Livro da semana: “O povo contra a democracia”, de Yascha Mounk
Um diagnóstico preciso da crise atual nos sistemas políticos representativos – que explica, passo a passo, a chegada de figuras como Bolsonaro ou Trump ao poder.
Em 1992, o economista Francis Fukuyama proclamou o fim da História. Sua ideia controversa era que, com a queda do Muro de Berlim – e da União Soviética em seu encalço –, o totalitarismo se tornaria progressivamente mais raro. Um número crescente de países se tornariam democracias liberais nos moldes do Ocidente, e essa forma de organização política, por funcionar tão bem, jamais seria substituída por outra.
É claro que, com o passar de décadas – e, depois, séculos –, ocorreriam recaídas aqui e ali. Golpes e devaneios autoritários. Haveria o que Fukuyama chamou de eventos; acontecimentos dignos de aparecer no jornal. Mas a História maiúscula; a passagem sangrenta do poder de mão em mão, chegaria ao fim.
Em 2001, com os ataques terroristas de 11 de setembro, os críticos de Fukuyama – que não eram poucos – trataram de lembrá-lo que forças como fundamentalismo islâmico manteriam a História viva. Humanos, desde que o mundo é mundo, se organizam em tribos, fortalecidas por laços étnicos, linguísticos e religiosos. A globalização e a utopia democrática tropeçam na própria maneira como culturas se organizam.
Mesmo assim, nos anos 1990 era inegável a estabilidade dos países ricos democráticos, bem como a aprovação enfática da população a esses regimes. Graças a garantias como independência do Judiciário, liberdade de imprensa, direitos humanos e eleições limpas, os indicadores de qualidade de vida alcançados pela Europa e a América do Norte no pós-2ª Guerra foram inéditos na história da humanidade.
Não seria natural que cada vez mais nações tentassem copiar esse modelo bem-sucedido? Aparentemente, não. De 2010 em diante, as populações de diversos países tradicionalmente democráticos (ou recém-democratizados, como Brasil em 1985 ou Hungria em 1989) explodiram de insatisfação com a classe política, e líderes populistas de discurso perigoso assumiram nações fragilizadas ao redor do globo.
Em O Povo contra a Democracia, o acadêmico alemão Yascha Mounk faz um diagnóstico deste momento conturbado. A premissa básica do livro é que democracia e liberalismo não necessariamente andam de mãos dadas.
A democracia representativa é um regime político em que o povo escolhe seus dirigentes e os fiscaliza para que ajam conforme a vontade dos eleitores. Já o tal liberalismo (que, neste texto, não aparece em seu sentido econômico mais usual no Brasil) diz respeito a um conjunto de ideias que derivam do Iluminismo no século 18: direitos humanos, separação dos poderes, liberdade de imprensa, de religião e de expressão etc.
Mounk explica que muitos países autenticamente liberais, desses que deixariam Montesquieu orgulhoso, acabaram se tornando antidemocráticos: embora a população vote regularmente, ela não se vê representada nos candidatos, e as elites que ocupam casas legislativas trabalham em benefício próprio em vez responder aos anseios de seus eleitores.
Além disso, as políticas públicas são extremamente complexas e decisões na arena econômica que impactam a vida dos cidadãos na prática são tomadas por especialistas sem que as pessoas comuns tenham voz ou sequer entendam o que está acontecendo. Surgiu um grupo de países (na opinião de Mounk, bem representados pela União Europeia), em que o povo tem direitos, mas não tem poder decisório.
Toda ação tem uma reação: em resposta a esse fenômeno, surgiram figuras populistas que se apresentam como uma linha direta entre o governo e os interesses dos governados, que não passa pelos tecnocratas e o filtro regulador das instituições.
Tais personagens são fruto da democracia no estado mais puro, porque são outsiders que acessaram, em geral via voto, um sistema com cartas marcadas. Por outro lado, não poderiam ser menos liberais: em nome do povo, calam a imprensa, atacam o Judiciário, misturam fé com política e destroem o sistema de pesos e contrapesos que regula as democracias.
De Trump nos EUA a Bolsonaro no Brasil, o discurso sedutor dessas figuras tem pontos em comum: fornece soluções simples para problemas complicados; ignora evidências científicas em prol do senso comum; ataca imigrantes, minorias e outros grupos reconhecidos como forasteiros; taxa seus opositores de inimigos e permanece em campanha contra eles mesmo após as eleições.
Para os apoiadores dessas figuras, paira no ar uma ilusão de democracia até que o óbvio acontece: quando a população não concordar mais com as medidas de seu líder, ela não terá mais mecanismos como a imprensa ou o Judiciário para domá-lo. Há alguma maneira de sair desse matagal em que as democracias se embrenharam? Sim, garante Mounk. Mas precisamos lutar com afinco.