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E se a venda de órgãos fosse legalizada?

A fila de espera seria menor, é verdade. O problema é que a maioria dos brasileiros só participaria do mercado vendendo – nunca comprando.

Por Guilherme Eler
Atualizado em 17 dez 2019, 13h16 - Publicado em 15 mar 2019, 14h51

Caso fosse necessário abrir a carteira para receber um órgão novo, quem primeiro sentiria na pele seriam os 34 mil brasileiros que atualmente aguardam por um transplante. Hoje, todo o sistema é regulado pelo SUS e funciona a partir de doações voluntárias – sobretudo de falecidos. Quando se detecta a morte cerebral de um paciente, sua família é notificada e, ainda nos momentos iniciais do luto, questionada sobre o destino dos órgãos. Em 2018, 57% das famílias entrevistadas autorizaram as doações, garantindo 8.728 novos órgãos e confirmando o status do Brasil de maior sistema público de transplantes do mundo.

Para ser contemplado com um órgão, é preciso pegar uma fila que vale para o país inteiro. Ela considera três fatores: compatibilidade sanguínea, tempo de espera e gravidade da doença – pacientes em condições de saúde piores têm preferência.

Se houvesse um comércio aberto e legalizado, toda essa lógica cairia por terra. Afinal, se desse para ganhar dinheiro com os órgãos de um parente falecido, o número de famílias que escolheriam entregá-los de graça iria despencar. Corações, pulmões e rins se tornariam uma espécie de herança.

“A venda criaria distorções no sistema que existe de doação de falecidos”, diz Paulo M. Pêgo Fernandes, professor da Faculdade de Medicina da USP e presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos). Hoje, 85% dos transplantes de rins e de fígado acontecem com órgãos de cadáveres. Com a venda liberada, o número de cirurgias entre vivos passaria a abocanhar uma parcela maior. Afinal, receber um rim ou uma parte do fígado de alguém disponível a qualquer hora para fechar negócio é mais interessante que aguardar por um óbito ideal.

Seja como for, a fila de espera por transplantes diminuiria, já que, com mais oferta, é mais fácil achar um órgão compatível a tempo. Foi o que aconteceu no Irã, que liberou o comércio de rins entre os cidadãos em 1997. Dois anos depois, o tempo de espera por rins por lá quase desapareceu. O país persa, único no mundo em que vender e comprar rins é uma prática legalizada, tem a 22ª maior taxa de transplantes entre vivos – posição alta para um país que tem apenas o 94º PIB per capita mundial. Segundo o IRODaT (Registro Internacional de Doação de Órgãos e Transplantes), são 11 transplantes de rim por milhão de habitantes, contra 5,5 do Brasil, que ocupa a 42ª posição.

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Uma fila menor implicaria também menores custos de tratamento. Apenas 7% dos municípios brasileiros têm clínicas e hospitais que fazem hemodiálise, a filtragem do sangue para quem ainda não tem um rim que funciona 100%. Isso obriga pacientes renais a percorrer longas distâncias para se tratar.

Outros custos permaneceriam os mesmos. O SUS gasta R$ 68 mil a cada cirurgia de transplante de fígado. E continuaria gastando, já que o livre-comércio não afetaria essa parte. Além disso, cada órgão tem um prazo de validade, o chamado tempo de isquemia. Rins, que correspondem a 67% dos órgãos transplantados no Brasil, duram só 48 horas fora do corpo. O comércio legalizado não mudaria esse aspecto. Hoje, a Força Aérea ajuda no transporte de órgãos pelo território nacional todo. E ela continuaria fazendo isso. Mas provavelmente o serviço não estaria disponível para alguém que pôde pagar para furar a fila de um transplante de fígado. Quem comprasse um órgão fatalmente teria de arcar com as despesas de transporte dele.

Os gastos não parariam por aí. Boa parte de quem compra teria de fazê-lo mais de uma vez na vida. 40% dos transplantados de coração morrem em até nove anos se não fazem um novo transplante.

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Tráfico e desigualdade

Segundo estimativas da GFI (Global Financial Integrity), ONG focada no rastreio de fluxos financeiros ilícitos, 10% de todos os transplantes de órgãos no mundo acontecem via tráfico – mercado que movimenta até US$ 1,7 bilhão por ano. Como não poderia deixar de ser, rins são o caso mais comum: 10 mil vão parar no mercado negro anualmente, segundo estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2012. No mercado ilegal do Brasil, não é raro achar quem peça R$ 200 mil por um. Se vender fosse algo previsto por lei, a ilegalidade também diminuiria.

Críticas à venda de órgãos afirmam que o modelo só faria aumentar a desigualdade social, já que os mais pobres acabariam induzidos a comercializar seus órgãos com os mais ricos – seja para sobreviver ou deixar uma herança. Em países do norte da África e Oriente Médio, onde há mais casos de venda ilegal, não é incomum que pessoas abram mão de órgãos para saldar dívidas.

No documento Declaração de Istambul sobre Saúde Global, a OMS argumenta que “o comércio de transplantes tem como alvo doadores empobrecidos e vulneráveis”. “Isso leva inexoravelmente à desigualdade e injustiça, e deve ser proibido”, completa.

No Irã, o preço mínimo do rim estabelecido pelo governo era de US$ 5 mil (R$ 19 mil) em 2016. No fim das contas, a livre concorrência poderia fazer com que o preço no Brasil estivesse dentro desse patamar, bem mais baixo que os R$ 200 mil do mercado ilegal. Ainda assim, o rendimento médio no Brasil é de R$ 2.270. Ou seja, a grande maioria dos brasileiros só poderia entrar nesse jogo como vendedor mesmo, jamais como comprador.

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