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Muita dor

O Brasil é um dos países onde mais se sente dor. Há tratamento para 100% dos casos. Mas a maioria dos médicos brasileiros não sabe disso.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h35 - Publicado em 31 out 2001, 22h00

Rodrigo Vergara

Acredite: os brasileiros convivem com a dor como poucos povos no mundo. E não se atribua isso ao nosso lamacento Congresso Nacional nem às recentes atuações da seleção nacional de futebol. O ponto é que a dor é o primeiro motivo de consultas médicas no país: está presente em 85% dos pacientes atendidos. Nos Estados Unidos, a primeira causa são infecções respiratórias, a dor vem em segundo lugar. Com tanta gente dolorida, era de esperar que médicos e enfermeiros brasileiros fossem especialistas no tema. Não são. Os profissionais de saúde do país estão, infelizmente, mal-informados, e costumam ser contaminados por preconceitos sobre o tema. O resultado é um povo cheio de dor, como revelou pesquisa da Organização Mundial da Saúde realizada em 1993: o Brasil é o segundo pior país da América Latina no quesito dor decorrente do câncer. O estudo comparou a quantidade média de morfina consumida por paciente em vários países.

Segundo o estudo, nossos portadores de câncer recebem um décimo da dose dada aos suecos. “A dor é negligenciada no Brasil”, diz João Augusto Figueiró, psicoterapeuta do Grupo de Dor do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

Mas há uma mudança em curso. Nunca se falou tanto em dor no país e no mundo. Em janeiro, nos Estados Unidos, ela foi considerada o quinto sinal vital. Quer dizer, diariamente, além de temperatura, ritmo cardíaco, freqüência respiratória e pressão arterial, será medida também a dor do paciente. A mudança tem pouco efeito clínico: a dor continua sendo um sintoma, tanto que só pode ser medida pelo relato do paciente. “O efeito é de marketing. Uma vez medida, a dor ganha importância, gera estatísticas e recebe mais atenção”, diz Figueiró.

Em São Paulo, no mês de agosto a prefeitura começou a treinar pessoal para suprir 40 novos centros especializados em dor na cidade. Detalhe: no Brasil inteiro, há apenas 70 unidades de combate à dor, mas o ideal seriam 3 000. Os Estados Unidos possuem 3 400. Há um mês, foi lançada uma campanha publicitária de combate à dor no Estado de São Paulo, nos moldes da campanha contra o câncer de mama, com logotipo próprio e tudo. A idéia é difundir entre a população uma verdade hoje restrita a quem estuda o tema: “Toda dor tem tratamento”, diz a campanha.

As notícias fazem parecer que só agora a classe médica brasileira descobriu o sofrimento causado pela dor, que sempre foi o maior pavor de qualquer doente. E, por incrível que pareça, é isso mesmo. O estudo isolado da dor teve início há apenas 40 anos, e o assunto só há pouco tempo ganhou a atenção merecida, graças a pesquisas que provaram o óbvio: a dor prejudica ou inviabiliza o tratamento e adia a cura. “Os médicos descobriram agora que a dor dificulta o tratamento. O tratamento de doenças infecciosas, inflamatórias ou do câncer evolui melhor sem dor, porque ela reduz a resposta do sistema imunológico”, diz o neurocirurgião Manoel Jacobsen Teixeira, professor da USP e especialista no tema. Pacientes com dor têm alteração do sono e do apetite e são mais sujeitos a complicações como infecções respiratórias.

A dor também dói no bolso. Nos Estados Unidos, os custos diretos (com médicos e tratamentos) e os indiretos (faltas no serviço, queda de produtividade) da dor são calculados em 150 bilhões de dólares ao ano. No Brasil não há contas precisas, mas 22,3% dos pacientes com dor abandonam o emprego, segundo o estudo Master de Dor, a maior pesquisa já feita no país sobre o assunto, editada por Jacobsen, em 1995. O estudo foi desenvolvido tendo por base entrevistas com profissionais de saúde e pacientes, e comprova nosso despreparo.

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É inegável que há muito preconceito. Entre boa parte dos médicos sobrevive a idéia de que toda dor é psicológica. Esse é um mito que perde espaço na medida em que os diagnósticos evoluem. A fibromialgia, por exemplo, era considerada uma dor psicogênica até 1990, quando foi descrita como doença. Um estudo realizado pelo Hospital das Clínicas da USP descobriu causas orgânicas para 99% dos casos de dor pesquisados. Menos de 1% deles não tiveram sua causa apurada e acabaram classificados como psicogênicos. “O diagnóstico de dor psicológica tende a desaparecer”, diz Lin Tchai Yeng, médica fisiatra do Centro de Dor do Hospital das Clínicas. Mas, segundo o estudo Master, isso vai demorar: 30% dos médicos brasileiros acham que dores crônicas são psicogênicas. Pior: para 20% dos médicos entrevistados, dores agudas também são imaginárias.

Somados a outros profissionais que acreditam que essas dores são simuladas pelos pacientes, conclui-se que 43% dos médicos não vêem origem orgânica na dor crônica e 32% não vêem razão para a dor aguda. Trata-se de uma postura renitente dos médicos, que beira a irresponsabilidade e o descaso.

Outro mito é o medo de que o paciente fique viciado em analgésicos. Para 71% dos profissionais de enfermagem, o paciente deve tolerar a dor para evitar excesso de medicação. Em outro estudo, realizado em São Paulo em 1992, foram entrevistados pacientes nos cinco primeiros dias do pós-operatório de cirurgias cardíacas ou abdominais. Metade deles sentia dor na hora da entrevista e, desses, metade não recebera nenhum analgésico nas quatro horas seguintes à cirurgia, embora o enfermeiro tivesse orientação para medicá-lo, “se preciso”.

É fato que analgésicos, principalmente os opiáceos, como a morfina, causam dependência química. Nos Estados Unidos, só em 1998, 1,5 milhão de pessoas ficaram viciadas dessa forma. Mas também é verdade que menos de 5% dos pacientes que tomam analgésicos para tratar a dor viciam-se no tratamento e esses, em geral, têm histórico de dependência química. Além disso, o uso de analgésicos, mesmo em grandes quantidades, não reduz a sobrevida dos doentes, conforme pesquisa divulgada este ano, realizada no hospital londrino St. Christopher’s com pacientes terminais. Apenas torna a vida, ou a sobrevida, mais suportável.

Mas o combate à dor não é importante apenas nas unidades de tratamento intensivo ou no leito de morte. Qualquer dor aguda, se não for tratada devidamente, pode tornar-se crônica. Isso acontece porque a duração da dor aguda modifica os neurônios que a conduzem, transformando-os na própria origem da dor, mesmo que o problema original tenha sido curado.

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Aliás, há uma grande diferença entre as dores aguda e crônica. A primeira cumpre a função biológica de avisar se há algo errado e é fundamental para nos mantermos vivos. Pessoas nascidas com uma doença rara que as impede de sentir dor morrem precocemente. Um dos casos mais bem documentados é o de uma menina canadense que, insensível aos tombos e às colisões que sofria, colecionou ferimentos, queimou-se seguidas vezes e morreu aos 22 anos, vítima de uma infecção nos ossos feridos.

Para o neurologista americano Frank Vertosick, autor de Why We Hurt? (Por que sentimos dor?), a dor aguda é uma professora que nos ensina o que é perigoso. Seres vivos sem capacidade de aprender com as experiências, diz ele, não sentem dor. “Plantas não sentem dor porque não têm comportamento para ser modificado. E animais como formigas não têm dor porque seu comportamento é geneticamente determinado.”

Já a dor crônica não tem função biológica, não guarda relação de causa e efeito e é considerada uma doença. “A dor crônica gera estresse, reduz a imunidade, baixa a produção dos neurotransmissores que produzem sensação de bem-estar e causa depressão”, diz o médico Luciano Braun, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos da Dor. Na população em geral, 4% a 5% tem depressão. Nos doentes com dor crônica, o índice sobe para 30%.

O problema, enfim, é a desinformação. Afinal, o arsenal contra a dor nunca foi tão abrangente. A farmacologia, por exemplo, é cada vez mais eficiente. Além de mais potentes, os remédios são mais específicos, com menos efeitos adversos. Novidades como adesivos que liberam os fármacos através da pele tornaram a administração mais fácil e agora há comprimidos com absorção programada, cuja concentração no sangue não ocorre em picos, evitando intoxicação. Para casos mais graves, é possível aplicar o remédio diretamente no local de ação da dor, por um cateter.

Mas medicamentos não dão cabo de todos os problemas dolorosos da vida. Em alguns casos, eles podem até ser parte do drama: o uso prolongado de analgésicos torna as crises mais freqüentes, porque o cérebro se habitua a não produzir endorfina, um analgésico natural do organismo. Além disso, analgésicos tratam apenas a sensação dolorosa, mas a dor também envolve emoção e consciência. “Quando um cachorro quebra uma perna, ele sente dor física. Mas o homem ferido tem também dor psíquica. O animal sente apenas que algo está errado. O homem sabe que pode ficar afastado do trabalho, que talvez precise de uma cirurgia. A dor se transforma em raiva e desespero. O cão tem dor, o homem sofre”, diz Vertosick.

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Isso se explica pelo caminho da dor no corpo. Quando damos uma martelada no dedo, essa informação segue pelo sistema nervoso rumo ao cérebro. Até chegar ao córtex cerebral – a estrutura mais complexa do cérebro – onde esse impulso será entendido e interpretado como dor, ele percorre a medula e várias estruturas cerebrais. Nesse trajeto estão o tálamo, que localiza espacialmente a dor, o sistema reticular, que regula a resposta ao estresse, e o sistema límbico, onde residem as emoções. Só então, frações de segundo após a pancada, é que a martelada vai ganhar aquela sensação desagradável, típica da dor, e vai gerar raiva ou tristeza.

Ao chegar ao cérebro, o impulso doloroso tem uma segunda função, além de avisar que algo vai mal. Ele dispara o sistema supressor da dor, um mecanismo orgânico de bloqueio. É isso mesmo: nosso corpo é equipado com uma fábrica natural de analgésico, que despeja pelo corpo substâncias como a serotonina e a endorfina, tão potentes quanto a morfina, que geram bem-estar. No entendimento da maioria dos médicos, a dor é resultado do desequilíbrio entre o equipamento de sentir dor e a nossa fábrica de analgésico. Quando o sistema supressor da dor está debilitado, uma canelada parece insuportável. Quando ele está em forma, uma fratura pode passar despercebida. Isso depende de muitas variáveis, desde a condição física até o temperamento do paciente.

Sim, a mente pode controlar a dor. Um modo de medir essa força da psique é a hipnose, uma técnica comum de combate à dor, que a bloqueia sem usar fármacos. Há registros de cirurgias inteiras realizadas apenas sob efeito hipnótico. A técnica também permite situações bizarras, como deslocar a dor do paciente de uma mão para a outra, ou reduzir a área afetada pela dor, do braço para o dedo. Um paciente, a quem foi sugerido que se dissociasse da dor, disse que “deixou seu corpo com as dores na cama e foi para a sala assistir televisão”, afirma a psicóloga Maria Margarida de Carvalho, autora do artigo “A hipnoterapia no tratamento da dor”.

O estresse também interfere na dor. Se for crônico, causa mais dor, porque reduz a produção de endorfinas. Mas, se for intenso, pode ser anestésico: em batalha, muitos soldados ficam insensíveis, mesmo gravemente feridos. A cultura também importa. Num estudo realizado com donas-de-casa, as italianas reportaram mais dor que as alemãs, embora a sensibilidade da pele de todas fosse parecida. “Na África ocorre a trepanação, em que o couro cabeludo e os músculos são cortados para expor uma grande área do crânio. E o sujeito, enquanto o crânio é raspado, fica sentado, calmo, segurando uma vasilha sob o queixo para aparar o sangue”, relata a professora de enfermagem da USP Cibele Andrucioli de Mattos Pimenta, no livro Dor, um Estudo Multidisciplinar (Summus Editorial, 1999).

A educação é, por fim, outra variável importante. Crianças a quem se explica a importância de uma injeção relatam sofrer menos que outras espetadas à força. “Por outro lado, um marido que tem uma mulher solícita a acudi-lo a toda hora ‘aprende’ a expressar mais dor, porque recebe compensação. E ele sente mais dor mesmo, porque presta mais atenção ao estímulo doloroso”, diz Figueiró. Entender a dor, portanto, é tão importante quanto procurar o médico e não aceitar que ele diga que a dor que você está sentindo não existe ou que você tem que se resignar com ela.

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Os objetos que ilustram a reportagem são de autoria da artista Nazareth Pacheco.

Para saber mais

Na livraria

Why We Hurt? The Natural History of Pain

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Frank T. Vertosick Jr. Harcourt, 2000

Dor, Um Estudo Multidisciplinar

Maria Margarida M. J. de Carvalho (org.), Summus, 1999

Dor no Brasil: Estado Atual e Perspectivas

Manoel Jacobsen Teixeira (ed.), Limay, 1995

A Neurologia que Todo Médico Deve Saber,

R. Nitrini, Maltese, 1991

Na internet

https://www.dor.org.br

https://www.stoppain.com

Os passos de 1 a 4 mostram como um impulso doloroso chega à consciência. Os itens à direita apontam as interferências que podem ocorrer no trajeto

1. A lesão

Um ferimento no dedo do pé, por exemplo, gera um estímulo doloroso que ruma ao cérebro pelas células nervosas, cujas terminações cobrem o corpo e atuam como fios, transmitindo impulsos elétricos

2. Caminho exclusivo

Os neurônios que transmitem dor diferem dos que conduzem sensações como o tato, porque precisam de um estímulo intenso para serem acionados

3. Comunicação

No caminho até o cérebro, o impulso doloroso percorre vários neurônios. Para “pular” de um para outro, o estímulo pega carona nos neurotransmissores, substâncias que atuam como mensageiros no espaço entre dois neurônios

4. Cérebro

Aqui, o impulso doloroso percorre várias áreas:

a. Sistema reticular – É ativado em situações de alerta e de estresse. O estímulo doloroso gera uma resposta de ataque ou fuga.

b. Tálamo – Localiza a dor espacialmente no corpo.

c. Sistema límbico – Centro das emoções, é ele que dá ao impulso doloroso seu caráter desagradável.

d. Córtex cerebral – É onde mora o discernimento. Só quando o impulso doloroso chegar aqui a pessoa terá consciência da dor

Sinal trocado

Células de tecidos lesados liberam substâncias que reduzem o limiar de excitabilidade dos neurônios que conduzem a dor. Com isso, estímulos fracos, como o tato, dão origem a um impulso que será interpretado como dor

Aguda x Crônica

Se permanecer por muito tempo (alguns meses), a dor aguda causa alterações nos neurônios que a conduzem na medula. A partir daí, eles serão a origem da dor, mesmo que o problema inicial seja curado

Congestionamento

A partir da medula, o estímulo tátil percorre os mesmos neurônios que a dor. Assim, esfregar o local da pancada reduz de fato a sensação de dor, porque o tato congestiona o caminho

Sistema supressor

O corpo possui mecanismos que bloqueiam o caminho da dor ao longo do trajeto até o cérebro. Substâncias como a serotonina e a endorfina, por exemplo, atuam como analgésicos e cortam a ação dos neurotransmissores que conduzem a dor

Estresse

Soldados em batalha e atletas em competição sentem menos dor porque a área cerebral que controla a reação de fuga ou ataque também regula alguns dos sistemas supressores de dor

Curto-circuito

O isolante que envolve os neurônios às vezes falha, permitindo trocas de impulsos: um estímulo tátil pode desviar-se para o caminho da dor. Ou, pior, uma ordem do cérebro para mover um músculo pode voltar pelo trajeto da dor. Nesse caso, pensar dói

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