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O rei e sua floresta submersa

O reino do uacari-branco é uma incrível região da Amazônia que não tem chão.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h01 - Publicado em 28 fev 1997, 22h00

Flávio Dieguez, de Mamirauá

Dizem os cientistas que se alguém mostrar a foto desse bicho aí do lado a um morador da cidade de Tefé, bem no coração da Amazônia (veja no mapa), o cidadão ia ficar espantado de nunca ter visto coisa igual. É que o uacari-branco é raríssimo. Foi ao estudá-lo, em 1983, que o biólogo José Márcio Ayres despertou para a necessidade de proteger a região. Por um admirável capricho da evolução, o uacari-branco, com cerca de 20 centímetros de comprimento, só existe por lá – e em nenhum outro lugar do mundo. Em 1996, finalmente, o reino do uacari-branco se transformou na primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentado do Brasil.

À flor d·agua, entre o susto e a adiniração

Depois de um dia inteiro de viagem, os passageiros sentiram pela primeira vez o cheiro de coisa podre que vinha da água. Ou melhor, da imensa quantidade de folhas e galhos que afundam e se decompõem, impregnando o ar de vapores desagradáveis. Foi assim que os visitantes souberam que tinham chegado ao coração da várzea, território do rei uacari-branco e sua corte exótica: o jacaré-açu, o maior predador brasileiro, com mais de 5 metros de comprimento, e peixes-elétricos nunca vistos antes da descoberta dessas terras alagadas pela ciência.

A SUPER acompanhou a expedição em abril do ano passado. O objetivo era mostrar a Reserva de Mamirauá a um grupo de representantes do governo inglês, que tem papel importante no financiamento das pesquisas locais. A equipe foi chefiada pelo embaixador inglês na época, Douglas Haskell.

O motivo do interesse, antes de mais nada, é a concepção inovadora da reserva, a primeira do país na qual a população nativa continua a conviver com as plantas e os animais sob proteção. “Eles não causam danos e podem ajudar na preservação”, explicou à SUPER o brasileiro José Márcio Ayres, responsável pela criação do parque. Mamirauá também é importante porque parece uma universidade na selva. Lá trabalham regularmente oitenta cientistas do mundo inteiro, inclusive o inglês William Hamilton, considerado o maior teórico vivo da evolução. E, ainda por cima, a região é uma das mais cativantes da Amazônia. O embaixador, mesmo cansado da viagem, bem queimado de sol e incomodado pelos odores estranhos da várzea, concorda: “No ano que vem, volto com a minha mulher.”

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O balanço entre a criação e destruição

O alagamento da Amazônia tropical começa sob o signo do frio, a cerca de 2 000 quilômetros de Mamirauá. Sua causa é o degelo dos Andes durante o verão, entre dezembro e março. Dois meses depois, entre maio e junho, a corrente que desce a montanha faz a água subir de 10 a 12 metros e invadir a floresta (veja os infográficos nestas páginas). Um dos traços mais sensacionais desse ecossistema é que ele está se transformando rapidamente. A água desce a montanha em filetes, mas aos poucos alcança os rios maiores e fica violenta. Não demora muito, sua força já é suficiente para provocar enchentes, arrebentar as margens e levar grande quantidade de terra para longe. Destino final: o Rio Amazonas, que então se encarrega de despejar tudo no Oceano Atlântico.

Essa é a parte destrutiva do processo. Mas ele também tem um momento criativo, em que a água das enchentes fica quase parada e deposita sua carga de sedimentos, ou seja, lama e areia, em vários locais. Aí, toneladas de terra acumulada criam um novo pedaço de solo firme na várzea. Alguns meses depois já existe capim crescendo nesse tipo de terreno, geralmente chamado de restinga baixa. E aí, no balanço entre destruição e criação, a várzea mais ganha do que perde. Lentamente, ela vem sendo soterrada pelos sedimentos. Não é por outro motivo que dentro da reserva os terrenos são todos recentes. A maior parte tem menos de 100 000 anos, e em alguns pontos a idade não ultrapassa os 10 000 anos. Ou seja, se formaram depois da chegada dos primeiros homens à América.

Bicho e gente partilham um mesmo espaço

Para criar a Reserva de Mamirauá foi preciso mudar o pensamento tradicional da ecologia, segundo o qual é proibido morar gente dentro de um santuário de proteção natural. É lógico. Ao se estabelecer num local, os humanos sempre modificam profundamente o ambiente. Só que em Mamirauá o raciocínio se inverte, dizem os cientistas: os moradores ajudam no trabalho de preservação. Com esse argumento, no final do ano passado os pesquisadores conseguiram aprovar uma mudança importante na legislação: daqui para a frente, onde houver circunstâncias favoráveis, os nativos podem e devem partilhar o espaço com rios, árvores e animais.

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A situação em Mamirauá é muito clara. Primeiro, a população é de apenas 1 668 moradores, segundo os recenseamentos já realizados. É certo que essa gente pesca, caça jacarés e tira madeira da mata, mas em quantidade tolerável. A natureza pode repor as perdas sem traumas. Claro que os moradores podem cometer excessos. Até porque não são especialistas. Mas já estão tendo aulas e aprendendo rapidamente. Em alguns casos eles mesmos decidem se e quando podem caçar jacarés ou pescar o pirarucu, neste ou naquele local. Também ajudam a patrulhar as atividades dos estranhos, algo praticamente impossível de fazer só por meio de fiscais contratados numa região tão extensa e selvagem.

Para Saber Mais

As Matas de Várzea do Mamirauá, José Márcio Ayres, Sociedade Civil Mamirauá, Tefé, PA, 1995.

Preguiças e Guaribas, Helder Lima de Queiroz, Sociedade Civil Mamirauá, Tefé, PA, 1995.

A floresta que não tem chão

Aqui somente os bichos que batem as asas, agitam as barbatanas ou pulam nos galhos conseguem se dar bem.

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Preguiça

Nome científico: Bradypus sp

Uacari-branco, o rei

Bicho incrível, que só evoluiu na área de Mamirauá, e em mais nenhum outro lugar. Mesmo assim é dificílimo de ver, pois em cada quilômetro quadrado só existem seis indivíduos.

Nome científico: Cacajao calvus calvus

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Pirarucu

Os pesquisadores desconfiam que ele prefere sair dos rios para pôr ovos na várzea. Nesse momento, a mãe não foge nem dos arpões dos pescadores. Em perigo, ela apanha os ovos da água e os esconde na boca.

Nome científico: Arapaima gigas

Peixe-elétrico

Nenhuma outra parte do mundo tem tantas espécies de peixes-elétricos, mais de trinta. O inglês William Crompton acha que eles usam os choques para se comunicar. O mais comum deles é o poraquê.

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Nome científico: Electrophorus eletricus

Caranguejeira

Nome científico: Família Pheraposidae

Quati

Nome científico: Nasua nasua

Garça-branca

Nome científico: Casmerodius albus

Jacaré-açu

O maior predador da Amazônia, podendo alcançar mais de 5 metros de comprimento. Quase extinto, abriga-se em Mamirauá, onde fica a maior população da espécie.

Nome científico: Melanosuchus niger

Boto tucuxi

Um dos mamíferos aquáticos mais importantes da reserva. Quase não enxerga. Mas se move com perfeição nas águas barrentas da várzea usando um eficiente sistema de sonar.

Nome científico: Sotalia fluviatilis

Peixe-boi

Nome científico: Trichechus inungis

Papa-formigas

Nome científico: Myrmoborus leucophrys

A inundação de perfil

De outubro a maio, o nível da água em Mamirauá dá um salto de 12 metros em média.

Sob a prensa dos rios

Espremida entre o Solimões e o Japurá, a reserva fica sobre um terreno relativamente recente, formado entre 100 000 e 10 000 anos atrás. O subsolo do resto da Amazônia é bem mais antigo. Tem de 2 milhões a 65 milhões de anos.

Dois grandes lagos

São os principais da reserva. O Mamirauá tem 10 quilômetros de comprimento e menos de 400 metros de largura. O Teiú, situado 17 quilômetros ao norte, tem 8 quilômetros de comprimento e 70 metros de largura.

Da montanha fria à mata tropical

O degelo dos Andes, de dezembro a março, inunda a Amazônia entre maio e junho.

Bichos que só tem lá

Além do rei, o uacari-branco há o macaco-de-cheiro-de-cabeça-preta. Esses dois você não encontra em outro habitat. Das espécies que não moram só na várzea, as mais importantes são as ameaçadas de extinção, o jacaré-tinga, o jacaré-açu, a jaguatirica e a onça-pintada. Bicho terrestre que não sobe em árvore fica fora: lá não tem paca, tatu, anta, porco-do-mato ou cotia. O que mais se vê são peixes, 300 espécies. E na água também nadam mamíferos como o peixe-boi, o boto vermelho, o tucuxi e a ariranha.

O núcleo da várzea

As várzeas, ou matas alagadas, representam cerca de 5% de toda a Amazônia. São mais ou menos 100 000 quilômetros quadrados, espalhados ao longo de todo o Rio Amazonas. A Reserva de Mamirauá, com mais de 10% desse total (11 240 quilômetros quadrados), fica justamente na parte mais ampla dessa selva que não tem solo firme por baixo, só água.

A origem da reserva

Desde jovem, o biólogo José Márcio Ayres aprendeu a gostar de Mamirauá. Em 1983, ao estudar o uacari-branco, propôs que o local fosse transformado em Estação Ecológica, sob proteção da ciência. Criada em 1990, a estação foi alçada em 1996 à categoria de Reserva de Desenvolvimento Sustentado, a primeira do país.

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