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Campanha de cigarro usa propaganda disfarçada e ilegal

Fotos no Instagram mostram influenciadores com cigarros em diferentes situações, numa campanha supostamente realizada pela fabricante de cigarros Souza Cruz

Por Guilherme Dearo, de Exame.com
Atualizado em 27 out 2017, 13h42 - Publicado em 26 out 2017, 14h40

Nas últimas semanas, fotos de pessoas com cigarros começaram a aparecer repetidamente no Instagram, sempre com uma mesma hashtag. À primeira vista, as imagens parecem retratos normais. Mas várias fontes disseram ao site EXAME que, na verdade, trata-se de uma campanha publicitária disfarçada, que estaria sendo realizada pela Souza Cruz, interessada em promover, de forma furtiva, sua marca de cigarros Kent.

A marca não aparece claramente nessas imagens (exceto em uma, em que é visto um maço da marca Kent) e os posts não são identificados como publicidade. Se forem mesmo uma campanha publicitária, isso é ilegal, já que a lei 10.167/2000 proíbe propaganda de cigarro em qualquer meio.

A reportagem entrou em contato com a Souza Cruz, que não negou o teor da reportagem. O comunicado enviado ao site pela empresa diz:

“A Souza Cruz cumpre fielmente a legislação brasileira. Iniciativas realizadas pela empresa junto ao seus consumidores estarão sempre relacionadas exclusivamente à exposição dos produtos nos pontos de venda e respectiva comercialização, conforme autorizado por lei.”

Os posts, ao não se revelarem como anúncios ou “posts patrocinados”, também estariam infringindo a regulamentação do setor, estabelecida pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que determina que posts em rede social com caráter publicitário devem deixar sua natureza clara.

Imagens de pessoas com cigarros apareceram em maior volume a partir de meados de outubro. As fotos trazem sempre a hashtag #aheadbr. Algumas citam também o perfil @ahead.br no Instagram. São ao menos duas dezenas de pessoas diferentes aparecendo nessas fotos.

Os retratados são jovens “influenciadores”, com perfis no Instagram que possuem de 2 mil a 100 mil seguidores. As fotos têm qualidade e senso estético elevados. Segundo participantes da ação, que falaram à reportagem sob a condição do anonimato, essas fotos foram clicadas por profissionais.

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Nelas, aparecem pessoas com cigarro à mão ou na boca, aceso ou não. Um maço azul, da marca Kent, também aparece numa publicação (confira algumas dessas imagens ao final desta reportagem).

Pessoas envolvidas com essa suposta ação publicitária falaram ao site EXAME, também com a condição de não ser identificadas. Segundo elas, a Souza Cruz contratou a agência de ativação Hood para criar a campanha. A Hood tem acordo operacional com a FlagCX. Esta última define-se como uma “plataforma de disrupção criativa”. No grupo da FlagCX estão empresas como a agência CuboCC e a produtora audiovisual The Kumite.

Pessoas envolvidas na ação disseram ao site EXAME que as negociações começaram em agosto. Naquele mês, a Hood teria abordado interessados em participar da campanha, que duraria três meses. O perfil: jovens que fumavam e circulavam pelo mundo da moda, da música e das baladas paulistanas.

Segundo essas mesmas pessoas, os influenciadores deveriam postar oito fotos por mês entre outubro e dezembro. O cachê, calculado de acordo com o número de seguidores de cada um, variaria entre 3 e 8 mil reais (pagos em duas parcelas).

As mesmas fontes dizem que a recém-criada plataforma Ahead.br (da hashtag usada nos posts) – que diz ser “uma rede que conecta jovens empreendedores, apoia iniciativas e inspira novas experiências na moda, música e design” – seria uma intermediária para a campanha. A marca Kent não tem perfil no Instagram.

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A Ahead.br também se define como “uma rede de projetos, festas e histórias poderosas de pessoas que estão criando a realidade que desejamos viver”.

O perfil da Ahead.br no Instagram foi criado em agosto, o que coincidiria com o começo das negociações entre marca e agência. Desde então, segundo pessoas ligadas ao projeto, a Ahead.br tem promovido festas com esses jovens. Numa delas, na semana passada, os últimos contratos teriam sido assinados.

Na ocasião, a Hood ainda teria esclarecido que a diferença entre os cachês (que estava incomodando alguns participantes) se devia às variações no número de seguidores.

Fotos obtidas por EXAME mostram uma das festas da Ahead, em São Paulo. Nas imagens, um estande da marca Kent aparece diversas vezes dentro da festa.

Já em outra imagem postada no fim de setembro no Facebook, as hashtags #kent e #aheadbr aparecem juntas. Na imagem, a pessoa fuma um cigarro e fala sobre “digital influencer”. A pessoa ainda se define como “Garota Kent”.

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O site EXAME apurou que o domínio “aheadbr.com.br” foi comprado em junho de 2016 e está registrado em CNPJ que pertence à CuboCC e tem como titular no registro a Sam Transmedia. Esta, na Junta Comercial, está listada como empresa ligada à Flag Network Participações Ltda. (dona da FlagCX e da CuboCC). O site ligado ao domínio aheadbr.com.br está atualmente indisponível. Mas uma busca no Google permite ver que, quando estava ativo, ele citava o perfil da Ahead nas redes sociais.

Representantes da FlagCX foram procurados e avisados do teor da reportagem, mas não responderam até o presente momento.

Já representantes da Hood disseram à EXAME que a Ahead não é criação da Hood. É, sim, uma plataforma de ativação musical criada em 2016 no Brasil e que, em 2017, passou a ser ativada por ela. Ela também afirmou: “a Hood reforça seu compromisso com o cumprimento da legislação vigente”.

Segundo as fontes ouvidas, cigarros da marca Kent teriam sido distribuídos gratuitamente nas festas. Se isso for verdade, é ilegal também. A mesma lei que proíbe anúncios de cigarros estabelece que eles não podem ser dados como brindes ou amostras, vendidos de maneira avulsa ou combinados com outros produtos.

A reportagem obteve depoimento de uma das pessoas que assinaram contrato com a Hood para a ação da Kent. Ela diz que aceitou participar da ação porque “o dinheiro era bom”, embora houvesse um receio de fazer uma propaganda no Instagram que seria velada e sobre tabaco.

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Essa pessoa disse que a Hood tinha prometido, a ela, “festas e várias coisas legais”, que “ia bancar projetos do pessoal” e também oferecer uma espaço de coworking aos participantes. Esse espaço seria em um galpão no bairro paulistano de Santa Cecília.

 

Anúncios proibidos

O Conar diz que fazer um post patrocinado no Instagram sem deixar claro o caráter de anúncio fere o acordo feito entre empresas, marcas e agências de publicidade e que tal ação é passível de investigação e posterior advertência.

Desde 2000, a lei federal 10.167 (que altera e complementa a lei 9.294 de 1996) proíbe publicidade de cigarro e derivados do tabaco em qualquer meio de comunicação, como outdoors, rádio, televisão, revistas e internet.

Até 2011, essa lei fez com que os anúncios ficassem restritos aos pontos de venda de cigarro, como balcões de bares. Apenas cartazes e painéis poderiam ser usados pelas marcas e somente na parte interna desses estabelecimentos.

Antes, à luz da lei de 2000, empresas de tabaco tentaram alegar que a internet (o e-commerce) era ponto de venda, não meio de comunicação. Portanto, poderia ser local de anúncios. A Anvisa precisou baixar uma resolução garantindo que a internet era meio de divulgação.

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A lei 12.546 de 2011 proibiu até isso. Os pontos teriam de vender o cigarro sem qualquer anúncio que conversasse com um potencial consumidor. Advertências sobre os males do cigarro e tabela de preços tornaram-se itens obrigatórios nesses lugares. Desde então, marcas de cigarro buscado formas criativas para divulgar seus produtos no ponto de venda.

Como o artigo terceiro da lei diz que fica válida apenas a “exposição dos referidos produtos nos locais de vendas”, as marcas têm empregado displays que deixam à mostra os maços e chamam atenção. Luzes, mosaicos e proximidade com outros produtos estão entre os recursos usados para isso.

Além disso, as marcas tentam aproveitar as brechas de interpretação da lei. Uma frase ou imagem no espaço limitado do display de venda ou ao lado da tabela de preços pode ser considerada um anúncio?

A marca de cigarros Marlboro, da Philip Morris, testou essa questão entre novembro de 2012 e janeiro de 2013, numa campanha global que chegou ao Brasil. A empresa colocou frases do tipo “talvez vou conquistar minha liberdade”, ao lado de imagens de jovens no próprio display onde os cigarros eram oferecidos no ponto de venda.

O Conar alertou a empresa sobre a infração. Em 2014, o Procon multou a marca em mais de 1 milhão de reais. A Philip Morris Brasil recorreu, mas foi condenada.

Jovens como alvo

Especialistas consultados pelo site EXAME dizem que essa suposta ação no Instagram com jovens é um retrocesso no combate ao tabagismo ao buscar influenciar jovens consumidores.

Tânia Cavalcante é médica do Instituto Nacional do Câncer (órgão ligado ao Ministério da Saúde) e secretária-executiva da Conicq (Comissão Nacional Para Implementação da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco).

Ao site EXAME, ela disse que é comum marcas de cigarro visarem os jovens consumidores. Além disso, o tabagismo é considerado doença pediátrica por atingir jovens com menos de 18 anos.

“O cigarro causa o tabagismo, que é uma doença reconhecida pela OMS (no CID10, a Classificação Estatística Internacional de Doenças). É uma doença caracterizada pela dependência química de nicotina. 80% dos fumantes começam a fumar antes dos 18 anos”, diz. Assim, não é difícil entender por que as marcas do ramo visam o público jovem.

Documentos internos de grandes empresas, confiscados durante litígios e tornados públicos pela ONG americana Campaign for Tobacco-Free Kids, mostram que crianças e adolescentes são o alvo das marcas. As campanhas são pensadas para eles.

“Os adolescentes de hoje são os potenciais consumidores regulares de amanhã”, diz a Philip Morris em documento interno. Já a Lorillard Tobacco, em outro documento, afirma que “a base do nosso negócio são os estudantes do ensino médio”.

“Eles criam um cerco: patrocínio de festas, atividades para jovens, embalagens coloridas, posicionamento nos pontos de venda ao lado de balas e chicletes, aditivos para tirar o gosto ruim e facilitar a primeira tragada. Tudo isso é um conjunto de estratégias para garantir um plantel de novos consumidores”, afirma Tânia.

Retrocesso

Segundo Adriana Carvalho, advogada que trabalha na organização não-governamental Aliança do Controle ao Tabagismo e especialista nas leis sobre o tema, no caso da marca Kent, se for provado que houve campanha, todos podem acabar respondendo na Justiça – da marca à agência de publicidade, passando pelos contratados que publicaram as fotos no Instagram.

Tanto o Ministério Público (federal ou estadual) quanto o Procon e a Anvisa podem investigar a ação da Souza Cruz e verificar se houve irregularidades.

“Não adianta dizer que apenas fumantes foram chamados para a campanha. A lei não fala sobre vender para quem já fuma ou para quem não fuma. Além disso, é óbvio que a campanha, feita por fumantes, tem poder de influenciar aqueles que ainda não fumam”, analisa Adriana.

Segundo ela, dar cigarros em festas também é violação. Ela explica que festas que duram poucas horas e feitas em ambientes restritos como faculdades e eventos fechados costumam ser visadas pelas marcas de cigarro. Como a fiscalização é geralmente inexistente nesses locais, as ações indevidas se propagam. Ela afirma que, além de distribuírem cigarros, algumas marcas criam estandes provisórios para vender o produto aos frequentadores da festa.

Segundo Adriana, a Anvisa está, após consulta pública, analisando embalagens e displays de venda e o modo como eles podem acabar virando publicidade. A ideia é que o Brasil siga protocolos internacionais e, como países como Reino Unido, França e Austrália, adote uma embalagem padronizada e despersonalizada, que tiraria o caráter “anunciativo” do logo da marca.

Conteúdo originalmente publicado em Exame.com

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