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A verdade sobre os drones

Aviões ultrapassados, pilotos despreparados, alvos errados - e mais de 80% de vítimas inocentes. Documentos confidenciais revelam detalhes surpreendentes sobre o programa de drones dos EUA - e desmontam a tese dos ataques cirúrgicos, de alta precisão.

Por Mauricio Moraes e Bruno Garattoni
Atualizado em 22 jul 2020, 14h32 - Publicado em 1 jun 2016, 19h00

Ramadi, Iraque. Um comboio militar americano é engolfado por uma tempestade de areia e obrigado a parar. Ele pede ajuda a um drone que está na região – e é comandado, a 12 mil quilômetros de distância dali, pelo piloto Mark McCurley. Mark está sentado dentro de um contêiner em uma base aérea de Nevada, nos Estados Unidos. Faz muito calor, mas o interior do contêiner é gelado: o ar-condicionado fica sempre no máximo, para preservar os equipamentos eletrônicos. Mark, um iniciante, luta contra as correntes de ar para manter o avião voando enquanto Sarah, a auxiliar, tenta enxergar o que está acontecendo usando uma câmera de infravermelho. Eles recebem uma mensagem dizendo que há rebeldes na área. Sarah não vê o alvo direito, mas a dupla é autorizada a atacar. “Pode atirar”, diz um oficial. “Em três, dois, um…”, diz Mark, já com o dedo no gatilho. Ele vai disparar um AGM-114 Hellfire – míssil que alcança 1.500 km/h e foi desenvolvido com o propósito de destruir tanques. Até que Sarah grita: Aborte, aborte, aborte!”. Ela percebeu, no último instante, que o drone estava mirando o alvo errado – na verdade, estava apontado para o comboio dos EUA. Por uma fração de segundo, a dupla escapou de matar dezenas de soldados americanos.

A cena, apavorante, é descrita no livro Hunter Killer: Como os Drones Revolucionaram a Guerra contra o Terror (Companhia das Letras, 2015), escrito por McCurley – hoje, tenente-coronel aposentado da Força Aérea dos EUA. É a primeira vez que um militar se dispõe a falar francamente sobre o programa americano de drones, cujos detalhes sempre foram mantidos em segredo. Dois dias após o lançamento do livro, um lote de documentos confidenciais foi vazado pelo jornalista americano Glenn Greenwald – o mesmo que, em parceria com o analista Edward Snowden, revelou em 2013 os programas de espionagem digital conduzidos pelo governo dos EUA. Os documentos, que Greenwald publicou na internet com o título de Drone Papers (nítida referência aos Pentagon Papers, que nos anos 1970 revelaram detalhes secretos da Guerra do Vietnã), estão cheios de informações impressionantes – e até então desconhecidas.

A primeira delas é: ao contrário do discurso oficial, que fala em ataques “cirúrgicos”, a ação dos drones é extremamente imprecisa. Os documentos obtidos por Greenwald, que analisam a ação dos drones entre 2011 e 2013 em três países (Afeganistão, Somália e Iêmen), revelam que os aviões não tripulados mataram 200 pessoas durante esse período. Porém, apenas 35 delas eram alvos intencionais, ou seja, suspeitos de pertencer à Al Qaeda. Todos os demais eram “dano colateral”: pessoas que os EUA não desejavam eliminar. Uma margem de erro de 82,5%. No trecho mais crítico, de maio a setembro de 2012, ela chegou a 87% – foram 155 mortos, dos quais apenas 19 eram “prêmios” (termo usado pelos militares para designar os terroristas). Durante o mesmo período, ações em solo resultaram em apenas duas mortes – com um total de 13 “prêmios”. Ou seja: os drones são muito mais letais, e bem menos precisos, do que a ação em terra. Críticos afirmam também que o programa de drones tem prejudicado o combate ao terrorismo. Isso porque prisioneiros capturados podem dar informações. Mortos, por outro lado, não falam.

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Os documentos também revelam que as execuções cometidas por drones não envolvem qualquer tipo de julgamento, ou direito de defesa, dos suspeitos. O processo começa nos setores de inteligência do Pentágono, que elaboram o que chamam de “card de beisebol”: documento que reúne a foto e todas as informações conhecidas sobre um suspeito. Mas, muitas vezes, os indícios contra alguém são fracos. No Iêmen e na Somália, onde há poucos americanos operando, mais de 50% das informações vêm de inteligência digital, como grampos de celular ou computador. Às vezes, informações vagas são associadas a um endereço de e-mail ou número de celular, para “desenvolver o alvo”.

Se os militares acharem que devem eliminar alguém, precisam pedir autorização. O processo passa por vários níveis militares, que inclui a Força-Tarefa local, o Comando da região, o Estado-Maior das Forças Armadas, o secretário de Defesa e uma comissão formada por integrantes do Conselho de Segurança Nacional. Depois que o pedido de execução passa por todas essas etapas, ele é autorizado pessoalmente pelo presidente Barack Obama – e, a partir daí, os militares têm 60 dias para eliminar o alvo. O processo também inclui acertos com autoridades locais, como o comandante da CIA na área e o embaixador dos Estados Unidos no país.

Os ataques de drones ocorrem desde 2001, mas só em maio de 2013, 12 anos depois, o governo americano definiu um conjunto de regras para tentar evitar a morte de civis. Agora, é preciso ter “quase certeza de que o alvo terrorista está presente” e “quase certeza de que não combatentes não serão feridos ou mortos”. A diretriz não especifica o que é “quase”.

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Mas dados não oficiais, compilados pelo Bureau de Jornalismo Investigativo, estimam que entre 532 e 1.384 civis tenham sido mortos por drones no Afeganistão, no Paquistão, no Iêmen e na Somália. Acredita-se que o número possa ser maior.

Os losers da Força Aérea

O drone mais usado nos ataques americanos é o Predator MQ-1B, da General Atomics, que tem capacidade para dois mísseis Hellfire. O avião foi pensado para missões de espionagem e vigilância, mas em 2001 uma atualização o transformou em arma de ataque. Embora o tenente Mark McCurley defenda o uso do Predator e de outros modelos mais avançados, como o Reaper MQ-9, seu livro aponta uma série de problemas. Um dos principais é o treinamento dos pilotos, feito às pressas para dar conta da demanda crescente pelos drones. Quando se ofereceu como voluntário para pilotar um Predator, em 2003, McCurley era um dos poucos militares realmente dispostos a seguir nessa área. Sua turma era formada principalmente por pilotos que haviam danificado aeronaves ou não tinham conseguido atingir os requisitos exigidos em outros aviões, além de outros que haviam se ferido. Eram os losers da Força Aérea, por assim dizer. Isso foi mudando com o tempo, e hoje os pilotos de drone têm uma qualificação melhor. Mas ainda insuficiente.

“A nossa carreira é a única da Força Aérea em que você já entra em combate um dia depois de concluir o treinamento”, escreve McCurley. Além disso, pilotar um drone é mais difícil do que guiar um avião tradicional, porque só há feedback em alguns dos controles – como em um videogame. O piloto não sente os movimentos do avião, porque não está dentro dele. As câmeras quase nunca estão mirando a frente da aeronave, o que torna o voo muito dependente dos instrumentos. E o treinamento não ensina a disparar contra alvos em movimento. Para aprender a atirar, os pilotos fazem simulações enquanto estão voando com os drones em missões reais – só não apertam o botão de disparo.

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McCurley acredita ter localizado Osama bin Laden por acaso, em uma missão de rotina no Afeganistão. Pediu autorização para atacar, mas foi impedido. Mais tarde, ao procurar um oficial, recebeu a explicação de que se tratava de uma questão política. Em 2002, um Predator já havia disparado um míssil Hellfire em um grupo de três homens, achando que um deles era Bin Laden. Na verdade, eram líderes tribais, que não tinham nada a ver com a Al Qaeda.

Cada drone é comandado por duas duplas. A primeira fica instalada em bases militares na África, e é responsável pela decolagem e aterrissagem dos aviões. Mas as ações militares em si ficam a cargo da outra dupla – que fica em território americano, a milhares de quilômetros de distância. Ao lado do piloto fica o operador de sensor, responsável por controlar as câmeras do drone e por mirar nos alvos. As duplas trabalham em turnos extenuantes, que podem chegar a 12 horas por dia. “O profissionalismo derrapava à medida que o cansaço tomava conta das tripulações”, afirma McCurley. As missões são longas porque as bases aéreas ficam longe dos locais das missões, e porque os drones são extremamente lentos: como são movidos por um motor a hélice, mal passam de 200 km/h (muito menos que os 3.000 km/h alcançados por um caça, ou mesmo os 900 km/h praticados na aviação civil). Isso significa que para chegar às áreas de vigilância no Afeganistão, por exemplo, precisam de 8 horas de voo (4 para ir e 4 para voltar à base). Dados da própria Força Aérea dos EUA indicam que os drones chegam a gastar 50% do seu tempo útil indo e voltando.

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Muito prazer, Faísca

Às 22 horas, Anne acorda e começa a se arrumar para sair. Faz um carinho no cachorro, uma mistura de pitbull com shar-pei, entra no carro e dirige até seu local de trabalho. Ela mora em Las Vegas, mas sua rotina passa longe dos cassinos. Anne está indo para a guerra. Mais precisamente, para a Base da Força Aérea de Creech, onde seu turno começa à meia-noite – e onde ela é conhecida como Sparkle (“Faísca”). Toda noite, Anne entra em um contêiner (o nome técnico é Estação de Controle no Solo) e se transporta virtualmente para o Afeganistão. A história dela foi revelada, no site de notícias The Daily Beast, pelo jornalista americano Kevin Maurer – que ajudou o tenente McCurley a escrever o livro sobre bastidores dos drones. Anne entrou na Força Aérea como analista de imagens, escrutinando fotos de satélite em busca de detalhes relevantes. Foi sendo promovida até que, em 2009, chegou a auxiliar de drone. Sua função é controlar a câmera, identificar os alvos – e, em caso de ataque, se certificar de que estão mortos. Anne usa uma câmera de alta definição para dar um zoom e procurar indícios que comprovem o sucesso do assassinato. Enquanto isso, o piloto mantém a aeronave circulando a área. Tudo é gravado em vídeo. As imagens, transmitidas em tempo real, também são vistas pelos militares de outras bases ao redor do mundo, que ficam na expectativa de assistir à eliminação de um inimigo. Os vídeos ao vivo ficaram tão populares que passaram a ser chamados de “pornografia do Predator” (em inglês, Pred porn).

Numa das missões de Anne, o processo de gravação foi especialmente intenso. Acompanhada pelo piloto Patrick, ela decolou para localizar e eliminar um líder do médio escalão do Taleban, que estava sob estrita vigilância havia algumas semanas. Os militares americanos sabiam, por exemplo, que o inimigo levava em média 12 segundos para sentar em sua moto e dirigir até o portão da casa onde morava. A ideia era acertá-lo com um míssil assim que ele entrasse numa estrada de terra, para reduzir os danos ao redor. Anne e Patrick levaram seu avião até a área e começaram a esperar, acompanhados de outro drone. Em alguns casos, as tripulações passam horas esperando os alvos aparecerem – e matam o tempo conversando sobre esportes ou jogando uma espécie de bingo (quando aparece um carro na câmera do drone, um dos pilotos marca um ponto; quando surge um animal, quem pontua é o outro, e por aí vai). Duas horas depois, o talebã finalmente apareceu.

200 alvos foram mortos por drones, em três países, entre 2011 e 2013. Mas apenas 35 eram alvos intencionais. Margem de acerto de 17,5%

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“Ele está saindo”, disse Anne. Seus dedos começaram a formigar, o que sempre costumava acontecer na hora do ataque. Mas ela não precisou atacar; o outro drone fez isso primeiro. Restou a Anne fazer o reconhecimento, ou seja, certificar-se de que o alvo estava morto – o que incluiu vigiar o funeral do talebã, realizado horas depois, e filmar os rostos das pessoas que compareceram (em busca de mais suspeitos).

“Uma vez, eu vi um cara se arrastar dos destroços, sem a metade de baixo do corpo. Ele morreu devagar”, disse ela. Anne aceita isso como parte do trabalho. Seu apelido, Sparkle, é por causa do brilho das bijuterias que ela gosta de usar durante o trabalho. Mas não é só por vaidade. Segundo Anne, os mártires jihadistas acreditam que, se forem mortos por uma mulher, não vão para o paraíso. Para ela, trabalhar arrumada é um jeito de atacar duplamente os inimigos. “Eu uso (os adereços) para emasculá-los na outra vida.”

Os russos também voam

Na Guerra Fria, soviéticos e americanos competiam em pé de igualdade pela liderança na tecnologia militar. Mas, com o fim da URSS, isso mudou – e a Rússia ficou para trás em algumas áreas, como a de aviões não tripulados. Em 2012, ao ser reeleito presidente, Vladimir Putin prometeu mudar isso. Hoje, os russos só utilizam drones de reconhecimento, sem armas, que têm sido empregados na guerra da Ucrânia e em outros locais. Um deles foi abatido em outubro, depois de invadir o espaço aéreo da Turquia, na fronteira com a Síria, e ignorar três advertências. Acredita-se que os russos estejam desenvolvendo uma espécie de superdrone, muito maior e mais rápido, que seria capaz de alcançar – e atacar – caças tradicionais, como o americano F-35. Uma miniatura do que poderia ser o avião, cujo formato lembra o das aeronaves stealth (invisíveis ao radar), foi exposta numa feira de equipamento militar em Moscou, em agosto.

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