Duas crianças, um ator veterano e um helicóptero mortal: o pior acidente da história do cinema
Ignorando regras de segurança e os alertas de sua própria produção, John Landis viu três pessoas perderem a vida para fazer seu filme
Já passava das duas da madrugada quando o veterano ator Vic Morrow se preparava para gravar o clímax do filme Twilight Zone: The Movie (no Brasil, No Limite da Realidade). Junto a ele estavam as crianças Myca Dinh Lee, de sete anos, e Renee Shinn-Yi Chen, de seis. Na cena, perseguido por um helicóptero militar, Morrow deveria agarrar uma criança em cada braço e sair correndo através de um rio raso conforme o vilarejo queimava atrás deles, com explosões e efeitos visuais acontecendo em tempo real.
O filme, no mesmo estilo da série de TV que lhe deu origem, era composto de quatro curta-metragens independentes. No segmento estrelado por Morrow, ele interpretava um homem estadunidense preconceituoso que acidentalmente viajava no tempo e se via interrogado pelos nazistas na Segunda Guerra e perseguido pela Ku Klux Klan — uma metáfora do opressor se tornando o oprimido. Na parte final, ele estaria entre os vietnamitas no meio da Guerra do Vietnã, fugindo de uma vila bombardeada pelos EUA.
Além de toda a pirotecnia, havia um helicóptero em cena, colocado para voar baixo enquanto a fuga dos personagens ocorria. Mais cedo nesse dia, algumas pessoas da produção, incluindo Dorcey Wingo, o piloto do helicóptero (que tinha experiência real em missões de combate no Vietnã) expressaram preocupação com o uso de pirotecnia em conjunto com um helicóptero voando baixo. Mas os responsáveis não se abalaram.
Inclusive, quando a equipe rodou uma cena anterior, uma explosão preparada na água ocorreu muito próxima de Chen, fazendo-a lacrimejar. Isso levou seu pai a perguntar a um dos produtores, George Folsey Jr., se a sequência do helicóptero colocaria sua filha em perigo. “Não, não é perigoso”, respondeu ele. “Apenas um barulho alto”.
Os alertas também não importunaram John Landis, o diretor desse segmento do filme, famoso por comédias como The Blues Brothers (Os Irmãos Cara de Pau) e Coming to America (Um Príncipe em Nova York). Ele gritou “ação” e Morrow fez como o ensaiado: pegou as duas crianças nos braços e saiu correndo em meio ao caos. Mal sabia ele que esses seriam os últimos momentos de sua vida.
Uma das explosões atingiu a cauda do helicóptero, comprometendo os dois rotores e fazendo o piloto perder o controle. De dentro da aeronave, Wingo não podia fazer nada enquanto seu helicóptero girava desgovernado.
Em pânico, Morrow lançou Renee Chen na água. Ele estava tentando pegá-la de volta quando a aeronave caiu sobre os três atores. Renee foi esmagada por um dos esquis do helicóptero, enquanto Myca e Morrow foram decapitados pelas hélices principais ainda girando. Todos os três atores morreram instantaneamente.
Landis ordenou que as câmeras parassem de filmar e disse a toda a equipe para abandonar o que estavam fazendo e ir para casa imediatamente. Era o pior acidente da história do cinema — e o início de um dos piores traumas de Hollywood.
A investigação
Houve uma série de investigações sobre o caso, as quais levantaram evidências mostrando que a produção do filme tinha diversas irregularidades. As normas da legislação trabalhista infantil proibiam que crianças trabalhassem tão tarde; além disso, faltava um profissional no set para observar as condições de trabalho — não seria admissível que crianças estivessem tão próximas de explosões ou de um helicóptero.
Descobriu-se que, para contornar as regras, Landis e um dos produtores, George Folsey Jr., deram um jeitinho: escalaram crianças que eram filhos de conhecidos, omitiram seus nomes da documentação oficial da produção e as pagaram em dinheiro vivo. Uma secretária de produção recordou que Landis brincou sobre o esquema, dizendo: “Vamos todos para a cadeia!”.
Marci Liroff, diretora de elenco, disse em seu testemunho: “Eu expliquei que contratar crianças para essa cena seria ilegal devido aos horários de gravação. E eu também mencionei que parecia meio perigoso”. Segundo ela, Landis ficou “um pouco desgostoso porque a gente não queria se envolver. Ele disse: ‘pro inferno com vocês. Vamos achá-las nas ruas nós mesmos’”. No tribunal, Landis e Folsey admitiram ter driblado as normas de trabalho infantil, mas seus advogados disseram que não havia como ambos terem previsto o perigo na gravação da cena.
Esse não foi o único problema descoberto sobre as gravações. Landis era descrito no set como um “berrador”, dado a ataques de temperamento e abusos. Foi revelado que, em uma cena anterior, Landis estava insatisfeito com a munição de festim usada e solicitou a troca por munição real, ignorando avisos da produção sobre os riscos da medida.
O julgamento
Cinco pessoas foram formalmente acusadas de homicídio culposo: John Landis (diretor), Dorcey Wingo (piloto do helicóptero), Dan Allingham (gerente de produção), George Folsey Jr. (produtor associado) e Paul Stewart (especialista de explosivos).
Demorou três anos para que os réus fossem julgados. Os diretores John Huston, Sidney Lumet, Francis Ford Coppola, George Lucas, Ron Howard, Billy Wilder e Fred Zinneman, entre outros, escreveram uma carta conjunta defendendo Landis e dizendo que o diretor só era responsável pela função artística de um filme — a segurança era responsabilidade da produção.
Landis contratou um dos advogados de defesa mais bem-sucedidos do país, James Neal, ex-promotor do caso Watergate. Ele havia ficado famoso ao conseguir que a Ford, montadora de carros, fosse absolvida em um caso de 1980 em que três pessoas morreram na explosão de um sedã Pinto. Ele também conseguiu que fosse declarado inocente George Nichopoulous, o médico de Elvis Presley, acusado de prescrever drogas adictivas ao cantor.
O julgamento, como se poderia esperar, foi um espetáculo de sensacionalismo, dado o gabarito dos profissionais envolvidos e ao fato de se tratar de um caso hollywoodiano. John Landis, irritado e impaciente, interrompeu o promotor de justiça Gary Kesselman várias vezes e contradisse testemunhas. Pressionado por seu comportamento, se desculpou e disse que aquela era “a pior experiência de sua vida”.
O livro Outrageous Conduct: Art, Ego, and The Twilight Zone Case conta como era tenso o clima no tribunal. Veja um trecho:
“Talvez a parte mais chocante do depoimento de Landis foi como ele repetidamente tentou minimizar a importância do papel do diretor na realização de um filme. ‘As responsabilidades gerais de um diretor’, ele afirmou, ‘são pela estética ou pelos aspectos criativos de um filme’. Em todas as outras áreas, ele declarou, o diretor deve contar com ‘especialistas’.
‘Eu não sei nada sobre explosivos’, Landis disse, ‘São especialistas em que eu confio para fazer seus trabalhos’. Quando questionado por um dos membros do grande júri se era sua responsabilidade coordenar as atividades no set, Landis partiu para uma longa dissertação sobre regulamentos sindicais e a miríade de pessoas que compartilham a responsabilidade por uma produção. ‘E todo mundo é responsável’, afirmou Landis. ‘E eles são muito protetores de seus próprios pequenos feudos’.
Então Kesselman e Landis colidiram frontalmente. ‘A autoridade final em termos de câmera, posições de ator, helicóptero, ou seja o que for, naquele set’, Kesselman começou. ‘Não é minha, senhor’, Landis interrompeu. ‘Porque se eu pedir a um ator — eu disser: ‘Por favor, coloque sua mão neste triturador de lixo’, o ator vai dizer: ‘Claro que não’.'”
Foram 69 dias de procedimentos e 71 testemunhas ouvidas, além de nove dias de deliberação por parte do júri. Mas o desfecho foi pouco surpreendente: os cinco réus foram absolvidos de todas as acusações — segundo o The New York Times, “graças a uma acusação conduzida de forma um tanto desastrosa e a um júri que parecia deslumbrado com as celebridades”. Posteriormente, os familiares das vítimas entraram com processos civis contra a Warner Bros., estúdio responsável pelo filme, os quais foram resolvidos com acordos.
Na segunda-feira seguinte ao veredito, John Landis apareceu no programa Good Morning America para criticar a “acusação completamente desonesta e política” da promotora Lea D’Agostino. Em uma entrevista subsequente ao Los Angeles Times, chamou D’Agostino de “grotesca, uma aberração. Ela é muito irrelevante. O que é importante é que o escritório do promotor de justiça de Los Angeles gastou esse tipo de dinheiro perseguindo algo que eles sabem muito bem que é falso”.
O filme
As filmagens com as mortes, hoje amplamente disponíveis na internet, nunca foram usadas no filme. Apesar disso, o segmento estrelado por Morrow, chamado de Time Out, foi mantido. Os outros segmentos foram dirigidos por Steven Spielberg, Joe Dante e George Miller.
Miller abandonou a produção após o acidente e seu segmento foi finalizado por Dante. Já Spielberg encerrou sua amizade com Landis e, ainda na época, pediu mudanças na regulamentação do trabalho em Hollywood. “Nenhum filme vale a pena morrer por ele. Acho que as pessoas estão se posicionando muito mais agora do que nunca contra produtores e diretores que exigem demais. Se algo não é seguro, é direito e responsabilidade de cada ator ou membro da equipe gritar: ‘Corta!'”, disse o diretor de Jurassic Park em 1983.
No período entre as mortes e o julgamento, John Landis filmou o vídeo de Thriller (1983), de Michael Jackson, um dos videoclipes mais importantes da história da música. Também rodou dois filmes inteiros: Um Romance Muito Perigoso (1985), com Jeff Goldblum e Michelle Pfeiffer, e Os Espiões Que Entraram Numa Fria (1985), com Chevy Chase e Dan Aykroyd. Duas comédias.
O que mudou
Apenas dois meses após a tragédia, a Directors Guild of America (DGA), sindicato que representa os diretores de Hollywood, criou seu comitê de segurança. Usando ideias de diretores, produtores, dublês, cinegrafistas e técnicos associados, o comitê publicou uma série de informes de segurança recomendando precauções para diversas situações perigosas em sets, incluindo tiroteios encenados, paraquedismo, explosivos, uso de animais, cenas de perseguição e trabalhos subaquáticos. De acordo com Harry Evans, secretário de assistência executiva do órgão, essas foram as primeiras diretrizes de segurança já emitidas formalmente em Hollywood.
O Screen Actors Guild (atualmente conhecido como SAG-AFTRA), sindicato que representa os atores, adicionou revisões e cláusulas aos seus contratos após o acidente. Em 1987, após o final do julgamento, Mark Locher, porta-voz da entidade, expressou arrependimento pelo acidente e confirmou que as mudanças seriam aplicadas imediatamente. Os novos contratos do SAG agora estipulavam que os atores tinham o direito de se afastar de ambientes de trabalho inseguros e também podiam deixar projetos com preocupações de segurança sem sofrer penalidades.
A Administração Federal de Aviação (FAA) também atualizou suas regras para esclarecer que operações com helicópteros em sets cinematográficos de baixa altitude precisavam de certificado de isenção (“waiver”) adequado. As regras já existiam para aeronaves de asa fixa, mas foram estendidas a helicópteros.
Por fim, em 1987, o Departamento de Silvicultura e Proteção contra Incêndios da Califórnia criou o Programa de Segurança para Cinema e Entretenimento. O programa foi inspirado pelas três mortes, atribuídas em parte ao manuseio inadequado de pirotecnia durante as filmagens. Até hoje, esse programa continua a supervisionar e orientar o uso de pirotecnia em sets de filmagem e televisão.
John Landis, que continua trabalhando até hoje, compareceu ao velório de Vic Morrow. E fez um discurso: “A tragédia bate num instante. Mas o cinema é imortal”. Não foi aplaudido.
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