Morto de fome
Laboratórios americanos querem começar os testes, em 1999, com as drogas que eliminam tumores cortando seu abastecimento de sangue. Sem alimento, a doença regride até desaparecer.
Flavia Natércia
Se você fosse um camundongo, não precisaria mais se preocupar com o câncer. O oncologista Judah Folkman, do Hospital Infantil de Boston, nos Estados Unidos, descobriu a cura para tumores em cobaias. Desde 1997, ele bloqueia a formação dos vasos sanguíneos que irrigam o tecido doente e, literalmente, mata o tumor de fome, curando os ratinhos. Agora, os laboratórios anunciam que começarão a testar as drogas salvadoras em trinta voluntários humanos. Na mesma linha, outros dezesseis laboratórios ingleses e americanos seguiram a pista aberta por Folkman e já começaram a testar dezoito drogas diferentes com efeitos similares.
Porém, os exterminadores mais eficazes, ao menos nos bichos, são mesmo as duas proteínas que Folkman retirou da urina e do sangue dos próprios camundongos: a angiostatina e a endostatina. Os laboratórios EntreMed e Bristol-Myers, que as patentearam, vão solicitar nos próximos meses, com apoio do Institu-to Nacional do Câncer dos Estados Unidos, autorização à Food and Drug Administration (FDA), a agência que regula remédios nos EUA, para começar testes em gente. O uso em seres humanos apresenta riscos e o austero Folkman adverte que, por ora, só curou cobaias. “Não sabemos ainda como vai funcionar no homem”, disse à SUPER. Mas a verdade é que sua técnica está criando a expectativa de ver surgir, neste final de século, uma arma fatal contra a terrível doença que assola a humanidade há pelo menos 2 000 anos.
Cerco à doença
A nova técnica corta a rede de irrigação do tumor.
1. Uma ervilha
No começo, as células cancerosas se multiplicam até atingir o tamanho de uma ervilha. Para crescer além disso, o tumor precisa de muito sangue.
2. Adubo maligno
Para obter sangue, o tecido doente solta proteínas que funcionam como fertilizante. Elas promovem a angiogênese, isto é, o surgimento de novos vasos, criando uma rede de irrigação exclusiva.
3. Comer e crescer
Por esse sistema, o tumor absorve nutrientes e oxigênio e aproveita a corrente sanguínea para espalhar células doentes pelo corpo.
4. A fonte secou
Folkman testou a ação combinada de duas substâncias antiangiogênicas: a angiostatina, que impede a formação de vasos, e a endostatina, que dificulta a passagem do sangue por eles. Em ratos, o tumor desenraizado encolheu até morrer.
O rato roeu o câncer
As duas fotos aqui mostram o mesmo camundongo. Ele foi usado como cobaia pela equipe americana que está testando as drogas angiostatina e endostatina. Na foto da esquerda, dá para ver o tumor no pulmão do animal, como um grande calombo. Na foto da direita, o animal já tinha sido tratado e o tumor sumiu.
O americano Judah Folkman, de 65 anos, descobriu que a ação combinada de duas proteínas de camundongos elimina tumores cancerosos em ratos
Quase 2000 anos de luta
O câncer é conhecido desde a Grécia Antiga.
Século II
O grego Galeno dá o nome de câncer ao tumor, pois os vasos que o irrigam parecem as patas do animal que você chama de caranguejo.
1905
Marie Curie descobre a radioatividade em elementos naturais, que daria origem à radioterapia na década seguinte.
Década de 40
Início da quimioterapia. Pesquisadores tentam, sem sucesso, vencer o câncer com vacinas feitas do próprio tumor.
Década de 60
Judah Folkman desconfia que pode matar o tumor de fome. Em 1994 descobre a angiostatina e, em 1996, a endostatina.
1997
A angiostatina e a endostatina eliminam tumores em ratos. A terapia genética dá os primeiros resultados contra o câncer de coluna.
1998
Entra no mercado a primeira vacina contra o câncer de pele. Onze drogas que atrapalham a formação de vasos sanguíneos estão em testes em pacientes.
Trinta anos de dedicação e paciência
Em 1973, quando analisava um tumor humano implantado em um coelho, Judah Folkman percebeu que as células doentes cresciam apenas se dispusessem de sangue. Deduziu, então, que, sem uma boa rede de abastecimento, o tumor poderia morrer. Bastava bloquear os vasos. Vinte anos de pesquisa depois, achou a angiostatina e, em seguida, a endostatina, as duas substâncias que logo devem entrar em teste em humanos.
Em 1997, testou a ação das duas em ratos, com êxito. Seu sucesso provocou uma corrida de pesquisadores em busca de drogas com efeitos similares. Atualmente o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos e dezesseis laboratórios ingleses e americanos testam outras dezoito substâncias bloqueadoras da angiogênese. Seus alvos são os tumores no pâncreas, pulmão, mama, próstata, rins e reto. Se forem aprovadas pelas autoridades, algumas poderão chegar ao mercado no ano 2000. “Já aprendemos inclusive a construir drogas que interrompem a criação de novos vasos”, diz o oncologista Malcolm Mitchell, da Universidade da Califórnia.
Moderado, Folkman acha que os remédios poderão ajudar a controlar o câncer, mas sem curá-lo. “O mais provável é que a angiostatina e a endostatina sejam usadas juntamente com tramentos como a quimioterapia e a radioterapia”, disse à SUPER. Mas os laboratórios que as produzirão estão eufóricos. “Nossos estudos mostraram”, diz Mary Sundeen, diretora de Pesquisa da EntreMed, “que a endostatina foi muito bem tolerada, em macacos, em doses 100 vezes maior do que as cogitadas para uso humano.” Agora é torcer para que, pelo menos no que diz respeito ao câncer, sejamos como os ratos e os macacos.
Males que vêm para bem
O câncer é um egoísta insaciável. Ele quer aumentar sempre de tamanho, multiplicando suas células. Para isso, o tumor deve crescer sozinho, eliminando a concorrência de tumores vizinhos com uma estratégia dupla. Primeiro, lança proteínas fertilizantes e estabelece sua rede de vasos de alimentação exclusiva. Depois, segrega a angiostatina, que inibe o surgimento de vasos vizinhos, e a endostatina, que estrangula a irrigação de outros tumores.
Folkman conseguiu, nos ratos, desmontar esse equilíbrio entre fertilização e inibição, usando as armas do câncer contra ele mesmo. Em alta dosagem, a endostatina encolheu o tumor até um tamanho microscópico e a angiostatina eliminou de vez o tecido doente. Com três vantagens adicionais: não atacaram células sadias, não foram rejeitadas pelo organismo e tampouco foram vencidas pelas eternas mutações dos tumores.
Os perigos das novas drogas
O remédio aplicado nos roedores inibe a formação de vasos, o que pode ser arriscado para os humanos.
Tamanho
O camundongo, que é do tamanho do seu dedo, tem apenas 25 quilômetros de vasos capilares. Assim, a angiostatina e a endostatina injetadas atingem rapidamente o tumor. No homem, que tem 100 000 quilômetros de vasos, as drogas correm o risco de serem destruídas pelo caminho.
Tiro pela culatra
O homem pode ter reações alérgicas e fadiga. Os cientistas também temem que no organismo humano as substâncias bloqueiem processos sadios de formação de vasos, como acontece na ovulação, na gravidez ou em cicatrizações (veja ao lado).
O sangue que cura
Quando você machuca o dedo, a pele lesada é invadida por células de defesa, os glóbulos brancos, que defendem o organismo do ataque de vírus e bactérias. Atrás delas vêm células reconstrutoras, que refazem o tecido lesado. Entenda o papel da angiogênese na cicatrização de feridas.
Sinal de bifurcação
As células protetoras e as reconstrutoras liberam substâncias que promovem a angiogênese, estendendo novos vasos para o sangue curar a lesão.
Aberto para obras
Os vasos soltam enzimas que desmancham suas paredes na região do machucado, abrindo miniburacos….
Novos capilares
…Pelos quais saem as células, para criar novos ramais de vasos capilares. Por eles passa o sangue que alimenta as células reconstrutoras do tecido.
De volta ao normal
As reconstrutoras refazem a pele. O organismo reabsorve a rede de vasos sanguíneos, pois o perigo de infecção passou. Acaba a inflamação.