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Críquete: a história e as regras do segundo esporte mais assistido no mundo

Ele nasceu na Inglaterra e evoluiu como um jogo para os lordes. Mas ganhou boa parte do planeta. Na Índia, o esporte movimenta mais dinheiro que a Premier League, do futebol britânico. E em 2028 estará nas Olimpíadas.

Por Rafael Battaglia
17 jan 2024, 09h47

Texto Rafael Battaglia | Design e colagens Luana Pillmann | Edição Alexandre Versignassi

Futebol não foi a única coisa que fisgou a atenção do menino Charles Miller na Inglaterra. Nascido em 1874, em São Paulo, Miller viajou aos dez anos de idade para estudar na cidade de Southampton. Aprendeu a jogar bola, rúgbi e, de quebra, integrou o principal time do esporte que era o mais popular por lá: o críquete.

Em 1894, de volta ao Brasil, Miller apresentou o futebol aos amigos do São Paulo Athletic Club. A associação, criada seis anos antes, nasceu de engenheiros britânicos da São Paulo Railway (a primeira ferrovia paulista) para organizar jogos de… críquete.

Ou seja: o futebol e o críquete chegaram ao país pela mesma via. Mas só um deles se tornou gigante – enquanto o outro existe apenas como brincadeira de rua, o jogo de taco (também chamado de “bets” ou “tomba-lata”) .

Mas essa não é a regra lá fora. O críquete é o segundo esporte mais assistido do mundo – perde apenas para o futebol. É a principal modalidade em diversos países; em especial, na Índia, onde a Indian Premier League (IPL) atrai 700 milhões de espectadores – metade da população do país. Criada há apenas 16 anos, a IPL já é o segundo campeonato mais valioso do planeta, só atrás da NFL (a liga de futebol americano dos EUA).

Estima-se que o críquete tenha 2,5 bilhões de fãs pelo mundo. E esse número pode subir nos próximos anos, já que o Comitê Olímpico Internacional (COI) confirmou que o esporte estará nos Jogos de 2028, em Los Angeles. Vamos entender a sua história, suas regras – e a revolução pela qual ele passou nas últimas décadas.

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O (outro) esporte bretão

O críquete é um jogo de taco, assim como o beisebol. Dois times jogam em um campo oval e têm a sua vez de rebater e de arremessar. São onze jogadores para cada lado.

A equipe batedora coloca dois jogadores em campo por vez. Cada um deles deve proteger a sua casinha (o wicket, uma estrutura formada por estacas de madeira) dos arremessadores. Ao acertar a bola, eles correm e trocam de posição. Cada corrida (run) equivale a um ponto. Na segunda metade da partida, o outro time passa a rebater. Vence quem tiver mais runs no final.

É mais complicado do que isso, claro (veja regras detalhadas no final desta reportagem). Mas deu pra sacar. E quem jogou taco na infância vai notar algumas semelhanças, já que a inspiração ali veio mesmo do críquete.

Elementos principais de críquete: tacos, capacete e bola.
(Arte/Superinteressante)

O esporte é uma fusão de várias brincadeiras medievais com bolas e gravetos. O primeiro registro da palavra “críquete” é de 1597 na cidade de Guildford, sul da Inglaterra. No inglês antigo, “cryce” (ou “cricc”) significava “bastão”. Expressões similares em francês (“criquet”) e em holandês (“krick”) também faziam referência a um pedaço de pau. Mas o jogo logo deixou de ser coisa de criança.

No começo do século 17, já havia adultos que faltavam à missa para jogar críquete – que também se tornou o passatempo preferido da corte do rei Carlos II. Junto às corridas de cavalos, o esporte começou a atrair apostadores. Quem tinha mais dinheiro queria se assegurar de que suas altas apostas dariam retorno. Começaram, então, a apadrinhar equipes formadas pelos melhores jogadores. Assim nasceram os times profissionais.

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Em 1787, foi criado o Marylebone Cricket Club (onde Charles Miller jogaria anos mais tarde), formado por aristocratas de Londres. No ano seguinte, eles desenvolveram as Leis do Críquete – um conjunto de 42 regras detalhadas do esporte, atualizadas de tempos em tempos.

Em clubes como o Marylebone, o críquete evoluiu como um esporte de elite. As partidas eram silenciosas, cheias de normas – e longas. Poderiam durar até cinco dias, com intervalos para descansar e tomar um chá. E, mesmo depois de todo esse tempo, o jogo ainda poderia terminar empatado, para o delírio da torcida (rs).

No final do século 18, o críquete se espalhou pelas colônias britânicas, de carona com os soldados ingleses. E não demorou para que times se formassem Império Britânico afora: Austrália, Nova Zelândia, Índia, Caribe… “Os países que jogam críquete hoje têm aquele elemento de querer se vingar dos ingleses”, disse ao site Vox Brian Lara, ex-atleta do time Índias Ocidentais, formado por atletas 15 países caribenhos. As equipes viajavam para a Inglaterra para enfrentar os donos da casa em tests matches – as longas partidas de até cinco dias.

Em 1909, Inglaterra, África do Sul e Austrália criaram a Conferência Imperial de Críquete (ICC, na sigla em inglês) no Campo Lord’s, a casa do Marylebone (e que, por décadas, foi o quartel-general mundial do esporte). Os tests atraíam multidões – mas, no fim, tinham clima de amistoso. Eram jogos isolados, que não faziam parte de uma competição global, algo que só surgiria anos depois – com as mulheres.

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Em 1958, nasceu o Conselho Internacional de Críquete Feminino, um órgão paralelo ao ICC criado para organizar os tests das mulheres, que já rolavam desde os anos 1930. Em 1973, veio a primeira Copa do Mundo feminina – e do esporte como um todo. Reuniu sete países e foi vencida pela anfitriã, a Inglaterra. (Em 2005, a entidade se juntaria ao ICC, hoje chamado “Conselho Internacional de Críquete”.)

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A edição masculina veio dois anos depois, em 1975. Ambos os torneios aconteceram em um novo formato. Mais curto, ele limitava a partida a 60 overs (a sequência de seis bolas de um lançador) por equipe. Ganhou o nome de one-day (“um dia”; hoje, o limite é de 50 overs).

Jogadora da seleção de críquete da Austrália, a maior potência do críquete feminino: das 12 finais da história da Copa do Mundo, a equipe esteve em nove – e venceu sete.
(Arte/Superinteressante)

A Copa do Mundo serviu para mostrar que a excelência no esporte não estava apenas em mãos britânicas. Pelo contrário: jogando em casa, os ingleses perderam as duas primeiras finais para as Índias Ocidentais. Na terceira edição, em 1983, caíram nas semis – a campeã foi a Índia, que sediou o torneio seguinte. A Inglaterra só ganharia seu primeiro título mundial em 2019.

O campeonato também consagrou o formato one-day, que passou a ser o padrão-ouro das competições pelo mundo. A duração menor que a dos test matches atraiu mais pessoas aos estádios e facilitou a transmissão pela TV. E toda essa exposição transformou os atletas em celebridades – caso de Imran Khan, que liderou o Paquistão na conquista do título de 1992 (e que acabaria se tornando presidente do país em 2018).

Mas o críquete ainda não estava curto o suficiente.

A revolução indiana

No começo do século 21, o críquete crescia mundo afora. Mas o esporte vivia uma crise no Reino Unido, e custava a atrair novos fãs. Em 2001, uma pesquisa revelou que o principal motivo da baixa adesão, sobretudo entre os mais jovens, era a longa duração das partidas (jogos one-day podem durar até 7h).

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Foi então que Stuart Robertson, gerente de marketing do Conselho de Críquete da Inglaterra e País de Gales, sugeriu um formato mais curto, de 20 overs por equipe (em vez de 50). Não era uma ideia inédita: muitos britânicos jogavam dessa forma depois do expediente. Mas ainda não havia disputas oficiais nesse molde.

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Beleza. Só faltava combinar com os russos – digo, com os ingleses. Por 11 votos a 7, o conselho aprovou um novo campeonato, cujo formato foi batizado de Twenty20 (T20, “vinte-vinte”, em referência aos overs). O torneio estreou em 2003 – e foi um sucesso. Os jogos passaram a ter 3h, o que facilitou a venda de direitos de exibição para emissoras de TV (que, por sua vez, atraíram mais patrocinadores).

A primeira Copa do Mundo de T20 veio em 2007. Mas nem todos os países compraram o formato logo de cara. A Índia, por exemplo, mandou uma equipe repleta de novatos, para cumprir tabela. Só que o país venceu a competição – e o estilo T20, mais dinâmico, caiu nas graças dos indianos. A final contra o Paquistão foi o 10º evento esportivo mais assistido no mundo naquele ano.

Embalados com a vitória, a Índia criou sua própria liga de T20 em 2008: a IPL. Ela é composta por apenas dez times, que disputam todo ano 74 partidas, num intervalo de dois meses. Nesse período, a Índia vira o Brasil em época de BBB – com um público sete vezes maior que o nosso.

Isso movimenta uma grana alta. Em 2022, a IPL vendeu os direitos de transmissão dos jogos (pela TV e pela internet) por US$ 6,2 bilhões até 2027. Ou seja: cada jogo nesse período vale US$ 15 milhões. Nesse quesito, o críquete indiano só perde em valor para a NFL, cujas partidas valem US$ 17 mi (para comparar, os direitos de transmissão de cada jogo da Premier League, primeira divisão do futebol inglês, custam US$ 11 mi).

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O jogador Virat Kohli, a maior estrela do críquete indiano. Tem 265 milhões de seguidores no Instagram e uma fortuna de US$ 140 milhões. É um dos 100 atletas mais bem pagos do mundo.
(Arte/Superinteressante)

A IPL dita os rumos do calendário mundial de críquete. O torneio, afinal, atrai craques do mundo inteiro (negociados em leilão no começo da temporada), desfalcando times e seleções de outros países. A margem de negociação é pequena: hoje, o Conselho de Controle de Críquete na Índia (BCCI, em inglês), que toma conta da IPL, é tão influente quanto o ICC. Também, pudera: 80% do dinheiro que circula no mundo do críquete vem da Índia.

Nos últimos anos, o sucesso da IPL influenciou a criação de vários torneios de T20 – mesmo em locais sem tradição no esporte. O dos EUA, por exemplo, começou em 2023. Mas essas novas ligas não podem contar com a expertise indiana: a BCCI proíbe que seus atletas joguem em outros países.

No Brasil

Desde o final do século 19, o Brasil joga partidas internacionais de críquete. Nosso amigo Charles Miller defendeu a seleção até os anos 1920, diga-se. Mas, por aqui, o esporte nunca teve tração para conquistar mais adeptos e participar de grandes competições. Isso só começou a mudar no século 21 – com a ajudinha de um inglês.

Matthew Featherstone foi atleta de críquete na Inglaterra até 2000. Casou com uma brasileira e, juntos, decidiram morar em Poços de Caldas (MG). “Gostei do clima mais frio, parecido com o de Londres”, lembra. De vez em quando, porém, ele encarava quatro horas de estrada até São Paulo para jogar críquete com outros gringos.

Em 2001, Matthew e seus amigos criaram a Associação Brasileira de Cricket (com a grafia em inglês mesmo), para regular os jogos que organizavam. No ano seguinte, se juntaram ao ICC. Em 2006, a entidade passou a enviar ao Brasil US$ 3 mil por ano, como parte de um plano de expansão global do esporte.

Matthew usou o dinheiro para começar um projeto social em Poços de Caldas, ensinando críquete em escolas e comunidades de baixa renda. No começo, era tudo no improviso: os equipamentos vinham na bagagem dos amigos que viajavam para fora.

Seleção Brasileira de Críquete.
Desde 2002, o Brasil faz parte do Conselho Internacional de Críquete, que reúne 108 membros. Nossa equipe mais bem-posicionada é a seleção feminina de T20: 37ª no ranking mundial. (Arte/Imagem: Confederação Brasileira de Cricket./Superinteressante)

Com o tempo, a prefeitura abraçou a ideia. Empresas nacionais e gringas também: a Mahindra, fabricante de automóveis indiana, patrocinou um campeonato em novembro. Hoje, Poços é a capital nacional do críquete: sedia a confederação brasileira e tem cinco mil praticantes. O projeto de Matt se estendeu para outros estados e espera atingir, até 2027, 30 mil pessoas.

O motor do críquete brasileiro é a seleção feminina, 37ª colocada no ranking mundial de T20. Desde 2020, as atletas se dedicam 100% ao esporte. Ou seja, são profissionais. “O Brasil foi o primeiro país do mundo a contratar as mulheres antes dos homens”, conta Roberta Moretti Avery, capitã do time. Nas Américas, a equipe só fica atrás dos EUA e do Canadá. E pode brigar por uma vaga olímpica. Que venha 2028.

O beabá do críquete

Ele só esteve presente em uma Olimpíada: a de 1900, em Paris. Na única partida disputada, os anfitriões perderam para a Grã-Bretanha. Nos Jogos de 2028, em Los Angeles, o esporte estará de volta. Veja suas principais regras.

Esquema ilustrado da disposição do campo e de como funciona o pitch.
(Arte/Superinteressante)

1. O começo

Dois times (com onze jogadores cada) decidem quem começa rebatendo e quem começa arremessando. A equipe batedora coloca dois atletas por vez em campo. Eles ficam nas extremidades do pitch, protegendo a casinha (wicket), formada por três bastões fincados na grama (os stumps) e outros dois menores (os bails) equilibrados no topo. Uma dupla de árbitros supervisiona a partida.

2. Os batedores

Cada batedor tem a sua base. Ao acertar a bola, o atleta corre e troca de posição com o outro batedor. Cada corrida (run) equivale a um ponto. Se a bola chegar à corda que delimita o campo, a equipe marca quatro runs; se ultrapassá-la, seis. Vence quem somar mais runs ao final da partida. O batedor pode errar ou escolher não rebater um lançamento e ainda estará a salvo – desde que a casinha permaneça intacta.

3. O arremesso

O outro time entra com um lançador, um wicketkeeper (o “goleiro” do críquete, que fica atrás da casinha) e nove recebedores, espalhados de acordo com a estratégia da equipe. O lançador tem seis tentativas para derrubar a casinha. Ao final dessa série (chamada de over), ele troca de lugar com outro companheiro. O arremesso é feito de cima para baixo, com o braço esticado – o jogador que dobrar o braço duas vezes está fora.

4. Eliminação

O objetivo de quem arremessa é eliminar os batedores e evitar que eles pontuem. Existem dez modos de fazer isso. Os mais comuns são: o lançador acerta a casinha em cheio (ou após um desvio do batedor); os receptores pegam a bola rebatida no ar, antes que ela toque no chão; os receptores recuperam a bola e derrubam a casinha enquanto os batedores trocam de posição.

5. Time balanceado

As equipes se mantêm as mesmas nos dois momentos do jogo. É por isso que um time de críquete costuma mesclar sua escalação: metade dos jogadores é especialista em rebater – a outra, em arremessar. Craques nas duas funções são chamados de all-rounders. O wicketkeeper também é uma posição importante: por estar próximo ao rebatedor, ele é o primeiro a reagir a um deslize do adversário.

6. Troca de lado

Após a eliminação de dez batedores, temos um inning: o lado que estava arremessando passa a rebater. No formato tradicional do críquete (o test), cada equipe tem dois innings – ou seja, dois momentos para pontuar runs. O problema: as eliminações podem demorar para acontecer. O resultado são jogos longos, que se estendem por dias. Só 12 países jogam competições oficiais de test.

7. Controle de tempo

As formas mais recentes são mais rápidas: apenas um inning para cada time, limitados pelo número de overs (a sequência de seis arremessos de um lançador). No formato one-day (“um dia”), são 50 overs para cada lado, e o jogo dura até sete horas. No T20, são 20, e a partida demora até 3h. Mas o inning pode acabar antes do total de overs, caso o time que está arremessando consiga eliminar os dez batedores.

Agradecemos à Confederação Brasileira de Cricket.

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