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Gangues de vírus preferem bombardear o organismo durante o inverno, provocando as gripes e os resfriados. Ao sofrer esses atentados, o melhor é ficar sob as cobertas. Ou bandidos muito mais perigosos podem entrar em ação.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 31 Maio 1992, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Era uma noite fria e (por isso) tenebrosa. Bandidos das piores espécies estavam de tocaia. A vítima parecia pressentir o perigo, já que sua face empalidecia, enquanto o nariz ia se tornando cada vez mais vermelho, como o de um palhaço. Porque o sangue corria para se concentrar ali, naquela área empinada do perfil, oferecendo todo o seu calor. Era necessário aquecer o ar aspirado, senão, a menos de 36 graus Celsius, ele danificaria os pulmões. Além disso, o jato de gás frio estava atrapalhando o desempenho de milhões de cílios, espalhados pelo corredor que conduzia à nobre região pulmonar, aonde nenhum estranho deveria ter acesso. Em condições normais de temperatura, feito excelentes policiais, esses cílios expulsaram diversos microorganismos intrusos. No entanto, surpreendidos pela mudança do clima, eles começavam a vacilar — era a hora ideal para os vírus do resfriado e da gripe atacarem. E, no rastro deles, talvez viessem inimigos muito mais ardilosos.

Este parece ser o início de uma história de suspense — e é. Só que baseada em fatos verídicos, que se repetem especialmente em épocas ou regiões de tempo instável. “Os cílios do aparelho respiratório podem se adaptar ao frio, desde que o termômetro não fique oscilando, de hora para outra. Porque, na verdade, o que eles não suportam são as mudanças bruscas de temperatura”, explica a pneumologista Ilma Aparecida Paschoal, professora da Universidade de Campinas, no interior de São Paulo. “Aqui, por exemplo, chega-se a marcar diferença de 20 graus Celsius entre a madrugada e o meio-dia”, reclama a médica do clima da cidade em que sempre viveu; contudo, orgulhosa de ser campineira, ela nunca cogitou sair de lá.

Os resultados de sua pesquisa, porém, já atravessaram as fronteiras brasileiras: há seis anos, Ilma se dedica a estudar os tais cílios, que revestem as vias aéreas, do nariz até os brônquios. Nesse trecho da trajetória do ar pelo organismo, é possível encontrar cerca de duzentos cílios de guarita, em uma única célula. Ao ampliá-los cerca de 80 000 vezes, com o microscópio eletrônico, a cientista consegue observar detalhes no interior desses soldados. E faz questão de evitar confusões: “Esse nome, cílios, não quer dizer que sejam pêlos”. De fato, nem pensar em associá-los aos cabelinhos do nariz: os cílios, invisíveis a olho nu, são estruturas vivas, que lembram a cauda dos espermatozóides.

“Cada um deles se movimenta como o braço de um nadador”, descreve a especialista. “Primeiro, estica-se para o alto, emergindo de uma camada de água salgada; depois se encolhe, mergulhando novamente.” Sobre esse líquido, bóia uma outra camada, menos espessa e bastante grudenta — a do muco, que os batimentos ciliares vão deslocando na direção da garganta, onde é engolido, ou até o nariz, para ser assoado. “Colados nessa substância, tanto microorganismos invasores como partículas de poeira acabam arrastados para fora”, diz Ilma.

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Segundo a médica, observadas no microscópio eletrônico, as tropas de cílios parecem fazer uma ola, a onda que ergue a torcida nas arquibancadas dos estádios. Contudo, quando a temperatura esfria de repente, é como se o movimento passasse a ser realizado em câmara lenta. Portanto, se agirem rápido, os micróbios nocivos, que flutuam no ar, podem levar vantagem. Ao surgir uma dessas ocasiões — menos raras no inverno do que em qualquer outra estação — a estabanada gangue do resfriado costuma ir logo invadindo o organismo. Ela é composta por mais de cem variações de vírus, que os cientistas classificam, por sua vez, em dois grandes grupos, o dos adenovírus e o dos rinovírus. Todos eles têm um objetivo em comum: infectar as células ciliadas das vias aéreas superiores, ou seja, do nariz e de verdadeiras câmaras de ar que cercam esse órgão, os chamados selos paranasais.

Por onde passa, a galgue baderneira causa estragos: só o contato com substâncias tóxicas dos vírus provoca microscópicas bolhas na mucosa nasal, que então fica dolorida. Metido nessa encrenca, a primeira reação do nariz é aumentar o volume do líquido que recobre suas células — daí o fluido transparente que não pára de escorrer, quando alguém está resfriado. É a coriza. A segunda tentativa de defesa é incrementar a secreção de muco, para reter os invasores. Só que o muco, por ser pesado, afunda na camada inferior de água e sal; então, em vez de segurar os vírus, gruda os cílios uns nos outros. O pior, contudo, ainda está para acontecer. Como quaisquer vírus, os do resfriado escravizam o núcleo das células que infectam; assim, passam a ser fabricadas cópias e mais cópias dos invasores, até o acúmulo dos clones pressionar e arrebentar as paredes celulares. Adeus, então, célula ciliada. “Depois de um resfriado, a gente observa áreas completamente peladas na mucosa”, conta Ilma Paschoal. São estradas livres do policiamento dos cílios, em que outros agentes infeciosos podem passar tranqüilos. Como, por exemplo, o vírus da gripe, se eventualmente estiver por perto.

Resfriado e gripe nunca foram palavras sinônimas. As divergências, aliás, começam pelos vírus causadores dessas doenças. Centenas deles podem ser responsáveis pelo resfriado. Já a gripe tem um único culpado. Mestre na arte do disfarce, ele é tão mutante quanto o HIV, acusado pela Aids. Por esse motivo, os cientistas penam atrás de vacinas eficazes, uma vez que é quase impossível prever qual será a próxima máscara do bandido, ou seja, sua próxima mutação genética. Perto dele, aliás, a gangue do resfriado, cuja ação se limita às redondezas do nariz, parece um grupo de criminosos novatos. O vírus da gripe, afinal, não se contenta em estropiar as células ciliadas das vias respiratórias. Seus passeios pelo resto do organismo terminam em enormes desastres. De carona na circulação sangüínea, ele sai jogando moléculas de toxinas por todos os lados, às quais o corpo reage invariavelmente com a febre. Eventualmente, faz uma escala na conjuntiva, como se chama a membrana ocular. A visita provoca lágrimas, ao pé da letra.

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O vírus da gripe ainda se hospeda nas articulações. Estas incham temporariamente. Mas enquanto isso dura, o pobre gripado sente cada um de seus ossos como uma porta emperrada. O menor movimento do corpo é realizado aos trancos e barrancos. Dos pés à cabeça, tudo dói. Na realidade, o inchaço ou edema, como preferem os cientistas, não tem a ver diretamente com os vírus invasores, mas sim com o contra-ataque do organismo — a inflamação. Trata-se de um recrutamento das células de defesa, os glóbulos brancos do sangue, para irem combater em regiões julgadas em crise pelo sistema imunológico. Um nariz infeccionado por microorganismos merece essa chamada de emergência. “Para facilitar a chegada do exército defensor, os vasos sangüíneos se dilatam, abrindo o caminho”, explica o médico otorrino Sung Ho Joo, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Fica na cara, portanto, quando alguém está com gripe ou resfriado: basta notar o nariz inchado. “Isso. somado ao excesso de muco, obstrui a passagem do ar”, informa o especialista coreano, naturalizado brasileiro. Ele próprio reconhece: “A sensação é angustiante”. Contudo, sempre que possível, mantém seus pacientes longe dos chamados remédios descongestionantes, para desentupir o nariz. Alguns desses medicamentos tentam resolver o problema contraindo os vasos sangüíneos. “Além de serem perigosos para pessoas com pressão alta, uma vez passado o efeito da droga, o organismo pode reagir de uma maneira curiosa, produzindo muito mais muco do que antes. O tiro sai pela culatra”, resume. Por sua vez, as populares gotinhas de soro fisiológico apenas umedecem as narinas e, desse modo, são aprovadas pelo médico. Ele, no entanto, gosta de ensinar o que chama de velho truque: “Quando você lava o rosto, o simples contato da água com a pele da face dispara um reflexo nervoso”, conta, gesticulando como se estivesse diante de uma pia. “A ordem do cérebro é para a mucosa nasal secretar aquele líquido salgado, que nada mais é do que o soro natural. Isso nunca falha”, assegura. Às vezes, contudo, os otorrinos não conseguem dispensar o auxílio das drogas descongestionantes.

O fato, porém, é que um reles nariz entupido é capaz de transformar a vida em um calvário. “A pressão do ar se eleva dentro dos seios paranasais e a pessoa fica com a sensação de que a cabeça pesa uma tonelada”, descreve Ho Joo. “Quando olha para baixo, a ilusão é de que o cérebro pode escorregar pela testa.” Mas isso é pouco, perto da dor de uma sinusite, o nome que os médicos dão para a inflamação dessas câmaras de ressonância em volta do nariz. “Como qualquer secreção do corpo humano, o muco das vias respiratórias é um excelente ambiente para bactérias crescerem”, diz o médico. Nem todos os casos de sinusite, nem sequer de rinites — como são conhecidas as inflamações do próprio nariz — são causadas por bactérias. No entanto, é bem provável que exista uma bactéria, ou melhor, milhões de bactérias por trás das complicações de um resfriado ou de uma gripe.

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As bactérias são exemplos de oportunistas. “Por causa das substâncias dos vírus, o sistema imunológico tende a concentrar seus esforços para cima deles, enquanto as bactérias se multiplicam”, conta o infectologista David Emerson Uip, da Universidade de São Paulo. Na verdade, apesar de provocarem literalmente dores de cabeça, os vírus da gripe e do resfriado sempre são derrotados pela defesa do corpo humano no prazo máximo de sete dias. “Gripe que já está durando mais do que uma semana não é gripe”, afirma Uip. “No caso, já são as complicações que surgiram em decorrência da primeira doença.” Na sua opinião, os médicos devem se preocupar somente com esses males oportunistas. “Os vírus do resfriado ou da gripe, afinal, serão irremediavelmente os fracassos da história.”

Ele chega a apelar para vacinas contra a gripe, em pacientes considerados frágeis — pessoas com deficiência imunológica, crianças asmáticas, idosos, por exemplo. Isso, no entanto, exige do infectologista um faro de detetive. “Você nunca sabe qual a cara do vírus da gripe que vai atacar no Brasil, no próximo inverno”, exemplica. “Por isso, o certo é verificar como aconteceu em outros países e tentar prever o futuro, descobrir quais vírus entraram no país.” Para Uip, o resultado do trabalho não é um chute: “Uma única aplicação anual da vacina reduz 70% da incidência de casos”, revela.

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