Tartaruga fora da panela
As crianças que primeiro aprenderam sobre as tartarugas. Depois, ensinaram os adultos
João Paulo Gomes, de Formoso do Araguaia (TO)
A carne macia, um pouco avermelhada, tem um leve gosto de peixe e não demora muito para cozinhar em fogo alto. Os ovos têm casca mole e, antes de irem para a panela, precisam passar um dia inteiro no sol. Arroz e muita farinha completam a refeição.
Era assim, como comida, que os moradores das proximidades de Formoso do Araguaia, no Tocantins, pensavam nas tartarugas e tracajás – animais da ordem dos quelônios – que desovam todos os anos nas praias dos rios da região. O consumo era tão corriqueiro que avistar os animais tornou-se raro. Mas, desde 1998, um projeto está transformando a receita de destruição num hábito de preservação. Com isso, os quelônios, quem diria, voltaram.
O epicentro dessa mudança é uma escola – a Escola de Canuanã, da Fundação Bradesco, perto de Formoso. Situada às margens do rio Javaés, de frente para a ilha do Bananal, a escola possui uma posição privilegiada para as aulas práticas de educação ambiental. Foi em uma delas que o professor Lucrécio Filho e seus alunos encontraram um ninho de tracajás destruído em uma praia. Para responder às perguntas dos adolescentes curiosos, o professor começou a pesquisar o assunto. O interesse foi tanto que Lucrécio chamou técnicos do Ibama para irem à escola dar cursos e palestras. A partir daí se iniciou um projeto de proteção dos animais e de seus ninhos.
O trabalho começa na sala de aula. Todo ano, 80 alunos do ensino médio passam o primeiro semestre aprendendo sobre os animais. No final de junho, os quelônios chegam pelo rio Araguaia para desovar. É aí que a teoria é colocada na prática. Os estudantes começam a limpar as praias duas vezes por semana e, segundo Lucrécio, só a presença deles já inibe os caçadores. Em setembro, com a desova concluída, os adolescentes cercam alguns ninhos para proteger os ovos de predadores. Quando chega a hora da coleta dos filhotes, em dezembro, um batalhão de estudantes e funcionários é mobilizado para recolhê-los e levá-los a um tanque na escola. “Gosto da hora da contagem, porque sempre tentamos superar o ano anterior”, diz Daiane dos Santos, xará da atleta e aluna da oitava série. As milhares de tartaruguinhas ficam no tanque por duas semanas, até perderem o pitiú, cheiro forte que atrai predadores.
Para Lucrécio, está na participação da molecada a maior força do projeto, mais até do que nas 130 mil tartarugas já soltas. O aluno Ernandes Pinheiro, de 8 anos, deu uma aula para o pai quando o viu capturar um tracajá numa pescaria. Convencido pelo menino, o adulto devolveu o bicho e prometeu não incomodá-los mais. “As pessoas começam a amar mais a natureza depois que passam a conhecê-la melhor. É difícil perceber o paraíso quando se está dentro dele”, diz o professor Lucrécio. A mudança às vezes chega em passos de tartaruga. Mas chega.
Como ajudar
A Escola de Canuanã procura parcerias para aquisição de um barco de 6 metros, binóculos e um sistema de rastreamento para monitorar os quelônios durante o ano. Para entrar em contato, ligue para (63) 339-1000.