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E se parar de chover?

Talvez a onda de calor seco que atingiu o Brasil neste verão seja sintoma de algo bem maior. Acompanhe o passeio de um avô e sua neta por uma São Paulo do futuro, já adaptada a uma grande mudança climática

Por Denis Russo Burgierman
Atualizado em 31 out 2016, 19h06 - Publicado em 23 jul 2014, 22h00

 

– Vem pro rio, vô – disse a menina, dando tapas na água.

– Já disse que não gosto, Pirralha.

A menina adorava o apelido que só o avô usava, mas temia um pouco o velho, sempre ranzinza, cheio de traumas e mistérios. Ela tinha 10 anos e era a alegria da vida dele. Só mesmo ela para convencê-lo a tirar os sapatos, arregaçar a calça e botar os pés naquele rio.

– Por que você tem medo do rio, vô?

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– Não é medo. É que ele me lembra de coisas ruins.

– É verdade que no seu tempo os rios voavam, vô?

O avô fez uma careta. Achava besta essa história de “rios voadores” que agora ensinavam na escola.

– Não, Pirralha… O que havia eram muitas nuvens, normalmente carregadas de água. Chovia sempre.

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A menina enfezou-se, virou as costas e mergulhou. Odiava essa mania dos mais velhos de ficar lembrando de quando chovia. Para ela, chuva era uma raridade – às vezes passavam dois ou três anos sem que uma gota caísse do céu.

– Vamos embora, Pirralha, já são 9 horas, está ficando quente demais.

O sol intenso dominava o céu todo azul – visão rotineira em São Paulo fazia décadas. A menina saiu da água enquanto o avô ia apanhar a toalha cor-de-rosa para enxugá-la.

– Vô, esta semana aprendi na escola sobre a bomba biótica e sobre quando ela desligou.

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– O que você aprendeu?

– Que a bomba era a Amazônia, que naquela época era uma grande floresta. Chama “bomba” porque ela bombeava água no ar. E “biótica” porque “bio” é vida e era a vida que fazia a bomba funcionar. Assim, ó: a água do mar ia com o vento até a Amazônia, daí as árvores da floresta chupavam essa água e transpiravam, soltando umas gotinhas bem pequenininhas no ar. Daí os rios voadores iam fazer chuva na América do Sul inteira. A América do Sul era a região mais fértil e mais úmida do mundo. Só que a floresta morreu e a bomba desligou. Por isso parou de chover – e a menina terminou a história com um bico de tristeza.*

“Meu Deus, como eles crescem rápido”, ele pensou, entrevendo uma adolescente nos gestos da criança.

– Mas tem uma coisa que eu não entendo, vô.

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– O quê?

– Como é que vocês não perceberam que estavam desligando a tal bomba?

O avô se impressionou: ele também vivia se perguntando isso. Os dois saíram caminhando pelos jardins de cactos na margem do rio.

– A gente não sabia… A gente acreditava que clima era uma coisa, que biologia era outra, e que essas duas coisas eram separadas.

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A menina parou de andar e ficou olhando surpresa para o avô, como se não entendesse o que ele dizia. Como assim coisas separadas? Olhou ao redor e viu as árvores fazendo sombra no rio, sob o sol feroz. Para ela, era óbvio que a água era fresca só porque havia árvores.

O avô leu o olhar da neta e entendeu o que ela pensava. Baixou o rosto, envergonhado, e seguiu caminhando em silêncio, com um nó na garganta. Cruzaram a ponte de madeira sobre um dos vários afluentes do rio. Ele lembrou-se de quando não havia riachos em São Paulo – estavam todos canalizados e enterrados sob ruas e avenidas. Mas isso foi antes de o clima mudar, na segunda década do século 21, forçando a cidade a fazer as pazes com as águas e cobrir o asfalto de verde, único jeito de refrescar o ar.

Os dois passaram ao lado do Monumento da Grande Ilusão, uma torre de metal retorcido, feita de velhas máquinas – grandes carros amassados, caixas de metal que um dia foram aparelhos de ar-condicionado, compressores, geladeiras. Era uma lembrança dos anos que antecederam o inferno do desligamento da bomba, quando os paulistanos, tentando escapar do calor que aumentava, fecharam-se em bolhas climatizadas – sem nem se dar conta de que cada uma delas aumentava a temperatura ao redor. Uma lágrima rolou discreta entre as rugas da pele curtida de sol.

Os dois chegaram à estação de barcas do Tietê e embarcaram no coletivo para casa. Um estrondo acordou o velho do devaneio e instintivamente ele procurou a neta com os olhos, para checar se ela estava bem. A menina olhava assustada para o horizonte atrás dele.

– O que é aquilo, vô?

Ele olhou para trás e viu o céu negro, trovejante. Uma tempestade se aproximava.

*Para saber mais sobre a teoria da bomba biótica e dos rios voadores, veja esta palestra

Ilustração: Elcerdo

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