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A crise política não é da esquerda nem da direita. É de todo o sistema

O establishment político está ruindo no mundo todo, e abrindo espaço para radicais: Syriza na Grécia, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil.

Por Maurício Horta
Atualizado em 31 out 2016, 18h58 - Publicado em 3 jun 2016, 22h00

“Bundões! Oportunistas!”, gritaram manifestantes quando o senador Aécio Neves e o governador Geraldo Alckmin chegaram à Avenida Paulista, no maior protesto de rua dos últimos tempos. A hostilidade contra dois expoentes da oposição indicava que o protesto de 13 de março ia além da crítica ao governo de então. Era um sintoma de uma profunda descrença no establishment político – aqueles partidos e sobrenomes que despontaram na redemocratização do País e, desde então, lideram governos e oposições. 

Mas não existe vácuo na política. Quando o sistema todo está em crise, alternativas ganham força nas margens. É aí que emergem outsiders – como o deputado e militar da reserva Jair Bolsonaro, mais conhecido por sua cruzada antigay e pela defesa de salários mais baixos para mulheres. No mesmo dia 13 de março, em Brasília, Bolsonaro subiu num trio elétrico. Lá de cima, elogiou o golpe de 1964, defendeu a posse de armas para “todo cidadão de bem”, prescreveu o fuzil 762 como “cartão de visita” ao MST e esbofeteou um Pixuleco. Por fim, deu um pontapé no boneco. A multidão o ovacionou com gritos de “mito, mito”. 

Tal “mito” é o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro, com 464,5 mil votos. No Brasil, só fica atrás de Tiririca (1 milhão) e Celso Russomanno (1,5 milhão) – outros habitantes das margens da política. Sua aparente força, no entanto, pode ser enganadora. Conforme uma pesquisa Datafolha de 29 de fevereiro, uma candidatura presidencial sua não passaria de 6% das intenções de votos, perdendo para Aécio (24%) e para a soma de votos brancos e nulos (18%). 

Ainda assim, não se deve ignorar o poder de outsiders num momento de desencanto com o establishment. Pelo contrário. Na Grécia, a esquerda radical do Syriza aniquilou os dois partidos que se revezavam no governo desde sua redemocratização, em 1974. No Reino Unido, o nanico Partido Nacional Escocês, radical de esquerda, tomou 53 das 59 cadeiras reservadas à Escócia no Parlamento britânico. À direita, o ultraconservador Lei e Justiça venceu as eleições parlamentares da Polônia já em 2015 – apenas quatro anos depois de ser criado. Nos EUA, Donald Trump surge como o “mito” local. 

A candidatura de Trump, diga-se, é menos enigmática do que aparenta: ela fala diretamente para uma “América profunda” branca e de baixa escolaridade, que perde espaço num país cada vez mais multicultural. Esse setor começou a perder seu “sonho americano” ainda nos anos 1990, quando fábricas passaram a transferir sua produção para países de mão de obra mais barata, sobretudo México e China. A queda no padrão de vida não foi sentida imediatamente porque uma grande oferta de crédito permitia viver à base do endividamento. Isso até que a crise de 2008 engolisse suas hipotecas e seus cartões de crédito. No ano seguinte, esse grupo de brancos empobrecidos viu um advogado negro de Harvard ir para a Casa Branca, com o apoio de negros, latinos e gays. O ressentimento diante dessa nova ordem “politicamente correta” bateu profundamente: 60% dos brancos pobres dos EUA consideram que a discriminação contra brancos se tornou um problema tão grande quanto a discriminação contra minorias, segundo uma pesquisa do Public Religion Research Institute de 2015.

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Seja no Brasil, seja lá fora, os cidadãos não se sentem representados dentro do sistema político vigente.

O caminho natural para esses insatisfeitos seria o Partido Republicano, de oposição. Mas o establishment republicano tampouco representava seus interesses: é economicamente liberal (ou seja, permite que “empregos americanos” vão para o exterior). Foi então que os insatisfeitos se voltaram para um falastrão que se tornara célebre como apresentador da versão original de O Aprendiz. Um nativista que explora eleitoralmente a xenofobia, o protecionismo, a difamação e a violência política, sob o slogan de “fazer a América grande de novo”: Trump. 

Mas não foi só por isso. É que o desencanto com a política tradicional,  tanto no Brasil como lá fora, tem outro motivador: o fato de candidaturas dependerem de doadores de campanha, geralmente empresas que, depois da eleição, cobram a conta com juros, seja por meio de contratos públicos, seja por meio de leis regulamentadoras favoráveis a eles. Trump vocifera o tempo todo que, por ser bilionário, não precisa de doadores de campanha (apesar de tê-los). É nesse ponto que a história de Trump se cruza com outro “mito” emergido em uma outra crise de establishment – o magnata da televisão italiana Silvio Berlusconi. 

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Tudo começou em 1992, quando a operação Mãos Limpas começou a desmontar uma rede de corrupção. Foi um período de euforia na Itália, que culminou em 3 mil mandados de prisão, envolvendo 438 parlamentares (metade do Congresso). O escândalo levou à morte dos cinco partidos que governavam a Itália desde 1947. A esperança estava no novo, e o novo era o bilionário  Berlusconi, que, com o próprio dinheiro, fundou o partido de direita Forza Italia em 1993. Cinco meses depois, era primeiro-ministro. Governou o país três vezes, num total de nove anos. E a corrupção antiga foi sucedida pela nova: hoje, na União Europeia, o país só é considerado menos corrupto do que a Bulgária.  

A crise do establishment no Brasil compartilha algumas semelhanças com crises em outros países. Em comum, está uma sensação mais ou menos generalizada de que cidadãos não são representados no sistema político existente. No Brasil, o desejo de reformas já havia se expressado nas jornadas de junho de 2013. Resultou em nada. Essa falta de mudanças alimenta frustração, e a frustração alimenta a radicalização. 

Já vimos na Europa a eleição de partidos-movimento que, à esquerda, atacam grandes corporações e instituições financeiras e que, à direita, atacam imigrantes e liberdades individuais. Quando chegam ao poder, porém, esses movimentos de protestos descobrem ser difícil cumprir as promessas que fizeram para se eleger. O “mito”, então, se torna ele próprio parte do establishment – caso de Lula, que já teve seus tempos de figura mitológica. 

A resposta, então, não está na ascensão de novos salvadores da pátria. Está na evolução do próprio sistema político. Na construção de uma democracia cada vez menos permeável à ação de corruptos e de corruptores

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