“Eu virei cobaia de um remédio contra o câncer”
Jornalista conta como descobriu um câncer avançado - e resolveu se colocar à disposição da ciência em um tratamento experimental.
O mal que me devorava, eu o descobri meio que por acaso. Em meados do verão de 2013, comecei a sentir uma dor no meio do peito, à altura do esterno. Dores passam, se são dores inconsequentes. Esperei que passasse. Não passou. Ao contrário, aumentava a cada dia. Fui ao médico, fiz exames. Estava tudo bem com o coração, meus pulmões de não fumante continuavam limpos. O que seria? Angústia, talvez? Uma dor psicológica? O médico mandou colocar um saco de gelo no local, o que fiz durante duas semanas. Mas aquela dor quente, latejante, aquela dor viva foi ficando mais intensa, até roçar a fronteira do insuportável.
O médico pediu uma tomografia.
Nunca havia feito tomografia, nunca me internara em hospital. Aos 50 anos de idade, nem gripado ficava. Nadava todos os dias e, menos de um ano antes, fizera um check-up vitorioso: o médico me cumprimentara pelos resultados.
A manhã em que fiz a tomografia, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, aquela foi uma manhã linda da última curva do verão de Porto Alegre. Era um dia azul e amarelo, de ar fino, e dirigi até o hospital cantarolando, apesar da dor. Lembro da canção que rolava no rádio: ¿Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção. Esconda um beijo pra mim nas dobras do blusão¿. Nenhuma vicissitude momentânea me tiraria a alegria de viver. Pelo menos eu achava que seria momentânea.
Horas depois, deitado na cama da tomografia, vi o radiologista se aproximar e perguntar:
– Você me autoriza a lhe dar um contraste e fazer exame de abdome?
Estremeci ao ouvir isso, mas autorizei. Terminado o exame, ele voltou.
– Por que você pediu a tomo do abdome? – perguntei, levantando da cama, com o caninho do contraste ainda fincado no braço.
– Vou te mostrar – ele disse, e pediu que o acompanhasse até a tela do computador. Apontou para a imagem: – Esses são os teus rins.
Então vi.
Havia uma mancha escura no rim esquerdo, que parecia ter o dobro do tamanho do direito. Arregalei os olhos.
– É câncer – disse. – Estou com câncer.
O médico tentou contemporizar:
– Não há certeza disso, é preciso falar com o teu médico.
– É câncer – repeti. – E, se você descobriu por causa dessa dor no peito, estou com metástase…
– Não se sabe, não se sabe com certeza. Vamos falar com teu médico…
Caminhei até uma cadeira, esperando que viesse a enfermeira e me tirasseo tubo do braço. Em um minuto, pensei no sofrimento que me esperava. Senti-me um pouco tonto. Olhei para a porta do banheiro, ali perto, e decidi ir até lá para lavar o rosto e me recompor. Mas, antes que pudesse levantar,o mundo escureceu. Desmaiei. É vergonhoso, sei, só que verdadeiro: desmaiei de horror.
Minhas previsões estavam tristemente corretas. Tinha câncer de rim com metástase e sofri um bocado, de lá para cá. Meu rim esquerdo foi extraído, e agora descobri que isso é mais uma das coisas que tenho em comum com Pelé, além da minha categoria como ponta-direita recuado. Tomei algumasdas drogas existentes no Brasil contra câncer de rim. A maioria funcionou por três ou quatro meses, mas logo as espertas células mutantes do câncer aprenderam como voltar a se reproduzir. A folhas tantas, um médico me informou:
– Se tudo der certo, você tem, no máximo, mais cinco anos.
Se tudo der certo…
Foi nesse momento que descobri o maravilhoso mundo das cobaias. Vou contar como é: agora mesmo, há cientistas que estão estudando uma única e minúscula molécula, a mesma molécula que observam já há 20 ou 30 anos de suas vidas. Esse estudo paciencioso e criterioso, somado a outros tantos igualmente pacienciosos e criteriosos, resulta na confecção de drogas com poder suficiente para derrotar vários tipos de câncer. Em breve, e espero que seja realmente em breve, eles descobrirão a cura de todos os cânceres, que o câncer não é um só, é legião, porque são muitos.
Ocorre que, em determinada etapa desses estudos, o remédio precisa ser testado em seres humanos. É aí que entramos nós, as cobaias felizes. Quando você é selecionado para participar de um desses estudos, recebe otratamento mais avançado de que a ciência dispõe. Uma dona de casa que mora em Bangu, na Zona Norte do Rio, por exemplo, recebe, gratuitamente,o mesmo tratamento pelo qual pagarão xeiques sauditas, industriais alemães ou executivos japoneses.
O problema é que a dona de casa de Bangu dificilmente terá acesso a esses experimentos, por causa da burocracia do Estado brasileiro. Os empecilhos para a aprovação de estudos no Brasil são tamanhos que, quando são enfim liberados, os testes estão fechando. Assim, com o apoio da empresa em que trabalho, a RBS, mudei-me para Boston, nos Estados Unidos, a fim de participar de um estudo liderado pelo Dana Farber, hospital ligado à Universidade de Harvard.
Quando cheguei a Boston, sentia dores que quase me impediam de caminhar. Já na primeira infusão do medicamento, as dores foram diminuindo. Hoje, passados seis meses, não sinto dor alguma, os pontos da doença estão sumindo e até ganhei uns quilos, mas isso não vai para a conta do medicamento, isso é resultado do american way of life, com seus donuts vespertinos e suas panquecas matinais.
Escrevo sobre esse american way of life para a Zero Hora e para o meu blog, e falo a respeito na Rádio Gaúcha. Vivo bem aqui com minha mulher e meu filho. Tudo está dando certo, espero que tudo continue dando certo e que, logo, logo, cobaias satisfeitas como eu sejam bem-sucedidas e que essa droga seja aprovada para salvar vidas no Brasil e no mundo. Continuo na luta, mas é assim que tem de ser. A vida é de luta, mas, como já disse, também é bela. Por isso, vez em quando me pego cantarolando a mesma canção daquela manhã azul e amarela de Porto Alegre: “Meu bem, quando a vida nos violentar, pediremos ao bom Deus que nos ajude, falaremos para a vida: vida, pisa devagar meu coração, cuidado, é frágil”.