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Apocalipse já

Edward Goldsmith, um dos papas do movimento ecológico, diz que a civilização moderna não presta e que a humanidade está à beira do desaparecimento. O remédio, segundo ele, é uma conversão quase religiosa a uma outra visão de mundo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h58 - Publicado em 31 jul 1991, 22h00

Edward Goldsmith tinha tudo para ser o que não é – um próspero capitalista e um defensor da civilização industrial. Mas ele talvez não chegasse a ser o que é fossem outras as suas origens. Nascido em Paris há 63 anos em berço de ouro – filho de pai inglês, rico deputado pelo Partido Conservador, e de mãe francesa, de boa família rural – pôde estudar em vários países e formar-se em Ciências Políticas, Filosofia e Economia pela prestigiosa Universidade de Oxford. Teddy, como o chamam os amigos, poderia ter sido igual a seu irmão Jimmy, ou melhor, Sir James Goldsmith, que construiu uma das maiores fortunas da Europa e foi proprietário da revista semanal francesa L’Express.A herança que Edward recebeu aos 38 anos permitiu-lhe viver tranqüilamente desde então.

Ele viajou o mundo todo, cultivando seus dois grandes interesses: peregrinar pelas melhores bibliotecas e estudar as chamadas sociedades tradicionais, virtualmente intocadas pelo padrão ocidental. Acabou por apaixonar-se pelos ideais pregados pelo líder indiano Mohandas Gandhi (1869-1948), cujo pensamento inspirou em 1972 o mais célebre dos doze livros que viria a escrever Blueprint for survival (Projeto para a sobrevivência). Traduzido em dezesseis idiomas, vendeu 1 milhão de exemplares e se tornou uma das bíblias do movimento ambientalista.Edward Goldsmith é muito mais que um guru verde, daqueles que comandam justos protestos contra as queimadas na Amazônia ou a matança das baleias. É um perfeito exemplar de uma espécie que, para o bem ou para o mal, está em expansão – a dos ecologistas radicais, a vertente xiita dos defensores do ambiente que enxerga no progresso técnico-científico e na sociedade industrial nada além do Grande Satã que arrasta para a morte, senão a natureza inteira, com certeza a humanidade. Os ecofundamentalistas rejeitam a idéia de que o sistema pode ser transformado de forma a conciliar criação de riquezas. Bem-estar material e preservação do planeta.

Para eles, o homem está com os dias contados se não deitar abaixo o estilo de vida das sociedades urbanas, se não banir da face da Terra a própria noção de desenvolvimento econômico e se não retomar as tradições postas à margem pela Revolução Industrial.O próprio Goldsmith já se declarou “arquipassadista”. Ele é um intelectual lido, viajado, articulado e experiente. É difícil contestá-lo quando aponta o dedo contra o que há de irracional e perverso na civilização contemporânea. Não obstante, ao extremar a argumentação, resseca o raciocínio. O mundo que condena é simplificado sem matizes. Para ele por exemplo, a ciência é uma superstição que não melhorou a vida humana. Eis, no mínimo, um ato de desrespeito aos fatos. Sua construção ideológica se sustenta em bases duvidosas (“o desenvolvimento econômico cria a pobreza”), desdobra-se em generalidades (“todos os países estão mais pobres do que eram anos atrás”) e culmina em certezas insuscetíveis de verificação imediata (“restam-nos apenas alguns decênios”). Editor de uma contundente revista bimestral The Ecologist, e vice-presidente da Ecoropa, um dos maiores e aguerridos movimentos ambientalistas da Europa, ele certamente dará o que falar no Brasil em junho do próximo ano, ao participar dos eventos paralelos à Eco-92, a conferência mundial sobre ambiente e desenvolvimento, promovida pela ONU no Rio de Janeiro.

Casado (pela segunda vez), pai de cinco filhos, viveu os últimos anos numa fazenda na Cornualha, na ponta sudoeste da Inglaterra, onde proibiu a entrada de carros, tratores, adubos químicos e instalações de aquecimento. Agora morando no subúrbio londrino de Richmond, 20 quilômetros a sudoeste da capital, numa casa simples (mas com algumas benesses da tecnologia que ele tanto abomina, como telefone, fax e máquina de escrever elétrica), não vê a hora de voltar ao campo. De vivos olhos azuis e cabelos grisalhos, é um homem “carismático, veemente, arrebatado e também gentil e simpático”, segundo a repórter Gisela Heymann, de SUPERINTERESSANTE, a quem concedeu a entrevista que segue.

Há catorze anos, o senhor profetizou uma reação geral contra a civilização industrial. Onde o senhor errou?

Sem dúvida fui um pouco otimista. A tomada de consciência em relação aos problemas ecológicos causados pelo desenvolvimento econômico se manifestou mais tarde, há apenas dois anos. Infelizmente, a atitude dos políticos e industriais não mudou. As pessoas têm de tomar a dianteira em relação aos governos. Estes só oferecem respostas econômicas aos problemas. Se existem mais doentes, constroem-se hospitais. Se existem mais desempregados, constroem-se mais indústrias. Não se atacam as causas dos problemas.

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Mas já se tomaram decisões importantes contra a poluição. Nos Estados Unidos, não se usa mais nos sprays o gás clorofluorcarbono (CFC), que ataca a camada de ozônio. O Brasil pretende implantar até 1996 um plano para diminuir as emissões de poluentes dos veículos a motor. Isso não conta?

O CFC continua a ser usado em aparelhos de refrigeração e para a limpeza de circuitos eletrônicos. Os cortes, portanto, não foram suficientes. Os grandes problemas ambientais continuam como antes, ou pior. Nada se fez para diminuir o aquecimento do planeta ou para combater eficazmente a destruição da camada de ozônio. Nada se fez para diminuir o ritmo de destruição das florestas – salvo, ao que parece, no Brasil, onde o governo cortou as subvenções à destruição. Mas, na Malásia, por exemplo, a reação às pressões dos grupos ecologistas consistiu em cortar as árvores também à noite, para ganhar o máximo de dinheiro enquanto é tempo. E a última grande floresta africana, no Zaire, está em chamas.

O senhor escreveu no livro 5000 dias para salvar o planeta que a humanidade poderá estar extinta em trinta ou quarenta anos. Não e pessimismo demais?

Não. Estamos transformando a Terra num planeta inabitável. Aliás, já estamos condenados a conviver com um aumento da temperatura global entre 1,5 e 4 graus C previsto para o ano 2030, caso continue tudo como está, devido à duplicação do gás carbônico na atmosfera. É uma reação em cadeia. O mar, por exemplo, vai esquentar. O plâncton? que gosta de água fria, vai morrer. Isso diminuirá a capacidade dos oceanos de absorver o gás carbônico. Logo, a situação vai piorar. Não nos damos conta do que significam 3 graus a mais. Há 130 000 anos, o Sul da Inglaterra, ande fica Londres, era 3 graus mais quente. Havia ali pântanos, hipopótamos e crocodilos. Era um equilíbrio completamente diferente.

A espécie humana não se adaptaria a um clima 3 graus mais quente?

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O pior nem é o aumento da temperatura. É a instabilidade do clima? sua imprevisibilidade. Já podemos constatar isso hoje. A agricultura se baseia na regularidade dos ciclos, que permite ao homem saber quando plantar e quando colher. O homem teria ainda de conviver com a destruição da camada de ozônio, o que significa não só mais casos de câncer de pele, como também o enfraquecimento do nosso sistema imunológico, o que por sua vez significa muito mais doenças. Acrescente-se o aumento drástico dos dejetos químicos que envenenam a terra e o lençol freático. Por isso? podemos dizer que nos restam apenas alguns decênios. Podem ser trinta, quarenta, cinqüenta anos. Mas não será um século. A espécie humana estará extinta nas próximas décadas, se continuarmos a destruir o planeta na mesma velocidade de hoje.

Novas tecnologias não poderão evitar essas catástrofes?

As pessoas pensam que o desenvolvimento econômico vai resolver os nossos problemas, mas não é nada disso. O desenvolvimento econômico cria a pobreza. Ele requer um enorme aporte de energia. Para isso, construímos enormes barragens que destroem o meio ambiente, a terra arável, as florestas. Construímos centrais nucleares, que são ainda piores, por causa da emissão diária de gases radioativos, o que faz aumentar consideravelmente os casos de leucemia em crianças nas regiões vizinhas. Sem falar nos acidentes, como o de Chernobyl. Todos os mecanismos quebram. Os mais complicados são mais vulneráveis. Temos é de mudar nossa forma de pensar e parar de adaptar o mundo às nossas necessidades.

Como convencer as pessoas de que o mundo moderno não presta? As populações mais pobres deixarão de sonhar com o nível de vida dos americanos e europeus de hoje?

Acontece que é impossível o Terceiro Mundo viver como os Estados Unidos ou a Europa. O mundo não poderia suportar a poluição que isso causaria. É tão absurdo como dizer que a população da Terra vai ser transferida para Vênus. Além disso, já podemos observar claramente o desabamento do mundo industrial. Nova York é uma cidade em plena falência. E os Estados Unidos são o país que consome cerca da metade da energia produzida em todo o globo. Daqui a quarenta anos, os americanos terão destruído toda a sua terra arável. As pessoas querem imitar os Estados Unidos porque não sabem o que se passa ali e são bombardeadas pela publicidade do sonho americano. É importante dizer que todos os países estão mais pobres do que eram anos atrás. Os americanos estão mais pobres hoje do que em 1972. E a população mundial não vai viver como os personagens de Dallas, mas em favelas.

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O que se deveria fazer, então?

Temos de mudar totalmente nossa forma de encarar o mundo. É preciso criar uma sociedade na qual as atividades econômicas existam em pequena escala — o modelo da família ou das comunidades é o ideal. Devemos reduzir drasticamente o consumo de energia e acabar com a construção de barragens. Precisamos descentralizar as cidades, para que as pessoas possam trabalhar perto de onde moram, o que diminuiria muito a necessidade do carro particular. Não precisamos produzir bens de consumo descartáveis, que duram pouco e dilapidam os recursos naturais. Devemos voltar à agricultura sem adubos químicos, pois os biológicos são também eficazes a longo prazo.

Tudo isso significa abrir mão das conquistas da sociedade moderna, como o carro, o aquecimento central, as fraldas descartáveis, os tratores…

Sim. Sei que é muito difícil. Nossa economia é dominada pelas multinacionais. Por sua própria natureza, elas não vão jamais submeter suas atividades a fatores ecológicos, sociais e mesmo morais. Cada campanha de que participo, há trinta anos, é uma campanha contra as multinacionais. As multinacionais dominam os governos.

Se essa transformação é tão difícil assim, por que não fixar metas que não obriguem a rejeitar a tecnologia?

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Porque não temos mais tempo. Ficar discutindo a redução em 10% das emissões de gás carbônico até o fim do século não adianta. Temos de diminuí-las em 60% – hoje. Estamos rodando a 100 quilômetros por hora na direção de um precipício. Diminuir a velocidade para 80 ou 50 quilômetros não significa nada. Temos é que mudar de direção.

Mas, concretamente, como se faria essa guinada?

Repito: não existe saída fácil. Tudo começa por uma conversão, quase
religiosa, ao pensamento ecológico, a uma visão de mundo totalmente diferente. Para nós, a riqueza vem do funcionamento da biosfera, ou seja, do clima favorável, da terra fértil, da água fresca e abundante – condições essenciais para a vida humana neste planeta. Já a riqueza dos economistas é a riqueza manufaturada: o carro, o avião. o foguete. Temos de criar um tipo de vida que dispense essas coisas. Podemos viver sem carro, mas não sem água.

Nem a ciência pode impedir o pior?

Salvo exceções, os cientistas não comprendem o que se passa no mundo. Eles não têm nenhuma idéia do que está acontecendo.

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Mas não é a ciência que nos explica como funcionam o mundo, a vida?

A ciência é uma superstição. Precisamos desacreditar a idéia de que ela é onipotente. Ela permite mudar as coisas, mas não compreendê-las. Seus modelos matemáticos são muito rudimentares. Eles não dão conta dos fenômenos sociais, cujos fatores mais importantes não são quantificáveis. Quer um exemplo? É conhecido o princípio de que o crescimento econômico é indispensável para alimentar o mundo. Na verdade, é o contrário. Na Tanzânia, depois que a economia começou a afundar, as pessoas começaram a comer pela primeira vez depois de muito tempo. Por falta de meios, as estradas não puderam ser consertadas, o que impediu a exportação de alimentos. A população foi forçada a comê-los. Em suma, não nego que a ciência pode mudar as coisas: ela pode até levar o homem à Lua. Mas de que serve essa viagem? Para nada.

Os antibióticos também não servem para nada?

A saúde não tem a ver necessariamente com os remédios. Apesar de todo o avanço da Medicina científica, a incidência de doenças (salvo a da varíola) aumenta no mundo inteiro. Aumentam a tuberculose, as moléstias venéreas, a malária, a dengue. Isso sem falar dos males da civilização, como o câncer, as doenças cardíacas, o diabete, os problemas dentários, a úlcera, a apendicite. Essas doenças quase não existiam nas civilizações primitivas. Sua incidência cresce com a industrialização.

O senhor é religioso?

Sou adepto das religiões tribais, que cultuam seus ancestrais e a natureza. O homem normal é físico e emocional. As religiões modernas baniram essas características. Os países do Norte destroem mais que os do Sul, em parte porque suas populações não são mais humanas. São robôs.

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