 ex-menores de rua como ele. Dois anos depois, fundou a ONG História do Presente, que propunha políticas públicas para as questões penitenciárias em São Paulo – o nome foi inspirado na obra do filósofo francês Michel Foucault, árduo defensor da ideia de que prender um indivíduo num sistema que o violenta não ajuda ninguém, nem mesmo a sociedade que dele se vê privada. “Eu pensava o seguinte: estudei, virei professor. Mas eu estarei sempre sujeito a voltar para lá, para a cadeia. E eu não gostaria de viver novamente naquelas condições.”
Sua ONG teve começo, meio e fim. Ao conseguir implantar o projeto do centro de ressocialização em 21 unidades prisionais paulistas, diz, o projeto cumprira seu papel. Hoje, Silva é professor livre-docente da USP, um dos cargos mais altos da hierarquia acadêmica. Orienta futuros doutores. Mas sabe, ao deitar a cabeça no travesseiro, que pode dormir em paz. Ele passou pelo pior que o Brasil tem a oferecer a suas crianças e adultos. Saiu vitorioso. E deixou seu legado. “No fim, conseguimos provar para a sociedade que é possível ter uma prisão digna. Eu sempre fiz tudo sozinho, mas aprendi que a solidariedade faz a diferença.”