E se o mundo todo se tornasse vegano?
Seria ótimo para frear o aquecimento global, mas os cuidados para evitar a desnutrição em áreas carentes teriam de ser redobrados
O engenheiro florestal comanda a equipe navegando pelo Rio Araguaia. São responsáveis por avaliar a recuperação da Floresta Amazônica após a grande mudança. A expectativa é que levará ao menos um século para se tornar novamente viável – ainda que haja alguma esperança na notícia recente de que a previsão de aquecimento global diminuiu.
No barco, toma-se café com leite de castanha-do-Pará. O chefe lembra todo mundo de não esquecer seus suplementos. Ninguém esquece. Campanhas do governo lembram às pessoas o tempo inteiro.
Adiante, o que temiam: um barranco despencando sobre o rio. E dá para ver os contornos e cores esquisitas nele, principalmente uma meleca preta. Um enxame de urubus se posta às margens. Chegando mais perto, é possível notar as partes boiando, poluindo a água. Finalmente, fica claro o problema: cadáveres de vaca. Milhares deles. Alguns só no esqueleto. Outros ainda emitindo aquele odor inescapável, já bem conhecido da equipe.
Uma humanidade que se tornasse vegana da noite para o dia teria um problema inicial: o que fazer com os animais criados para gerar alimento. Talvez alguém mais romântico tenha imaginado ver as vaquinhas livres e felizes. Mas não. Só no Brasil há mais gado do que gente: 213 milhões de cabeças, contra 209 milhões de humanos. Somos o maior produtor de carne bovina do mundo – o segundo maior de frango, e o quarto maior de porco. Numa realidade subitamente vegana, o Brasil perderia quase 9% de seu PIB.
A pecuária deixaria de fazer sentido como atividade econômica. Os terrenos usados como pasto, então, teriam que ganhar outra função, e esses 213 milhões de bovinos virariam animais “sem teto” (sem pasto, no caso). O ambiente selvagem tampouco ajudaria: vacas (e porcos e cabras) são consideradas “espécies invasivas”. Ou seja: não têm como se adequar ao ecossistema daqui. Na busca pela sobrevivência, bovinos invadiriam plantações e áreas urbanas. Idem para os 40 milhões de porcos brasileiros.
Talvez o Estado pudesse pagar para mantê-los vivos (e seguros) até morrerem. Mas não conte com isso: porcos e vacas podem viver mais de 20 anos. A verdade é que os animais teriam de ser sacrificados.
E o problema aí é o que fazer com toda essa biomassa: atualmente a humanidade é responsável por 1 bilhão de bovinos, 780 milhões de, porcos, 23 bilhões de frangos, 1,2 bilhão de ovelhas e 1 bilhão de cabras. Gado bovino pesa em média 500 kg no abate; frangos, 2,5 kg, ovelhas, 60 kg, cabras, 30 kg. Em todos os casos, os números variam imensamente de acordo com a raça, mas, pegando esses números, temos uma biomassa de 675 milhões de toneladas.
A humanidade, a um peso médio de 65 kg, e 7,8 bi de população, pesa 507 milhões de toneladas. O sacrifício global desses animais, então, equivaleria a cremar ou enterrar mais do que a humanidade inteira.
Após a tempestade desse sacrifício em massa, viria uma bonança – para o clima. O Painel Internacional para Mudança Climática (IPCC) calcula que a humanidade deixaria de emitir 7 bilhões de toneladas de gases do efeito estufa se todos se convertessem ao veganismo. Isso equivale a 14,3% de todas as emissões desses gases. Não é pouco: seria o equivalente, segundo a organização, a substituir todas as termelétricas do planeta por usinas de energia solar.
Essa mudança não iria parar o aquecimento global sozinha, mas pode ser a diferença que evite o cenário mais catastrófico para o final deste século – um aumento médio da temperatura acima de 4 ºC.
Para o clima e o ambiente tudo ficaria melhor. Mas haveria problemas para algumas populações: não seria possível atender às necessidades nutricionais de todos os habitantes do planeta, ricos e pobres, com uma produção alimentar 100% vegetal.
É justamente o aumento no consumo de proteína animal nas últimas décadas que vem reduzindo a desnutrição na África Subsaariana. Crianças de áreas rurais do Quênia que passaram a comer ovos, por exemplo, crescem 5% mais rápido que as que não têm esse prato em sua dieta.
Primeiro porque não há fonte de proteína mais eficiente do que os alimentos de origem animal. No Senegal, onde o consumo de carne, leite e derivados é baixíssimo, por questões econômicas, 42% das crianças sofrem de anemia. É justamente o aumento no consumo de proteína animal nas últimas décadas que vem reduzindo a desnutrição na África Subsaariana. Crianças de áreas rurais do Quênia que passaram a comer ovos, por exemplo, crescem 5% mais rápido que as que não têm esse prato em sua dieta.
Além disso, a vitamina B12 e o Ômega 3, dois nutrientes importantes, não ocorrem em plantas. Ferro, cálcio e, dependendo da exposição solar, vitamina D também podem precisar de atenção, já que o fornecimento desses nutrientes não é o forte das plantas.
Uma dieta vegana pode ser plenamente saudável, claro. Feijão, quinoa e pistache são alguns dos vegetais que carregam boas doses de proteína. A vitamina B12 pode ser obtida a partir de microrganismos. O Ômega 3 também. Algas marinhas são boas fontes de ferro. Idem para as lentilhas, que também entregam cálcio.
Uma dieta vegana, enfim, precisa ser variada, além de incluir suplementos especiais para a B12 e o Ômega 3. É simples obter tal variedade diariamente nos países desenvolvidos – e nas partes ricas dos países em desenvolvimento. Só que, fora desses paraísos da oferta de alimentos, a situação é outra. “Ah, mas as populações nativas vivem da floresta, e muito bem”, alguém diria. Sim, mas a dieta ali inclui peixes e carne vermelha de animais silvestres. Não tem nada de vegana.
No fim, só resta dizer o mais óbvio: uma transição ao veganismo é possível, mas teria de ser gradual. E regiões mais pobres precisariam, de alguma forma, garantir o acesso a uma variedade de vegetais e suplementos com os quais não contam hoje. Talvez outro salto crucial para o fim das criações de animais seja o desenvolvimento da carne de laboratório – algo ainda incipiente.
Aconteça o que acontecer, é bem possível que, dentro de algumas gerações, a ideia de escravizar criaturas com consciência para fins alimentares seja vista como algo abjeto. Goste você ou não de hambúrguer e de churrasco (e boa parte das pessoas que fazem a SUPER gosta), não há como discordar: seria um progresso.