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A biodiversidade e toda a vida do mundo

Há mais vida na Terra do que o homem é capaz de saber: fala-se de 5 a 30 milhões de espécies. A biodiversidade fascina os cientistas, preocupados em conhecer e salvar toda essa riqueza.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h59 - Publicado em 30 jun 1990, 22h00

Martha San Juan França

Nos tempos bíblicos, Deus ordenou ao patriarca Noé que construísse uma arca para abrigar um casal de cada espécie de bicho enquanto o mundo se afogava no dilúvio universal. A missão de Noé pode ter sido ainda mais extravagante do que a lenda sugere. De fato, passados dois séculos desde que o botânico sueco Carolus Linnaeus (1707-1778) começou a classificar as formas animais e vegetais de vida, não se sabe quantas espécies dotadas de patas, rabos, antenas, asas, guelras, folhas, caules ou raízes existem. “Em todas as classes, a cada dia se descobre uma espécie nova”, garante o zoólogo Miguel Trefaut Rodrigues, da Universidade de São Paulo. Há algum tempo, com outros pesquisadores, ele passou vinte dias enfurnado na Mata Atlântica do sul da Bahia, onde encontrou nada menos de catorze espécies ao que tudo indica desconhecidas de répteis e anfíbios, incluindo uma perereca que, com seus 10 centímetros de comprimento, talvez seja uma das maiores da América do Sul.

Isso é biodiversidade, o explosivo potencial que a vida possui de se multiplicar em miríades de formas adaptadas aos mais variados ambientes. Desbravando o globo de pólo a pólo, embrenhando-se em florestas e mergulhando nos mares, o homem conseguiu descrever 1,4 milhão de espécies, como se designa a unidade biológica fundamental. Cerca de 750 000 são insetos, 41 000 são vertebrados, 250 000 são plantas e o restante é uma coleção desconjuntada de outros invertebrados, algas, fungos e ainda microorganismos como bactérias e vírus. Parece um desvario da natureza — mas é pouco mais do que uma amostra. A maioria dos biólogos concorda que aquele censo não dá conta nem da terça parte dos passageiros convidados a embarcar na arca de Noé.

Os cientistas reconhecem, por exemplo, serem parcos os seus conhecimentos sobre a diversidade e a distribuição dos insetos, uma categoria que parece ter a preferência da natureza, pois constitui folgadamente a maioria dos seres vivos. O pesquisador americano Terry Erwin e seus colaboradores do Instituto Smithsonian de Washington tiveram a santa paciência de contar, uma a uma, as espécies de bichinhos nas copas de algumas árvores na Amazônia brasileira e peruana e extrapolaram o número encontrado para a área total de florestas tropicais. Resultado: somando as espécies estimadas dos insetos às outras presumivelmente existentes ali, obtiveram um megatotal de 30 milhões de formas distintas de vida. Mesmo quem acha que esse é um cálculo inflacionado demais aceita a hipótese de que pelo menos 5 milhões de espécies povoam o mundo. E não há dúvida de que a maioria anônima está escondida no verde e na água das florestas tropicais.

Sabe-se preto no branco que mais da metade da bicharada do planeta tem seu endereço nos trópicos, mais precisamente nos 7% da superfície do globo coberta por florestas tropicais. A desmedida variedade das espécies vegetais ainda é menor que a de insetos, peixes e microorganismos. Uma pesquisa recente mostrou que 950 espécies de besouros, 80% das quais desconhecidas, estavam instaladas em apenas dezenove árvores da selva tropical do Panamá. Como em cada hectare da Floresta Amazônica existem 300 espécies de árvores, dez vezes mais do que nas regiões temperadas da América do Norte, por exemplo, não é de espantar que o Brasil, onde a floresta ocupa 42% do território, seja o campeão mundial da biodiversidade.

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Segundo uma classificação elaborada pela respeitável organização ambientalista internacional World Wide Fund for Nature (Fundo Mundial para a Natureza), o Brasil é o primeiro país do mundo em número de espécies de plantas e de anfíbios, o terceiro em aves e o quarto em borboletas, répteis e mamíferos. “Das 1 100 espécies conhecidas de sempre-vivas (um tipo de flor comum em adornos), 700 encontram-se entre Minas Gerais e Bahia”, contabiliza a botânica Ana Maria Giulietti, da USP. “Só numa lagoa do Parque do Rio Doce, em Minas, existem mais espécies de libélulas do que em todo o território britânico”, compara, por sua vez, o entomologista Ângelo Machado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é também presidente da Fundação Biodiversitas para a Conservação da Diversidade Biológica, uma entidade de cientistas ambientalistas criada há dois anos em Belo Horizonte que, como o nome já diz, se dedica à defesa desse incomparável tesouro que o homem vem dilapidando.

Machado explica por que “nossas várzeas têm mais flores, nossas flores têm mais vida”, como se gabam os versos ufanistas de Gonçalves Dias. “No passado”, ensina ele, “as zonas temperadas sofreram o rigor das glaciações, que sacrificaram inúmeras espécies e empurraram outras a regiões de climas mais quentes. Enquanto isso, próximo dos trópicos, o ambiente permaneceu estável, o que facilitou o desenvolvimento de ecossistemas mais ricos e complexos, adaptados a um clima com pouca variação.” É o que aconteceu, não apenas no Brasil, mas também no México, na Colômbia, na África central e no sul da Ásia, igualmente bem situados no ranking da World Wide Fund. A Colômbia é o país mais rico em diversidade de espécies por unidade de área. Já a Indonésia se destaca não apenas pela variedade de espécies terrestres mas por possuir no seu litoral o mais rico tesouro de organismos marinhos.

Mesmo nas regiões tropicais existem áreas de preferência da bicharada. Perplexos com essa valorização, biólogos do mundo inteiro seguiram o exemplo do brasileiro Paulo Emílio Vanzolini e foram buscar respostas na Geomorfologia, ramo da ciência que estuda as formas do relevo terrestre. Baseado por sua vez nos trabalhos de um colega da USP, o geógrafo Aziz Ab’Saber, Vanzolini — um especialista no mecanismo de multiplicação das espécies, também conhecido por seus sambas — descobriu que a distribuição da vida nas florestas da Amazônia e na Mata Atlântica está relacionada à história antiga dessas formações. Durante a mais recente glaciação, que durou cerca de 10 000 anos, nesta parte do globo períodos frios e secos alternaram-se com outros mais quentes.

Quando o clima esfriava, as florestas encolhiam, cercadas por cerrados, pradarias e caatingas. Os pequenos grupos de espécies, isolados de seu território ancestral, lentamente começaram a se adaptar às peculiaridades locais. É o que os cientistas chamam de diferenciação em isolamento, um processo que leva ao endemismo. Este fenômeno, que ocorre em lugares menos acessíveis, montanhas e ilhas, marcou a peculiar flora e fauna da Austrália — simbolizada pelos cangurus e coalas — assim como da ilha de Madagascar, na costa oriental da África, o paraíso das orquídeas e dos primatas. Muito mais tarde, quando a floresta voltou a se expandir, aquelas espécies já tinham acumulado tantas variações genéticas que perderam por completo o parentesco com seus antepassados.

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Comparados às espécies terrestres, os organismos marinhos estão mais bem distribuídos justamente porque toparam com menos barreiras físicas. Não é de estranhar, portanto, que a diversidade de espécies nos oceanos seja também menor. Em compensação, como a vida surgiu na água muitos milhões de anos antes que em terra, os oceanos abrigam formas mais antigas, como algas, moluscos, esponjas e corais. Para o biólogo Eurico Cabral de Oliveira, ex-diretor do Centro de Biologia Marinha da USP, “o equivalente marinho das florestas tropicais são os recifes de coral” — colônias de organismos invertebrados onde vivem numerosas espécies de peixes, moluscos, além de pássaros e tartarugas. “Como as florestas”, compara o biólogo, “os corais são ecossistemas complexos e por isso mesmo de equilíbrio delicado.”

Por pouco que se saiba sobre as espécies terrestres, ainda é muito comparado com o que se sabe dos oceanos. Recentemente — para surpresa de quem achava que a vida em profusão só existia nas águas mais iluminadas — se descobriu no fundo do Pacífico nada menos de uma centena de espécies estranhíssimas de organismos. Mais do que quaisquer outros terráqueos, são uma prova da incrível capacidade de diversificação e adaptação a todo tipo de ambiente. Costuma-se dizer que a variedade é a própria essência da vida, pois sem a matéria-prima que ela proporciona não haveria evolução. Cada organismo, como se sabe, contém uma quantidade colossal de informações genéticas que determinam todas as suas características. Mas os organismos individuais não evoluem — eles só podem crescer, reproduzir-se e morrer. As mudanças que entram para a história ocorrem nas espécies, a unidade básica da evolução. “Assim, de um mesmo ancestral podem se originar espécies tão diferentes como as lhamas que se adaptaram à Cordilheira dos Andes e os camelos aos desertos da África”, lembra o biólogo Vanzolini.

Quando o clima, a água e a alimentação são constantes, as espécies podem repartir o ambiente para não tropeçar umas nas outras, ocupando diferentes nichos ecológicos, como dizem os biólogos. Nas planícies africanas, por exemplo, existem vários tipos de mamíferos que se alimentam de folhagens. Só que as girafas vão buscar o almoço nas copas das árvores, os rinocerontes preferem os arbustos e as zebras comem gramíneas. Mas o destino de uma dada espécie está sujeito a mais interferências do que é capaz de conceber a ciência humana — sem falar que o acaso desempenha um papel não desprezível nessa loteria. Desse modo, sem que se saiba ao certo por quê, algumas espécies tiveram mais sucesso, ao passo que outras passaram despercebidas pelo livro da vida e outras ainda desapareceram abruptamente durante as grandes extinções do passado, como aconteceu com os dinossauros há 65 milhões de ano.

Diante da interdependência e da complexidade dos processos que acontecem na natureza, nunca se sabe quando uma espécie pode representar um papel fundamental para a sobrevivência do homem. Assim, se não por um respeito moral à vida, ou pelo desfrute da beleza que sua variedade proporciona, o mero egoísmo aconselharia salvar o próximo. Não se trata de um raciocínio hipotético. Quem acha, por exemplo, que o mundo estaria melhor sem a enorme variedade de insetos que parecem ter nascido com a exclusiva finalidade de nos infernizar deveria dar uma olhada numa pesquisa feita pelos americanos. Eles calcularam que os insetos causavam um prejuízo de 7 bilhões de dólares anuais nos Estados Unidos. Ruim com eles, pior sem eles. Se os insetos fossem destruídos, os prejuízos que a agricultura teria com a ausência de polinização das plantas seria da ordem de 9 bilhões de dólares. Um exemplo brasileiro: se desaparecesse a mosca que poliniza o cacau no sul da Bahia ou a abelha que faz o mesmo com a castanha no Pará, estaria decretada a falência de importantes atividades econômicas dessas duas regiões.

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Com o advento da Engenharia Genética, o estudo da diversidade de animais e plantas tornou-se uma prioridade científica nos países ricos. Isso porque, cada espécie, seja de macaco, barata, rosa ou bactéria, representa um estoque de genes cujo potencial apenas começa a ser arranhado. A humanidade já lucra muito com a herança transmitida por alguns organismos: calcula-se que um em cada quatro tipos de medicamentos contém ingredientes derivados de plantas silvestres. Pacientes com leucemia sobrevivem graças a substâncias contidas numa planta chamada pervinca. A dedaleira ajuda a regular os batimentos cardíacos. O cará proporciona o ingrediente ativo dos anticoncepcionais. O jaborandi combate o glaucoma. A barba-de-bode e a casca do salgueiro têm propriedades analgésicas semelhantes às da aspirina. Fungos e microorganismos—categorias ainda menos identificadas que a dos insetos — foram a chave para o desenvolvimento dos antibióticos e mais recentemente da ciclosporina, o bendito remédio que diminui os riscos de rejeição em transplantes.

O problema é que, para onde quer que se olhe, o homem parece ter declarado guerra às plantas e aos animais. É o desmatamento, os acidentes ecológicos, a ocupação desordenada e a poluição em terra. Os conservacionistas fizeram as contas e obtiveram um número de arrepiar. Se continuar o ritmo atual de destruição da natureza, nos próximos 25 anos cerca de 1,2 milhão de espécies desaparecerão por completo da face da Terra. Ou seja, estamos assistindo sem saber a um genocídio de cem espécies por dia.

O entomologista Ângelo Machado, da Fundação Biodiversitas, se irrita quando lhe perguntam por que conservar animais como o mico-leão-dourado, um primata característico da Mata Atlântica, que está na lista das 207 espécies ameaçadas de extinção elaborada pela Sociedade Brasileira de Zoologia. “O homem é uma espécie curiosa”, raciocina ele. “Tem um apreço enorme pelas coisas bonitas que ele mesmo cria, mas destrói as que encontra prontas na natureza. Já imaginou se algum tipo de fungo destruidor de pinturas se alastrasse pelos museus e acabasse com a Mona Lisa ou com as telas de Van Gogh? Antes de mais nada é preciso preservar o mico-leão e outras espécies porque são obras de arte da natureza que levaram milhões de anos para serem criadas.”

É possível preservar em parte, em zoológicos, jardins botânicos e bancos de sementes, o muito que ainda resta das espécies. Um exemplo é dado pelo paisagista Roberto Burle Marx. que reúne em seu sítio de Guaratiba, Rio de Janeiro, 3 500 espécies de plantas. Os ecologistas, no entanto, não querem apenas salvar espécies exóticas, mas processos evolutivos. E estes só podem ocorrer nos ecossistemas que Ihes deram abrigo. “Temos que dar chutes na direção certa”, recomenda o biólogo Gustavo Fonseca, que leciona Ecologia na UFMG. “É impraticável preservar indefinidamente os ambientes naturais, mas se pode lutar por uma política realista de áreas de conservação.”

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Os sobreviventes e as vítimas

O desaparecimento das espécies — e a conseqüente perda do seu material genético — é um fenômeno quase tão antigo quanto a própria vida. Os paleontólogos distinguem cinco episódios de extinção em massa durante os quais uma fração significativa de biodiversidade foi extinta. Os motivos são ignorados ou controversos. O primeiro caso ocorreu no Ordoviciano, há cerca de 450 milhões de anos, quando foram quase eliminados os trilobites, espécies de animais invertebrados. No Devoniano, desapareceu a maior parte das espécies de peixes, diminuíram os corais e os crinóides, animais marinhos. Mas a vida na Terra correu real perigo uma centena de milhões de anos adiante, no Permiano, quando mais de 90% das espécies e todos os trilobites desapareceram. Os sobreviventes abriram caminho para o aparecimento, entre outros, dos dinossauros.

As extinções continuaram. No Jurássico, morreram 75% das espécies de amonites (moluscos) e de crinóides. A mais falada extinção foi a dos dinossauros, que desapareceram no final do Cretáceo junto com os amonites. Em compensação os mamíferos se espalharam pela Terra. Muitos cientistas acusam um descendente desses mamíferos, o homem moderno, de estar promovendo a próxima extinção em massa das espécies. No seu livro O polegar do panda, o biólogo americano Stephen Jay Gould afirma que “aquele que se alegra com a diversidade da natureza e sente que aprende com cada animal tende a considerar o Homo sapiens como a maior catástrofe desde a extinção cretácea”.

Comida no congelador

Há quinze anos, a Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) criou uma rede mundial de recursos genéticos, destinada a salvar centenas de espécies de plantas silvestres das quais o mundo pode vir a precisar como alimento e remédio. São os bancos de germoplasma, o material genético estocado nas sementes, mudas, células e sêmen, guardados em geladeira, a temperatura de 20° C negativos. No Brasil, o Centro Nacional de Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), em Brasília, mantém cerca de 35 mil amostras de sementes de espécies de mandioca, milho, batata, feijão, arroz — alimentos que fazem parte do cardápio da população — e outras que talvez só os índios e os especialistas conheçam. Ao preservar dessa maneira a diversidade da natureza, os cientistas pretendem em primeiro lugar melhorar a produtividade agrícola das espécies conhecidas, especialmente agora que a Biotecnologia e a Engenharia Genética permitem selecionar plantas mais resistentes. Muitas variedades silvestres também podem substituir as vinte espécies de plantas responsáveis pela maior parte da alimentação do homem. Pode chegar um tempo em que espécies como a quinua, um grão que já entrou na dieta básica dos incas, mas é quase desconhecido fora dos países andinos, se tornem uma das mais produtivas fontes de proteína para o homem.

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