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Duas cientistas brasileiras foram condenadas e multadas por falar a verdade

A dupla do canal NuncaVi1Cientista tentou combater a disseminação de uma informação falsa (e absurda) sobre diabetes. E acabou punida pela Justiça brasileira.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 set 2024, 21h45 - Publicado em 16 set 2024, 14h04

Esta é uma carta ao leitor excepcional, exclusiva para o site da Super, sem versão impressa.

A história abaixo já saiu nos principais jornais e portais de notícias brasileiros, mas não custa contar de novo. Em julho de 2023, a bióloga Ana Bonassa e a farmacêutica Laura Marise, do canal de divulgação científica NuncaVi1Cientista, publicaram um vídeo explicando que a diabetes não é causada por… vermes.

Soa absurdo, mas foi necessário, já que havia um perfil público no Instagram divulgando essa informação falsa. Esse perfil, diga-se, permanece na ativa, e agora vende até um e-book com um protocolo de tratamento que promete combater esses platelmintos fictícios e curar a doença. Trata-se de charlatanismo, puro e simples. 

O inacreditável é que, de acordo com a Justiça, você pode comprar o tal livro e seguir um tratamento ineficaz à vontade o que você não pode mesmo é assistir a Marise e Bonassa refutando seu conteúdo. (Bonassa, diga-se, fez mestrado e doutorado conduzindo experimentos sobre diabetes em ratinhas. Não haveria especialista mais gabaritada para a tarefa.)

No último dia 23 de agosto, uma decisão da 1ª Vara do Juizado Especial Cível de São Paulo mandou a dupla tirar o vídeo do ar e determinou que elas deviam R$ 1.000 de indenização por danos morais ao influenciador criticado. Um print do perfil do tal nutricionista aparecia no vídeo, e a juíza considerou essa exposição inaceitável. 

A magistrada entendeu que o canal teria “extrapolado o limite do consentimento” (o que não faz o menor sentido, dado que o perfil é público) e prejudicado a venda de seus serviços (o que é ótimo, já que se trata de um tratamento sem eficácia comprovada nem qualquer liberação de uma agência reguladora como a Anvisa).

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Detalhe: o Ministério Público havia emitido um parecer classificando a hipótese dos vermes como “tese extremamente questionável, excêntrica e esdrúxula, já afastada pelas técnicas medicinais há muitos anos”, e a própria juíza afirmou que influencer apresenta “curas e teses no mínimo duvidosas”. Por que, então, impedir que a população acesse a refutação?

Diabetes é um tema pivotal de saúde pública. Cerca de 20 milhões de brasileiros, o equivalente a 10% da população, têm essa doença crônica. A maioria de nós conhece alguém que maneja o tipo 2 – o mais comum, 9 em cada 10 casos – com restrições alimentares, exercício físico e injeções de insulina. 

Digo “maneja” porque, como a própria Ana explica, a diabetes não tem cura. Para o tipo 2, existe prevenção, que é o óbvio: praticar exercícios físicos e comer bem. A genética tem sua parcela de culpa, então vale ficar de olho no histórico familiar. Vermes? Não, obrigado.

A doença não é causada por nenhum lombrigão branquelo e comprido confortavelmente instalado no seu pâncreas. Isso é um fato, um fato muito bem verificado tão verificado quanto o formato esférico da Terra. Questioná-lo é terraplanismo.

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Existe, sim, um verme achatado de nome científico Eurytrema pancreaticum que curte viver na glândula produtora de insulina de mamíferos ruminantes como os bois. Essa é a provável origem do boato. Mas essa criaturinha não afeta humanos, como bem apuraram os jornalistas do projeto Aos Fatos.

Essa decisão do Judiciário abre um precedente perigosíssimo em um país em que divulgadores de ciência usam as redes sociais, entre outras coisas, para preencher as lacunas severas de alfabetização científica da população brasileira que são resultado de séculos de desigualdade socioeconômica, políticas públicas fracassadas na educação, racismo e outros males crônicos.

Somos um país com deficiências severas na educação básica e no ensino médio – deficiências antigas e dificílimas de entender, criticar e sanar, mas que podemos verificar de maneira rasa dando uma olhada rápida em indicadores como os do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (mais conhecido pela sigla Pisa).

73% dos estudantes brasileiros estão abaixo do nível de conhecimento sobre Matemática que a OCDE considera mínimo para que se possa exercer a cidadania satisfatoriamente. Na avaliação de Leitura, são 50%. Na avaliação de Ciências, são 55%.

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Ou seja: mais da metade da população em idade escolar do país, nas palavras dos organizadores do Pisa, tem algum prejuízo na hora de “participar plenamente da vida social, econômica e cívica em um mundo globalizado”. Pedagogos e outros acadêmicos têm uma série de críticas justas a esse indicador, mas elas não invalidam essa conclusão básica. 

Para fins de comparação, entre os estudantes da OCDE em si um clubinho de países desenvolvidos ou em desenvolvimento que preenchem pré-requisitos como democracia e comprometimento com os direitos humanos , esses números são 24% em Matemática, 22,6% em Leitura e 21% em Ciências.

Ser um cidadão funcional envolve, claro, ter uma caixa de ferramentas mínima para não cair em picaretagens como o “protocolo de desparasitação natural e eficaz”, algo que exige conhecimentos básicos sobre biologia humana, nutrição, saúde pública etc.

Um projeto de divulgação científica como o NuncaVi1Cientista é algo espetacular justamente porque consiste em duas acadêmicas pós-graduadas em universidades publicas uma fatia minúscula da população fornecendo esses conhecimentos para uma população que, muitas vezes, não pôde obtê-los na escola.

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Deveria ser obrigação do Judiciário proteger pessoas como elas, que combatem déficits brasileiros gravíssimos e a pilantragem corrente nas redes sociais com bom humor e evidências científicas. Cheguei tarde à notícia porque ela coincidiu com a correria do envio da edição de setembro da Super para a gráfica. Mas registro a solidariedade da revista a Marise e Bonassa.

“Vivemos numa sociedade dependente da ciência e da tecnologia, mas que não sabe quase nada disso. Trata-se de uma clara receita para o desastre.” Carl Sagan falou isso dos EUA nos anos 1980, mas a frase é perfeita para o Brasil de hoje. Quem não quer ajudar, por favor, não atrapalhe.

Bruno Vaiano
Editor-Chefe
bruno.vaiano@abril.com.br

 

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