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Uma revolução lenta… mas decisiva

Como o homem pré-histórico deixou as cavernas no início da Idade da Pedra Polida e começou a domesticar animais e plantas.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h09 - Publicado em 31 jul 1992, 22h00

Jose Garanger

Foi no ano de 1865 que o naturalista e arqueólogo inglês Sir John Lubbock propôs que se distinguissem, na pré-história da humanidade, o Paleolítico, palco da primeira Idade da Pedra (Idade da Pedra Talhada, entre 50000 e 10000 a.C.), e o Neolítico, a nova Idade da Pedra(Idade da Pedra Polida, de 10000 a 1700 a.C.). Desde então, as duas expressões se consagraram, ganharam o uso corrente que ainda hoje têm, mas seu significado vem sendo consideravelmente enriquecido. Atualmente, não discute mais apenas a distinção entre apetrechos talhados ou polidos, separados no tempo por uma rígida linha divisória, e sim o aparecimento de um gênero de vida nos últimos 10000 anos, durante o Holoceno ou período pós-glacial. O homem caçador-coletor do Paleolítico tornou-se produtor: passou a praticar a agricultura, a domesticar e criar animais, tornou-se sedentário, desenvolveu a cerâmica e a tecelagem…

Uma etapa decisiva na evolução da huminidade, que se revelou bem mais insinuante do que previa a visão simplificada e unilinear dos evolucionistas, Lubbock incluído. Alguns anos mais tarde, o etnólogo americano Lewis Morgan – o pioneiro da antropologia cientifica, que tanto influenciou a obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Friedrich Engels, o inseparável companheiro Karl Marx – qaulificaria, de sua parte, o Paleolítico como a etapa da “selvageria”, e o Neolítico, a da “barbárie” que precedeu a civilização.

O Oriente Médio seria o breco da civilização

Embora a teoria da evolução social de Morgan estabelecesse a primazia dos laços de paretesco sobre inertes instrumentos, a periodização não foi questionada. Nem mesmo em 1930, quando o celebre estudioso australiano da pré-história Gordon Childe falou pela primeira vez em “revolução neolítica”, Segundo a tese de Childe, a domesticação de plantas a animais e o aparecimento de comunidades sedentárias, estáveis e fixas, marcariam o nascimento da vida civilizada, numa revolução ensaiada pelo Oriente Médio, milênios antes dos tempos históricos, e mais tarde, difundida pela bacia mediterrânea, pela Europa inteira e pela Ásia. Durante um bom tempo imaginou-se que o Oriente Médio fosse o berço da civilização mundial, e muitos chegaram a pensar que o surgimento da agricultura no Novo Mundo não seria mais do que uma influência recebida do velho continente. Outros arriscaram a idéia de que essa mudança nos gêneros de vida teria sido conseqüência direta de uma evolução notável e repentina da inteligência de certos Homo sapiens sapiens.

Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, quando se retomou mais positivamente o conhecimento das “culturas neolíticas”, muitos desses antigos pressupostos foram postos em discussão: tornou-se claro, então, que a neolitização foi bem mais complexa do que se imaginava.

Os utensílios de pedra “talhada”, por exemplo, não deixaram de ser utilizados durante o Neolítico, nem nos tempos históricos, isso sem falar nas pedras usadas para produzir a faísca e detonar os fuzis dos séculos XVII e XVIII… Quando a pedra passou a ser polida, na cronologia da cartilha clássica, tal método já era praticado no Japão do Paleolítico. Na Austrália, polia-se o gume de grandes laminas de pedra desde uns 20 mil anos. Esses mesmos aborígenes australianos, porém encontravam-se ainda no estágio de caça e coleta, típico do Paleolítico, no século XVIII, quando da chegada dos europeus, que os qualificaram então como os representantes mais atrasados da espécie humana.

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Outra idéia coerente que não mais aceita é a de que a invenção da cerâmica seria uma característica do Neolítico. As variações são desconcertantes. No Oriente Médio, ela é mais tardia que a agricultura e a criação de animais, e não se generalizou antes do inicio do sexto milênio. O mesmo se deu do outro lado do mundo, no Peru, onde os objetos de cerâmica mais antigos de que se tem noticia apareceram pouco mais de 2 mil anos depois das primeiras tentativas de cultivo de plantas e da domesticação de animais. Inversamente, no Japão as primeiras cerâmicas apareceram há 9 mil anos, ou seja, muito milênios antes de se desenvolver uma economia de produção de alimentos.

A sedentarização, tão valorizada por Childe, foi por muito tempo considerada como um dos componentes essenciais do “estado neolítico”. Mas isso também deve ser visto com uma certa desconfiança. Assim, no Oriente Médio, notadamente na Síria e na Palestina, o aparecimento de vilarejos permanentes é anterior à fase e que a agricultura começa a ser desenvolvida. Além disso, a vida nômade e o deslocamento dos rebanhos no verão não são, por si só, reflexo de um comportamento arcaico, anterior à civilização agrícola: não é preciso ser dono de uma cultura muito extensa para saber que a migração pastoral perdurou em um grande número de países até a época atual..

O nomadismo das populações “pré-neolíticas”, tais como as magdalenianas que habitaram a Europa Ocidental entre 17000 e 11000 anos atrás, não decorreu simplesmente de uma constante procura de caça, mas de deslocamentos que não impendiam um retorno regular aos territórios mais férteis e abundantes. Foi esse também o caso das tribos da Tasmânia, ao sul da Austrália (“selvagens”, segundo a concepção de Morgan), que à chegada dos europeus viviam agrupados em aglomerados de uma dezena de famílias, com um território costeiro de uns 60 quilômetros aonde iam, conforme a estação, caçar focas no mar ou cangurus no interior, coletar mariscos e crustáceos, ou recolher diversos produtos vegetais.

Muda a relação do homem com seu meio.

O certo é que sedentarização, polimento de pedra, cerâmica não são critérios que permitam dizer que uma população pertence ao período neolítico. A questão principal é que, sem abandonar completamente a pratica da caça ou a da coleta, o homem modificou suas relações com o ambiente que o circundava. Seja com a domesticação dos animais, seja co a reprodução de plantas úteis, esse hábil manipulador da natureza deixou de ser unicamente predador para se tornar produtor e prover com novas técnicas uma parte substancial de suas necessidades para sobreviver.

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Trata-se d uma verdadeira revolução, como escreveu Gordon Childe? Sem dúvida foi. Mas acima de tudo foi um longo processo estabelecido em muitos séculos ou milênios. Sabe-se hoje que o Neolítico não se originou unicamente no Oriente Médio: ele teve muitos focos, independentes uns dos outros, e tributários de sua relação com o meio natural. O cão, para citar apenas um caso, parece ter sido domesticado de maneira generalizada em todas as partes do mundo, muitas vezes tens da neolitização propriamente dita.

A falta de chuvas torna a vida bem mais precária

Esses focos são cada vez mais conhecidos pelo estudo dos restos vegetais ou de ossadas animais, assim como pela datação precisa da passagem à domesticação. Houve assim um foco na China, onde apareceu uma espécie miúda de milho ao norte e o arroz mais ao sul. Outro no Sudeste Asiático, que teve, na origem, uma economia baseada no cultivo de tubérculos (inhame) e árvores frutíferas (fruta-pão, coqueiro, bananeira). Focos independentes aparecem igualmente no México, nos Andes centrais, no sul do Saara e talvez até mesmo na Nova-Guiné.

Quais podem ser os fatores de tais inovações? As transformações dos meios naturais, ligadas às mudanças climáticas que ocorrem no período pós-glacial, são certamente uma causa. Segundo Gordon Childe, a redução na incidência das chuvas, ao menos na Europa Ocidental e no Oriente Médio, tornou a vida mais precária e instigou a busca de novos meios de subsistência. Outros, como o arqueólogo inglês Robert John Braidwood, um dos maiores especialistas em culturas mediterrâneas, argumentam que a causa se encontra em um conjunto de condições favoráveis, que permitiu a passagem da coleta à agricultura e da caça à criação de animais. Em certos casos, no entanto, como ocorreu na planície da Califórnia, nos Estados Unidos, recursos muito abundantes favoreceram a sedentarizaçãomas por outro lado retardaram a neolitização. Os aborígenes do norte da Austrália não se deixaram influenciar, depois de longo tempo em contato com seus vizinhos melanésios e indonésios, que nessa época já se dedicavam à agricultura e à criação de animais: eles continuam predadores, porque provavelmente vivem em equilíbrio suficiente com seu meio natural.

Em resumo, os motivos da neolitização são certamente múltiplos e ainda estão para ser mais bem estudados. É certo também que muitos dos aspectos técnicos que caracterizam aquele período perduram até nossos dias, mesmo em países industrializados. As produções regionais – o trigo ocidental, o arroz oriental, o milho ou a batata ameríndios – foram espalhadas pelo mundo todo. A produtividade foi consideravelmente aumentada e as modificações genéticas permitiram que certos cereais fossem cultivados em regiões antes pouco propicias.

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A humanidade perde aos poucos suas raízes.

Mas essa continuidade sutil está ameaçada. O número de espécies animais e vegetais domesticadas não aumentou desde então: cegou mesmo a diminuir, como é o caso das plantas alimentares de pouco interesse comercial, muitas delas hoje em perigo de extinção. Outras espécies, ao contrário, têm sido pesquisadas para aumentar seu rendimento e seu atrativo, mas isso em detrimento de qualidades gustativas e, às vezes, do próprio poder de reprodução (desaparecimento de sementes de certas frutas). E não é só. Enquanto a agricultura e a produção industrial de animais cada vez mais repousa nas mãos de um grupo menor e restrito de especialistas, o resto da humanidade vai esquecendo as técnicas de produção alimentares que foram lentamente desenvolvidas pelos neolíticos e seus descendentes.

Para saber mais:

Pré-História, Servi-Gourham, Editora Pioneira, São Paulo, 1981

Os caçadores da Pré-História, Servi-Gourham, Edições 70, Lisboa, 1983

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Um mergulho científico no passado

Um intrépido Indiana Jones, escavando aqui e ali em busca de vestígios para reconstituir a vida de populações pré-históricas, sem chegar a conclusões muito precisas. Esta imagem do arqueólogo, guiado mais pela intuição do que pela ciência, já foi retrato fiel da realidade quando métodos confiáveis de datação eram apenas um sonho distante. O salto nas pesquisas que ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial veio através da Física e da Química, que aprimoraram processos para a cronologia de achados pré-históricos e possibilitaram o avanço da Arqueologia. Entre eles, três se revelaram extremamente úteis para o estudo do Neolítico: o carbono 14, a dendrocronologia e a termoluminescencia. “Para resultados precisos, é comum que se use mais de um deles na datação”, diz Sônia Hatsue Tatumi, professora de Física da Universidade de São Paulo – USP. Conheça como funcionam:

Carbono 14 – Idealizado nos Estados Unidos nos anos 50, o método mede a concentração dos átomos de carbono 14 em fósseis de restos orgânicos, como tecidos e plantas. O processo parte do principio de que todos os organismos vivos trocam C 14 com a atmosfera, e portanto mantêm um nível estável e constante do material. Quando ocorre a morte, no entanto, esta troca cessa e o organismo passa a perder esse componente, que se transforma em C12. Para a datação, usa-se uma equação que iguala a quantidade de C14 da atmosfera com a que existia no organismo antes da morte, e da comparação entre o nível inicial (anterior à morte) e o atual, sempre menos, deduz-se a época em que o organismo viveu. “Existem vários tipos de aparelho para medir a assiduidade de carbono. Quanto mais precisos, mais perfeita será a datação”, explica a professora Hatsue. O método permite datar atmosferas de até 47000 anos.

Dendrocronologia – Propicia para regiões de clima temperado, a dendrocronologia é pouco utilizada no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, o método serve para datar pinheiros e carvalhos encontrados em palafitas ou sítios lacustres. Como a cada ano as arvores acrescentam um anel a seu tronco, a idade da madeira é avaliada contando-se o número de anéis. Além disso, a espessura dos anéis avaria de acordo com o clima: são mais finos em períodos secos e mais grossos nos úmidos, que é o caso do Neolítico, por exemplo. A predominância de um ou outro ajuda a localizar o período em que floresceram. Mas esta medição será sempre aproximada e não dispensa uma confirmação pelo método do carbono 14. Árvores decepadas muito tempo após sua morte também são um problema para os pesquisadores e só podem ser datadas a partir da comparação com outras já estudadas na mesma região.

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Termoluminescência – Com “uma margem de erro de 5 a 10%”, segundo a professora Sônia Hatsue, a termoluminescência permite a datação de amostras inorgânicas, especialmente cristais de quartzo encontradas na areia e em cerâmicas. Mas só daquelas que foram submetidas ao fogo. Materiais inorgânicos acumulam energia, mas, quando submetidos à queima, perdem essa energia na forma de luz. Longe do calor, eles a recuperam pouco a pouco, através da radioatividade ambiental. A medição da intensidade da energia luminosa reacumulada é feita em laboratório. São também medidos, durante três meses, os níveis de radiação do terreno do sitio arqueológico, para se chegar a uma equação capaz de calcular o aumento médio anual de energia naquele local. Cumpridas estas etapas, é possível então estabelecer a idade do sedimento ou da cerâmica estudada. O método data desde matérias com 120 anos até aqueles com mais de 100000.


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