A mudança no Ensino Médio pode não ser a salvação, mas não é tão ruim assim
Contratar professores não qualificados prejudicaria o ensino no longo prazo, a nova grade daria mais autonomia aos alunos e o turno integral afastaria os adolescentes da rua, mas também os tiraria do trabalho. Saiba por quê.
O Ensino Médio é o grande gargalo da educação brasileira. Com a justificativa de combater os baixos índices de aprendizado e as altas taxas de evasão (1,7% milhão de jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola), o governo federal divulgou um plano de reforma que, dentre as principais mudanças, muda a base curricular comum a todos os estudantes do país e institui o Ensino Médio em regime integral.
A estimativa é que algumas medidas sejam colocadas em prática a partir do primeiro semestre do ano que vem e que, dentro de oito anos, metade das escolas brasileiras de Ensino Médio tenham ensino integral. No entanto, desde o momento em que foi anunciada na tarde de ontem (22/09), a reformulação tem gerado muitas incertezas e, é claro, polêmica, muita polêmica.
– Reforma apressada através de medida provisória
Para entender o porquê do auê em torno da MP, é necessário conhecer alguns princípios básicos do direito. Vamos lá: uma medida provisória é uma licença para que o Executivo promulgue uma lei, um “exercício de poder atípico”. Essa função cabe ao Legislativo, cujo próprio nome indica, é responsável por legislar, elaborar leis. Sendo assim, o caminho para o Executivo criar uma lei não é tão livre, depende excepcionalmente de dois aspectos descritos na Constituição: relevância da matéria e a urgência da questão. Se esses dois critérios forem cumpridos, a MP pode ser editada, passa a ter vigência imediata e é enviada ao Congresso, onde será avaliada em até 120 dias. Se a Câmara e o Senado não aprovarem, ela perde a eficácia, é como se nunca tivesse existido. Entendido? Urgência e relevância.
A MP promulgada ontem para reformar o Ensino Médio cumpre o critério de relevância, já que a elaboração de um plano educacional é fundamental para o desenvolvimento de qualquer democracia. No entanto, muitos juristas acreditam que ela não cumpre o caráter de urgência. Ok, é urgente repensar a educação no país, mas por ser um assunto tão complexo dificilmente poderá ser debatido em profundidade com um prazo de até 120 dias.
O advogado Mauro Catanzaro, especialista em direito constitucional, defende que foi uma medida unilateral e que a urgência da MP vai na contramão da qualidade de análise que um tema tão importante exige. “A mudança foi atropelada, utilizou-se um recurso para não dialogar com os setores educacionais envolvidos e resolver em pouco tempo dentro do Congresso Nacional. Urgente é o debate para que todo mundo seja ouvido, não para que haja uma lei inadequada que pode ser mais prejudicial que benéfica”. Catanzaro afirma que o caso deveria ter sido tratado com uma ampla discussão democrática dentro do Legislativo.
– Professor pode ser uma pessoa de “notório saber”
Como formação técnica é uma das grandes searas do novo Ensino Médio, algumas disciplinas poderão ser ministradas por pessoas que não são professores, chamadas de “pessoas de notório saber”. Esses profissionais serão reconhecidos pelos sistemas de ensino como capazes de ensinar sobre suas áreas de atuação e não precisam prestar concurso para trabalharem em sala de aula. A motivação dessa mudança é ajudar a suprir a necessidade de professores na ampliação do ensino técnico, mas foi criticada por ser uma solução a curto prazo que no futuro pode baixar (ainda mais) a qualidade do ensino. Não há detalhes sobre alterações nas folhas de pagamento nem contratação de novos professores ou pessoas de “notório saber”.
– 600 horas a mais ou a fuga do Ensino Médio
Esqueça os estereótipos de estudante deitado no sofá ou na rua durante toda a tarde. Com a MP, os jovens não terão folga: a carga horária do Ensino médio vai aumentar em 600 horas. Na antiga Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as 800 horas eram distribuídas em 200 dias letivos. Com a nova regra, as escolas terão que oferecer 1.400 horas anuais de aula.
Esse talvez seja o tópico mais controverso da MP. Ensino Médio integral significa que 8 milhões de jovens vão estudar em turno dobrado – 8,07 milhões de jovens estavam matriculados no Ensino Médio em 2015 (1,05 milhões em instituições privadas e 7,02 milhões em públicas). O governo se comprometeu em investir R$ 1,5 bilhão nos dois anos de implementação do projeto. Mas, dadas as condições das escolas públicas brasileiras, a medida levanta dúvidas se o orçamento vai dar conta dos custos de adaptação física dos colégios e contratação de novos professores, por exemplo.
Os custos da integralidade não distinguem o tipo da escola, só do pagador. Quem tem filho em escola particular vai sentir no bolso a MP de Temer. Segundo a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), é provável que o aumento progressivo na carga horária dobre as mensalidades dos colégios.
As 600 horas a mais na escola também têm impacto no mercado de trabalho. Cerca de 60% dos jovens que estudam à noite trabalham durante o dia, de acordo com uma análise feita pelo Instituto Unibanco com base no Censo Escolar. Se levarmos em consideração os 2,3 milhões de alunos matriculados no período noturno da rede pública, 1,3 milhões de estudantes deles trabalham. E se o tempo que eles passam em sala de aula duplicar, eles vão conseguir manter seus respectivos empregos junto com os estudos ou vão largar a escola para continuarem trabalhando?
– Os estudantes são livres, mas nem tanto
O currículo será flexível e adaptado conforme os interesses do aluno e as particularidades de cada rede de ensino. Nenhuma disciplina será extinta pela MP e as escolas terão que oferecer aos alunos o conteúdo determinado pela Base Nacional Comum Curricular, um mapa do que deve ser ensinado em todos os colégios do país. Dentro desse conteúdo, que ainda está sendo discutido, a boa nova é que os estudantes terão espaço para manobras.
Ao contrário das 13 matérias fixas que eram obrigados a seguir no modelo vigente, a partir de agora os alunos poderão escolher uma área para se aprofundar entre cinco grandes itinerários de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional.
Será o fim daquele pesadelo de ser uma pessoa de humanas nas aulas de física. Ao final do 1º ano do Ensino Médio, o estudante pode escolher sua área e dentro dela se aprofunda em cinco disciplinas. Porém, metade da carga horária será de conteúdo obrigatório comum a todos os grupos, com matérias como língua portuguesa, inglês e matemática. Mais demandas de professores e instalações para as escolas, mais opções para os indecisos de plantão, mas mais independência para os alunos seguirem seus interesses e habilidades.