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Domicídio: o nome novo de um crime de guerra antigo

Faz milênios que conflitos militares culminam com a aniquilação de cidades inteiras. As destruições recentes de Gaza, Mariupol e Aleppo reacendem, na ONU, a discussão sobre tornar o domicídio – “morte dos lares”, em latim – oficialmente um crime de guerra.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
8 nov 2024, 12h00

Em 22 de dezembro de 1944, o escritor de ficção científica Kurt Vonnegut era um batedor na 106º divisão de infantaria do Exército dos EUA quando foi rendido pelos alemães na Batalha das Ardenas. Acabou trancafiado em um matadouro e frigorífico na cidade de Dresden, que os nazistas usavam como prisão improvisada. 

Dois meses depois, em 13 de fevereiro, 1.300 aviões americanos e britânicos despejaram 3,9 mil toneladas de bombas na cidade. Embora Dresden abrigasse um pátio ferroviário importante e 110 fábricas – muitas fornecendo equipamento militar e suprimentos para os nazistas –, o ataque se concentrou em prédios residenciais e no patrimônio histórico. 25 mil pessoas, majoritariamente civis, morreram incineradas ou asfixiadas.

Vonnegut e outros prisioneiros e guardas se esconderam em uma câmara fria no subsolo, e sobreviveram. Duas décadas depois, em 1969, ele contou a história no livro Matadouro cinco:

“Quando os prisioneiros americanos e seus guardas saíram, o céu estava negro com a fumaça. O Sol era uma cabeça de alfinete minúscula e zangada. Dresden era como a Lua agora, nada além de minerais. As pedras estavam quentes, e todos na vizinhança estavam mortos. […] Tudo que se movesse representava uma falha no plano. Não é para haver humanos na Lua”. 

No livro Guerra aérea e literatura, W. G. Sebald lista alguns dados: a Real Força Aérea (RAF) britânica despejou 1 milhão de toneladas de bombas em 131 cidades alemãs ao longo de 400 mil voos. Os bombardeios aliados mataram 600 mil civis, destruíram 3,5 milhões de casas e deixaram 7,5 milhões de desabrigados.

Em Dresden, havia 42,8 m³ de escombros – um volume similar ao de um ônibus – para cada habitante. No bombardeio de Hamburgo, formou-se um tornado de fogo que atingiu 240 km/h, 800 °C e 300 metros de altura. Em uma noite, morreram 18 mil pessoas. 

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Na época, destruir cidades inteiras era uma forma corriqueira de terrorismo de Estado. Os alemães fizeram isso em Guernica e Varsóvia (onde usaram lança-chamas e dinamite em vez de aviões). Os japoneses o praticaram em Xunquim, capital da China na época. Os americanos, com as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki, e com armas convencionais em Tóquio. 

Frederick Lindemann, um físico britânico que aconselhava Churchill, batizou essa estratégia de dehousing – “desabitação”, em tradução livre. Em um memorando escrito em 1942, ele calculou que cada avião bombardeiro com carga máxima conseguia demolir algo entre 4 mil e 8 mil casas ao longo de sua vida útil média de 14 missões – e que 5 mil aviões bastariam para deixar um terço da população alemã sem teto, o que foi considerado um bom jeito de forçar Hitler à rendição (ledo engano).

Faz milênios que exércitos cercam, saqueiam e incendeiam cidades. Só Jerusalém, que é facilmente a cidade mais disputada da História, passou por 23 cercos, 52 ataques, mudou de mãos 44 vezes e foi completamente destruída em duas ocasiões. 

No século 13, o Império Mongol matou mais de 35 milhões de pessoas – 10% da população da Terra na época. Foram tantas cidades e plantações destruídas que a mata nativa cresceu novamente em várias regiões da Eurásia e absorveu um excedente 700 milhões de toneladas de gás carbônico da atmosfera. 

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A destruição deliberada de residências e da infraestrutura de uma cidade é um exemplo do tipo de crime que atingiu seu ápice na 2ª Guerra – e que motivou a fundação da ONU.

Mesmo quando não há o objetivo deliberado de exterminar um grupo étnico ou religioso – o genocídio –, a aniquilação em massa de casas, prédios, lojas, restaurantes, escolas, hospitais, universidades, patrimônio histórico, redes de água, gás, eletricidade, esgoto etc. é uma forma de apagar a memória, o cotidiano e a economia de uma nação e infligir sofrimento psíquico extremo à população civil.

Acadêmicos se referem a essa prática como domicídio, uma mistura de domus (“casa”, em latim) e caedere (“matar”, a mesma raiz do “-cídio” em “homicídio”). 

Oitenta anos após Dresden, permanece difícil coibir o domicídio. “O ataque a alvos civis, a destruição de cidades e vilarejos inteiros – relegando milhões à falta de moradia –, continuam inabaláveis apesar do desenvolvimento dos direitos humanos modernos e das leis humanitárias”, diz Balakrishnan Rajagopal, Relator Especial da ONU para o Direito à Moradia. 

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De acordo com a ONU, até o final de julho de 2024, 88% das escolas de Gaza estavam destruídas ou danificadas, 21 de 36 hospitais estavam de portas fechadas, 62% dos prédios residenciais estavam destruídos ou inabitáveis e mais de 59% da rede de água e esgoto havia sido aniquilada.

Em 22 de outubro de 2024, enquanto este texto era escrito, pelo menos 42,2 mil palestinos haviam morrido de acordo com dados do Ministério da Saúde da Autoridade Nacional Palestina. Esse é um grau de destruição equiparável ao de Dresden (25 mil mortos, cerca de 50% dos lares destruídos) e Nagasaki (75 mil mortos, 39,2% dos lares destruídos).

É evidente que Israel tem o direito de se defender dos atos terroristas abjetos do Hamas, mas isso não é sinônimo de destroçar uma área densamente povoada que já vive à beira do colapso humanitário.

Os russos fazem algo parecido na Ucrânia. Em Mariupol, talvez a metrópole mais afetada pela guerra, 32% das construções foram destruídas (incluindo 90% dos prédios mais altos) e o número de mortos é qualquer coisa entre 8 mil e 25 mil (a cifra mais alta é do governo ucraniano).

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O esforço para apagar a identidade ucraniana é tão deliberado que algumas ruas estão sendo rebatizadas de acordo com os nomes que tinham na época da URSS, e prédios residenciais construídos a toque de caixa sobre as ruínas são pintados com as cores da bandeira russa.

A Rússia já havia sido um ator importante da destruição de Aleppo na Guerra Civil Síria, entre 2012 e 2016, que matou 30 mil civis, destruiu mais de 30 mil edificações e acabou com o patrimônio histórico milenar do país. Mosul, no Iraque, e Homs, também na Síria, tiveram destinos semelhantes. 

A palavra “domicídio” não aparece nas Convenções de Genebra, e não dá para prever se ela ganhará o status de crime de guerra nos próximos anos. Mas esses tratados já exigem que a destruição de propriedade só ocorra se for absolutamente necessária para as operações militares, e proíbem represálias contra civis e suas propriedades.

Seguir essas normas básicas de decência é obrigação de qualquer Estado-membro da ONU – cujo objetivo é justamente evitar que o horror descrito por Vonnegut se repita um dia. 

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