Futebol , queremos raça!
O Rei do Futebol era afro-brasileiro. Talvez por isso muita gente acredite que os negros levam vantagem com a bola nos pés.Mas há evidência científica ou isso é racismo dissimulado?
Fabio Volpe
Os argentinos bem que tentam emplacar Maradona, mas o resto do mundo não duvida de que o melhor jogador de futebol da história foi um negro chamado Édson Arantes do Nascimento. Boa parte da força da Seleção atual campeã do mundo vem dos pés de jogadores afro-franceses. Outros países europeus, como a Polônia e a Alemanha, naturalizaram africanos e podem, pela primeira vez, levar atletas negros a uma Copa. No Brasil não é difícil encontrar torcedores que deslizam no racismo ao pedir aos berros reforços para o clube do coração: “Tá faltando negão nesse time!”
Os exemplos acima servem para jogar lenha numa fogueira que ainda não foi controlada pela comunidade científica: seriam os negros superiores aos brancos na prática de determinados esportes? Há dois anos, o jornalista americano Jon Entine lançou um livro sobre o tema, que esquentou ainda mais esse debate: Taboo – Why Black Athletes Dominate Sports And Why We·re Afraid To Talk About It (Tabu – Por que os atletas negros dominam os esportes e por que nós estamos com medo de falar sobre isso). Para comprovar a tese que defende no título da obra, Entine selecionou números que impressionam:
• Na NFL, liga de futebol americano, 65% dos atletas são negros.
• Nas Olimpíadas de 1984, 1988, 1992 e 1996 (o livro foi lançado antes dos Jogos de Sydney, em 2000), todos os 32 corredores que chegaram à final dos 100 metros rasos tinham ascendência africana.
• Um afro-americano tem uma chance em 4 000 de jogar basquete profissional na NBA. Já um americano branco tem apenas uma chance em 90 000.
É claro que o nosso futebol, esporte que ainda dá traço no ibope americano, não aparece com destaque no livro. Mas a idéia de Entine de que os negros levariam vantagem em modalidades que exigem explosão muscular e velocidade também pode ser transferida para os gramados. Na teoria, jogadores com ascendência africana conseguiriam se aproveitar disso onde se exigem piques mais rápidos, melhor impulsão e maior agilidade.
O problema é que, na prática, o predomínio dos negros no futebol não ocorre como em outros esportes. Os especialistas explicam que o futebol é uma das modalidades mais inadequadas para constatar qualquer tipo de diferença racial, já que o biotipo da pessoa não prevalece sobre a habilidade motora. Ao contrário de esportes em que altura (como no basquete ou no vôlei) ou grande influência de uma única aptidão física (como nas corridas de atletismo) são fatores decisivos, o futebol é acessível a qualquer praticante. Se você não é alto, pode perfeitamente ser um grande lateral; se não tem velocidade, mas boa visão de jogo, cabe com tranqüilidade no meio-de-campo. Devido a essa característica democrática fica difícil apontar uma qualidade genética decisiva no futebol.
A ciência explica romário
Mas, deixando de lado a capacidade técnica e a habilidade motora e isolando apenas o fator físico, os negros teriam mesmo vantagens ao entrar em campo? O assunto está longe de ter o consenso que Jon Entine anuncia em seu livro. Especialista em fisiologia do exercício e professor da Escola Paulista de Medicina, Paulo Zogaib é categórico: “Cientificamente, não há comprovação. Além do mais, os países da antiga Cortina de Ferro, que só tinham atletas brancos, dominaram as Olimpíadas durante décadas. Usavam doping? Usavam, mas os outros países também”.
Um dos profissionais de medicina esportiva mais respeitados do Brasil tem outra opinião. Victor Matsudo, presidente do Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul, garante que já existem evidências de que a composição muscular de negros e brancos é diferente. No corpo humano há fibras musculares de contração rápida, usadas em momentos de explosão e velocidade, e fibras de contração lenta, mais solicitadas em instantes que exigem resistência.
Num estudo realizado em 1986 pelo médico Claude Bouchard, da Universidade Laval, no Canadá, foi constatado que os negros teriam mais enzimas que estimulam as contrações nas fibras rápidas. “Eles teriam, por exemplo, mais facilidade nas provas de curta duração no atletismo”, diz Matsudo. Aplicada ao futebol, essa tese poderia explicar, por exemplo, as incríveis arrancadas de Romário – nos bons tempos, pelo menos – ou a dificuldade dos zagueiros em conter a velocidade de um Edílson.
O problema é que essa tese baseia-se naquilo que os especialistas costumam chamar de estudo clínico e não epidemiológico. Ou seja: foi feito com um grupo pequeno de voluntários e não com uma população expressiva – Bouchard examinou 23 estudantes caucasianos e 23 negros. Além disso, não foi possível concluir se a diferença encontrada era genética ou influenciada pelo estilo de vida dos estudantes.
Victor Matsudo diz que também existem outras diferenças raciais que dizem respeito à anatomia humana. A gordura corporal dos negros tende a ser menor que a dos brancos, enquanto a densidade óssea segue o padrão contrário. Com menos gordura, que ajuda o corpo a flutuar, e ossos mais pesados, os atletas com ascendência africana teriam dificuldade nas provas de natação.
Essa diferença anatômica pouco importa no futebol, mas existe outra que pode ter uma certa influência. O calcâneo, osso que forma o calcanhar, teria uma posição mais vertical no corpo dos negros, formando um ângulo melhor, uma espécie de alavanca, para saltos rápidos ou arrancadas. “No futebol essa é uma variável importante na agilidade do atleta”, diz Matsudo.
Diferenças nos genes?
Quem volta os olhos apenas para a parte física e genética costuma se esquecer dos aspectos sociais, culturais e econômicos que envolvem a questão. Nos Estados Unidos, o sucesso nos esportes é um caminho para muitos jovens negros e pobres chegarem à universidade. No livro Taboo, o sociólogo John Phillips, da Universidade do Pacífico, na Califórnia, levanta outra tese curiosa: “Os atletas negros estão concentrados nos esportes a que têm acesso. Se estivessem espalhados por todos os esportes, a aparente superioridade deles desapareceria”. Seguindo esse raciocínio, a falta de grandes nadadores negros seria apenas resultado da falta de piscinas em bairros carentes. Prova disso seria a primeira medalha de ouro olímpica de um negro na natação, o surinamês Anthony Nesty, em 1988: em seu país só havia uma piscina de competição.
Entidades do movimento negro ressalvam a importância de conduzir esse debate com cuidado. “Se um dia houver um controle democrático sobre a ciência, tudo bem. Mas quantos negros têm acesso aos estudos científicos que buscam revelar essas diferenças genéticas?”, pergunta Wilson Honório da Silva, coordenador do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo. “A exaltação do sucesso do negro nos esportes pode ser usada para passar uma falsa imagem de que vivemos num paraíso racial.”
Afinal, da exaltação à discriminação basta um jogo, como o que custou a Copa de 50 para o Brasil e a tranqüilidade para o goleiro Barbosa, acusado de ter errado no lance decisivo, o gol de Ghiggia. Arnaldo da Silva, outro coordenador do Núcleo de Consciência Negra, recorda bem esse fato: “Por causa do Barbosa, desde criança escuto que goleiro negro não presta”.
A França “multicolor”
A conquista da Copa do Mundo, em 1998, pela França acabou tendo um efeito político inesperado: composta de jogadores das mais diferentes origens étnicas, a equipe francesa tornou-se o melhor argumento contra as teses racistas da extrema-direita local
ZINEDINE ZIDANE
Seus pais são argelinos
MARCEL DESAILLY
Nasceu em Gana, na África
LILIAN THURAM
Nasceu na pequena ilha de Guadalupe, nas Antilhas
STÉPHANE GUIVARC·H
É da Bretanha, região francesa onde há um movimento separatista
CHRISTIAN KAREMBEU
É do povo canaque, da Nova Caledônia, arquipélago da Oceania, pertencente à França
YOURI DJORKAEFF
Seu avô era armênio e fugiu do genocídio contra seu povo durante a Primeira Guerra Mundial
BIXENTE LIZARAZU
É basco. O País Basco é uma região não-independente encravada na Espanha e na França
* Além desses titulares, entre os reservas da Seleção Francesa de 1998 estavam Robert Pires (filho de português), Patrick Vieira (senegalês), Alain Boghossian (armênio), Thierry Henry e Bernard Diomède (os pais de ambos são de Guadalupe), Bernard Lama (nascido na Guiana Francesa) e David Trezeguet (filho de argentino).