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Uma terapia em xeque

Para os pesquisadores, a terapia gênica é a grande promessa da Medicina para o futuro. Mas a morte de um paciente durante um teste, em setembro passado, nos Estados Unidos, abalou a certeza de curar doenças com a ajuda dos genes.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 29 fev 2000, 22h00

Ivonete D. Lucirio

Na teoria, a idéia é simples.

Pega-se um gene capaz de corrigir uma doença e coloca-se dentro de um vírus, um especialista em invadir corpos alheios para infectá-los. Quando se retira a parte nociva do microrganismo, ele pode ser usado como agente para levar DNA curativo para o interior das células de um paciente. Assim, depois de algum tempo, o gene saudável pode curar o paciente. Bingo.

Isso é o que deveria ter ocorrido com o jovem Jesse Gelsinger, de 18 anos. Ele foi um dos 6 000 pacientes nos quais a terapia gênica vem sendo testada, desde 1988. Internado em 13 de setembro de 1999 no hospital da Universidade da Pensilvânia, Jesse recebeu altas doses de vírus contendo um gene de nome OTC, que poderia ajudar seu organismo a eliminar substâncias tóxicas (veja página 48). Na manhã seguinte, teve febre e alteração nos batimentos cardíacos. No dia 17, morreu. Não se sabe ainda qual foi a causa exata do falecimento.

O fato abriu o debate sobre os riscos da nova terapia, forçando a intervenção dos órgãos americanos responsáveis pelo controle dos testes, a Administração de Alimentos e Drogas (FDA) e o Instituto Nacional de Saúde. Ao investigar o assunto, eles descobriram que, apesar de essa ter sido a primeira morte, diversas experiências vêm apresentando problemas. A lista de complicações, com 650 casos, supera 10% do número total de testes.

Escorregões

Quando se passa da teoria à pratica nem tudo é simples. Mas isso não abala a confiança dos cientistas. “É natural que apareçam obstáculos”, diz o biólogo molecular Joseph Glorioso, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e editor da revista Gene Therapy. “Transplantes de órgãos e outras práticas médicas também provocaram acidentes fatais na fase experimental”, diz. A FDA concorda que nenhum produto novo é totalmente livre de riscos. “Em se tratando de um campo tão promissor, não haverá interrupção nas pesquisas”, disse à SUPER Lenore Gelb, porta-voz da FDA. Afinal, há muitos benefícios em vista.

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O desafio é levar genes da cura até as células

Os pais de Jesse Gelsinger tiveram que controlar a dieta do filho desde criança. Alimentos muito protéicos, como as carnes, eram a principal proibição. O organismo do rapaz morto em setembro na Pensilvânia não conseguia eliminar do sangue a amônia, um resíduo tóxico que sobra depois de a proteína dos alimentos ser aproveitada na digestão. Sua doença tem o nome arrevesado de deficiência da ornitina transcarbamilase (veja infográfico). Quando os níveis de amônia subiam muito, Jesse tinha crises de vômito, problemas respiratórios e delírios.

Por tudo isso, ele resolveu que valia a pena participar dos testes de terapia gênica mesmo sabendo que corria risco e que nenhum teste clínico já realizado levou a uma cura completa. Jesse fazia parte de um grupo de dezoito portadores da mesma doença. Todos receberam uma injeção de adenovírus – o culpado pelos resfriados comuns – dentro dos quais havia o gene OTC, produtor de uma enzima capaz de eliminar amônia. Os outros dezessete, embora ainda não tenham se curado da deficiência de ornitina, estão bem.

Os pesquisadores da Universidade da Pensilvânia ainda estão tentando entender por que apenas o organismo de Jesse não suportou o tratamento. Há algumas hipóteses. Uma delas é que o seu corpo tenha se defendido da injeção de vírus de maneira exagerada. O excesso de anticorpos lançados no sangue teria, de alguma forma ainda desconhecida, levado o paciente à morte.

Engenheiros de transporte

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Seja qual for a causa, o acidente não vai atrapalhar o avanço da terapia gênica. Ela vem sendo aplicada experimentalmente em cada vez mais doentes. Em todo o mundo, o número de pacientes passou de 1 500 em 1996 para 3 000 em 1997, chegando a 6 000 no ano passado. Hoje está claro que o problema central dessa nova maneira de curar são os micróbios que levam os genes benéficos para dentro do organismo – chamados de vetores pelos cientistas.

“O grande desafio é encontrar vetores mais eficientes”, diz o geneticista molecular Sérgio Dani, da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Eles devem entregar sua carga benéfica sem provocar a ira do sistema imunológico. O ideal seria eliminar todo o DNA dos microrganismos, deixando-os carregar apenas o pedaço terapêutico dentro deles. “Quanto menos genes o vírus carregar, menor será o risco”, diz Dani.

Também se buscam vetores alternativos. Há quem pense nos plasmídeos, que são fragmentos genéticos das bactérias. A vantagem é que são menos agressivos que os vírus. Só não são muito competentes como mensageiros. Mas os cientistas descobriram que, cobrindo os genes bacterianos com um invólucro de gordura, eles se tornam invasores mais hábeis e quebram a barreira das células.

A cura brasileira para a tuberculose

Em 1998, a Organização Mundial da Saúde registrou 3,8 milhões de casos novos de tuberculose. E o mais assustador é que 90% dos doentes são resistentes a pelo menos uma das três drogas existentes hoje para tratar a infecção. Cerca de 5% já não apresentam melhora nem depois de tomar o trio completo de remédios. A solução talvez esteja em um tratamento por meio de genes que combatam a doença de dentro das células. De fato, pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, desenvolveram uma terapia gênica promissora (veja infográfico). “Ela deverá tratar aqueles casos em que as drogas convencionais não funcionam”, diz o imunologista Célio Lopes Silva, coordenador do trabalho. “Mesmo nos casos em que elas ainda são eficientes, a cura poderá chegar mais cedo. O tempo poderá cair de seis para dois meses”, explica Silva. Por enquanto, a nova terapia foi testada apenas em ratos. Mas os primeiros testes em pacientes humanos brasileiros já têm data marcada: início de 2001.

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Músculos e vetores

Essa não é a única experiência no Brasil. Também na Universidade de São Paulo acaba de começar um trabalho com cães para tratar a distrofia muscular, uma doença que provoca paralisia. “A idéia é retirar células da medula óssea do animal, inserir nelas um gene que corrige o problema e depois recolocá-las no organismo”, diz o geneticista molecular Sérgio Dani, responsável pelo projeto.

Ao mesmo tempo, várias outras instituições, como a Universidade Federal de São Paulo e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trabalham no desenvolvimento de vetores melhores que curem sem pôr em risco o paciente. Assim, o Brasil se soma aos esforços de instituições de pesquisas para que o destino de Jesse Gelsinger não se repita.

ilucirio@abril.com.br

O que pode dar errado

Veja quais são os três principais obstáculos para as experiências dos tratamentos gênicos.

Um ataque desajeitado

O próprio corpo destrói o que deveria curá-lo.

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1. O vírus – do qual se retirou a parte nociva do DNA para não causar doença – entra no corpo e se prepara para invadir a célula, onde vai depositar o gene curativo.

2. Mas o organismo encara o micróbio como inimigo e o ataca, abortando a terapia. Às vezes, o contra-ataque do corpo é tão exagerado que pode destruir células e órgãos, provocando até a morte do paciente. O americano Jesse Gelsinger talvez tenha sido vítima de uma overdose defensiva como essa.

O tiro erra o alvo

Nunca se sabe onde o vírus vai jogar sua carga benéfica.

1. O microrganismo enfraquecido invade a célula e lança lá dentro o gene que deve tratar a doença.

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2. Acontece que não é possível controlar em que parte do genoma o curativo vai aterrissar.

3. Se ele se intrometer na região que controla a proliferação, a célula pode se dividir loucamente e criar um câncer.

Uma praga ressurge

Pedaços adormecidos de vírus podem disparar infecções.

1. Juntamente com o gene curativo, o vírus carrega um restinho dos genes originais, sem os quais ele não consegue se infiltrar na célula.

2. Só que, dentro do núcleo celular, existem pedaços de genes adormecidos de outros vírus, resíduos deixados por infecções passadas.

3. Esses restos podem voltar à ação quando entram em contato com os genes do vírus terapêutico. Assim, pragas adormecidas acordam, proliferam e atacam.

Experiências vão continuar

Apenas alguns testes da terapia gênica foram suspensos até que seja esclarecido qual foi a falha.

O Instituto Nacional de Saúde, dos Estados Unidos, suspendeu os testes em seres humanos em algumas instituições. Numas, os pacientes sentiram-se mal após o tratamento, como no laboratório Schering-Plough e no Centro Médico Beth Israel, em Boston. Na Universidade da Pensilvânia, o jovem Jesse Gelsinger morreu. Mas, segundo Lenore Gelb, porta-voz da Administração de Alimentos e Drogas (FDA), todos terão autorização para prosseguir seu trabalho assim que se esclarecerem as causas dos problemas. A agência americana pretende, daqui para a frente, fiscalizar os testes mais de perto.

Poderia ter dado certo

Saiba como os cientistas pretendiam curar o americano Jesse Gelsinger.

1. Falha química

Na corrente sanguínea de Jesse havia excesso de amônia, um resíduo tóxico produzido durante a digestão. Isso ocorria porque o corpo do paciente não produzia uma enzima, a ornitina transcarbamilase, encarregada de eliminar a substância.

2. Invasores do bem

Os geneticistas primeiro retiraram praticamente todos os genes de um adenovírus causador de resfriado, tornando-o inofensivo.

3. Recheio diferente

Dentro do adenovírus colocaram cópias de um gene humano, o OTC, fabricante da enzimde que Jesse carecia.

4. Na direção do alvo

Depois, injetaram milhares de adenovírus transportadores na artéria de Jesse que levava sangue ao fígado. É nesse órgão que é produzida a enzima que purifica o sangue e elimina amônia.

5. Cura sob medida

No fim, o vírus jogaria o gene saudável nas células do fígado, comandando-as a produzir a enzima. Isso impediria a amônia de se acumular no sangue. Infelizmente, não deu certo

Técnica versátil

Várias doenças poderão ser tratadas com a terapia.

• Câncer – Será possível evitar que as células se multipliquem exageradamente.

• Hemofilia – As células passarão a produzir as substâncias que coagulam o sangue.

• Distrofia muscular – Os músculos debilitados por problemas genéticos voltarão a funcionar.

• Problemas cardíacos – O músculo do coração será fortalecido, além de se evitar o acúmulo de gordura nas artérias.

Ataque redobrado

Como funciona a terapia brasileira contra a tuberculose.

1. Ao ser introduzido num organismo, o bacilo da tuberculose produz antígenos, substâncias que avisam o corpo da invasão. Sabe-se que alguns genes geram antígenos mais fortes.

2. Estes genes poderosos são colados a um plasmídeo, pedaço do DNA de uma bactéria. O plasmídeo com o gene é ingetado nos músculos.

4. Ao entrar nas células do doente, o DNA do bacilo gera muitos antígenos. O sistema de defesa do corpo, que já havia sido ativado pela presença do invasor, redobra sua ação. Ele entra em alerta máximo e liquida os causadores da tuberculose.

Vacina feita de genes

No futuro, elas poderão prevenir doenças contra as quais não há defesa hoje, como a Aids e a hepatitite.

Além da terapia, que é uma forma de tratar a doença depois que ela já está instalada, os pesquisadores também trabalham para criar vacinas gênicas com o objetivo de prevenir males antes que aconteçam. Para entender esses novos remédios, lembre-se de que as vacinas comuns contêm micróbios inteiros que, depois de ser enfraquecidos no laboratório, são injetados no corpo para ativar o seu sistema de defesa. Só que cada parte do invasor dispara uma reação diferente e uma resposta tende a anular a outra. As vacinas gênicas contêm apenas as partes do inimigo que provocam os contra-ataques mais eficazes. Os imunologistas acreditam que dentro de alguns anos teremos antídotos desse tipo para combater a hepatite C, a malária, o dengue e, com sorte, até a Aids.

Algo mais

Os transplantes só se tornaram rotina médica no século XX. O que pouca gente sabe é que, muito antes disso, em 1749, o naturalista e fisiologista Luis Duhamel du Monceau conseguiu transplantar com sucesso pedaços da espora de galinhas jovens para a crista. Monceau queria provar que era possível retirar partes do corpo de um animal e colocá-las em outro. Estava certo.

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