Ao astronauta Marcos Cesar Pontes:nosso vôo mais alto
Em meio a rituais da ex-União Soviética esessões de tortura, o astronauta Marcos Cesar Pontesse prepara para ser nosso primeiro homem no espaço.Veja o que ele vai encontrar lá em cima.
Texto Arthur Felipe Artero
Anoitece em Baikonur, no Cazaquistão. O dia é 29 de março de 2006. Ao astronauta Marcos Cesar Pontes, 43 anos, resta uma última tarefa antes que ele possa se tornar o primeiro brasileiro a ir ao espaço. Com seus colegas de tripulação, o americano Jeffrey Williams e o russo Pavel Vinogradov, ele terá de assistir a um filme.
Nada que se relacione a viagens espaciais. A película, chamada Sol Branco do Deserto, é uma obra soviética de 1970 que mostra a guerra civil e a consolidação do poder comunista na Ásia. Só há uma razão para que ele tenha de ver este filme, e sem legendas, óbvio: cosmonautas (é assim que os russos preferem chamá-los) têm feito a mesma coisa por décadas a fio.
É assim o vôo espacial na Rússia, cheio de tradições e rituais. Continuando a cumprir esse protocolo, na manhã seguinte, 30 de março, Pontes irá se despedir de seu alojamento no Centro de Lançamento de Baikonur deixando seu autógrafo na porta, igualzinho a outros viajantes espaciais que partiram daquelas imediações, como Yuri Gagarin, que em 12 de abril de 1961 virou o primeiro homem a olhar o planeta do lado de fora.
Quando chegar a hora de Pontes conferir se a Terra é azul mesmo, será a coroação do trabalho de um homem que começou a vida como eletricista em sua cidade natal, Bauru (interior de São Paulo).
“Quando criança, fazia um monte de visitas ao aeroclube para ver a Esquadrilha da Fumaça e muitas visitas à Academia da Força Aérea (AFA), onde meu tio, que era sargento da FAB, servia como membro da equipe de manutenção de aeronaves”, conta o astronauta. “Eu decolava ali, na minha imaginação, entre a poeira levantada pelos motores e o cheiro de combustível nos hangares da AFA. Queria ser um piloto de caça.”
Queria e foi atrás. Entrou para a Academia da Força Aérea e formou-se engenheiro elétrico pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Virou piloto de caça da FAB, testando aeronaves experimentais. Foi aos EUA para a pós-graduação, um mestrado em engenharia de sistemas na Escola de Pós-Graduação Naval, em Monterey, Califórnia. Mas não imaginou que passaria tanto tempo na terra do Tio Sam.
Em 1997, o governo brasileiro assinou com a Nasa um acordo para fazer parte do conjunto de nações que participa da construção da Estação Espacial Internacional. O Brasil forneceria algumas peças do complexo no valor de 120 milhões de dólares e, em troca, teria direito a treinar um astronauta para fazer experimentos científicos nacionais a bordo do complexo. Pontes viu aí uma oportunidade para fazer vôos maiores – ele e mais centenas de candidatos a astronauta que se apresentaram à Agência Espacial Brasileira (AEB) para tentar a vaga.
Depois de análises de currículos, exames médico, físico e psicológico, sobraram 5 para uma entrevista em inglês com participação do conselho da AEB e de membros da Nasa. Deu Pontes.
Então, em 1998, em vez de voltar ao Brasil após o mestrado, ele foi com a mulher e dois filhos para Houston, no Texas. É onde fica o Centro Espacial Johnson, da Nasa, local onde são treinados os astronautas americanos. Lá o brasileiro obteve os conhecimentos para desempenhar a função de viajante espacial, que vão de exercícios de EVA (sigla em inglês para atividade extraveicular, nome chique para as caminhadas espaciais) em enormes piscinas para simular a falta de gravidade até testes de sobrevivência no deserto, na selva e no gelo (numa emergência, nunca se sabe em que ponto da Terra a nave vai pousar). Mas nem tudo saiu como planejado.
Astronauta sem nave
Os anos iam passando, o Brasil não conseguia honrar o compromisso e a situação do astronauta brasileiro em Houston ia ficando difícil. O pior é que ele servia como porta-voz do país no projeto da Nasa. “Eu não sabia mais que desculpa inventar para justificar os atrasos”, diz.
No fim das contas, o escopo da participação brasileira foi reduzido para cerca de 40 milhões de reais, uma fração da proposta original. Em conseqüência, os benefícios para o Brasil também encolheram. Pontes continuaria em treinamento no Johnson, mas suas chances de ser escalado para vôo no ônibus espacial americano, como ditavam os planos originais, minguavam a cada dia. Para piorar, em 1º de fevereiro de 2003, no retorno à Terra, o ônibus espacial Columbia foi destruído num acidente. A tragédia, com a morte de 7 astronautas, obrigou a Nasa a interromper seus vôos e atrasar a construção da estação espacial. Com tudo conspirando contra, Pontes corria o risco de entrar para a história como o astronauta que não foi ao espaço.
Para evitar isso, a AEB decidiu fazer o que a Nasa já estava fazendo havia tempos para manter seu programa à tona: pedir ajuda aos russos, que são sempre muito prestativos – por uma módica quantia, é claro. No caso, o governo brasileiro teve de desembolsar a bagatela de 10 milhões de dólares (metade do preço “de tabela” dos sujeitos) para garantir o assento de Pontes na espaçonave Soyuz que decola em 30 de março.
Sessões de tortura
Familiarizado com os procedimentos e veículos americanos, Pontes teria de aprender rapidamente os russos. Por isso, assim que o acerto com a Roskomos (agência espacial russa) foi concretizado, o brasileiro se transferiu de Houston para os arredores de Moscou, onde fica o centro de treinamento de cosmonautas, também conhecido como Cidade das Estrelas.
As sessões foram intensivas. Para quem olha de fora, parece mais tortura que treino. Um dos testes, por exemplo, consiste em entrar numa câmara e ficar lá enquanto o ar é todo bombeado para fora. Ocorre que cada pessoa reage de uma maneira diferente num ambiente de despressurização, então o cosmonauta precisa conhecer bem suas próprias reações de modo a rapidamente identificar e sanar o problema, no caso de uma emergência em vôo.
Noutro teste, o astronauta vai para uma centrífuga que gira cada vez mais rápido, aumentando a aceleração à qual o corpo é submetido. Isso serve para habituar o sujeito à violência da decolagem. Quando a nave começa a subir, afinal, as costas são pressionadas contra o assento da nave com uma força de 3,5 G (3 vezes e meia a da gravidade). Um astronauta de 80 quilos se sente com 280. E pior: “Nessas condições, uma cortina cinza se estende gradualmente para dentro a partir dos dois lados da cabeça, pois a visão das cores desvanece a começar pela periferia dos olhos”, diz a fisiologista Frances Ashcroft, da Universidade de Oxford, no livro A Vida no Limite.
Outra parte do treinamento é ficar dentro de um avião em queda livre, para simular a ausência de gravidade. Legal, né? Mas flutuar no espaço não é só diversão. A ausência de peso faz os fluidos do corpo se deslocar para a parte de cima. O rosto incha, o nariz fica entupido, rolam náuseas, tontura. É que nem pegar uma gripe forte. Como o astronauta não pode pedir um atestado médico para faltar no trabalho quando estiver lá em cima, é melhor ir preparado.
E até o inverno russo ajuda na preparação. Pontes teve de se virar por um dia inteiro no gelo, a 30 graus negativos, num daqueles treinos de sobrevivência para o caso de a nave cair num lugar ermo.
E sobreviver é a chave, seja na neve, seja no simulador da Soyuz instalado na Cidade das Estrelas. Enquanto numa sala ao lado os engenheiros criam vários “problemas” com a nave, os cosmonautas precisam contra-atacar com a presteza exigida para salvar o veículo e a tripulação. “Não ‘morri’ nenhuma vez aqui”, diz o astronauta, orgulhoso. Durante 7 anos nos EUA, ele “morreu” duas vezes no simulador do ônibus espacial.
A cereja no bolo de torturas: aprender russo. Pontes tem tido aulas intensivas. Na primeira delas, ao se encontrar com o professor, disse em inglês que só pretendia aprender o suficiente para acompanhar as atividades do programa espacial. O mestre respondeu, num tom ao mesmo tempo tranqüilizante e ameaçador: “Não se preocupe. Quando terminarmos, você terá ido muito além de suas modestas aspirações”.
Seja como for, ele vai ter pouco tempo para praticar a língua. A estadia do brasileiro no espaço vai ser de apenas 10 dias (dois na Soyuz mais 8 na estação), enquanto a dos astronautas escalados para morar na estação é de 6 meses.
Crise astronômica
Até hoje, 30 astronautas viveram na estação espacial. Outros 111 fizeram visitas breves, como a de Pontes – sem falar em 3 milionários que pagaram 20 milhões de dólares aos russos para dar uma volta lá em cima. Mas com a ausência de vôos dos ônibus espaciais desde 2003 a coisa deu uma arrefecida. Diminuíram a tripulação fixa de 3 para dois astronautas, a fim de racionar suprimentos.
Mesmo assim Pontes vai encontrar o lugar agitado. Como ele sobe com a dupla que vai formar a 13ª tripulação e descer com a da 12ª, terá 4 colegas lá dentro: dois russos e dois americanos.
O quinteto vai dividir 167 m2 – a área de um apartamento de 3 quartos. Esse espaço, aliás, deve aumentar no segundo semestre deste ano, quando os ônibus espaciais devem voltar à ativa para ajudar na montagem do complexo.
Um complexo que representa o projeto espacial mais ambicioso da história. Participam dele, em maior ou menor medida, 16 países: EUA, Rússia, Japão, Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido e Brasil. Quando tudo estiver concluído, essas nações terão gasto cerca de 100 bilhões de dólares – é a maior iniciativa de cooperação internacional da história.
Mas um projeto desse porte não se desenrola sem atropelos – não houve um país sem problemas com prazos e orçamentos. E a liderança titubeante dos EUA não ajuda a manter as coisas nos trilhos. Desde o anúncio do presidente George W. Bush de que a Nasa deveria voltar a empreender missões tripuladas à Lua até 2020, a agência espacial americana decidiu reduzir sua fatia de uso (e de financiamento) da estação espacial. Agora, cabe aos outros parceiros decidir se vale a pena gastar dinheiro para explorar o potencial dela. O Brasil está fazendo isso com o vôo de Pontes. Para uns, de forma modesta. Para outros, perdulária.
De carona na Soyuz
Veterana do espaçoé a nave mais segurada história
Os mais novos tripulantes da Soyuz: Marcos Cesar Pontes, Pavel Vinogradov e Jeff Williams. Só o nome dos dois últimos aparece no logotipo da missão, já que só eles ficarão morando na estação espacial. Pontes sobe com eles, fica 8 dias lá, e desce com a dupla anterior de tripulantes, William McArthur e Valery Tokarev.
Submarino espacial
A Soyuz parece ter saído de um livro de Júlio Verne (1828–1905). E como: até periscópio a navezinha russa tem (este cano verde aqui).
LATA DE SARDINHA
A Soyuz (“união”, em russo) é a nave espacial mais segura da história. O modelo está em operação desde 1967 e não sofre acidentes há 25 anos. Mas segurança não é sinônimo de conforto aqui. Viajar na nave de 7 metros de comprimento por 2,7 metros de diâmetro equivale a ficar enlatado. Olha só: esse compartimento aí em cima é a capsula de reentrada (a parte em forma de sino no meio da nave). É onde os 3 tripulantes ficam durante a decolagem e a descida. E, para caber aí, eles precisam sentar sobre as próprias pernas, agachados. E quem tem 1,90 m ou mais nem entra. Para Pontes, de 1,68 m, isso não é problema.
ESTICADA NAS PERNAS
Segundo o astronauta americano Edward Lu, um dos poucos que tiveram a chance de viajar tanto na Soyuz quanto no ônibus espacial, a viagem na nave russa é mais turbulenta até a chegada à órbita – mas tudo bem, isso consome apenas 9 minutos. Depois, o pessoal amarga uma espera de dois dias até encontrar a estação espacial. Nesse meio-tempo, eles podem dar uma esticada nas pernas aqui no módulo orbital, que fica na ponta da Soyuz. É essa parte que se acopla à estação espacial. A aproximação e o encaixe das duas naves acontecem automaticamente. Os astronautas só precisam fazer alguma coisa em caso de emergência.
VOLTA PARA CASA
A nave se solta da estação e, depois de 3 horas de viagem, o módulo de reentrada se separa do resto da Soyuz (que pega fogo quando entra na atmosfera) e começa seu mergulho rumo às planícies do Cazaquistão, onde o resgate vai buscar os astronautas. As paredes externas da cápsula chegam a uma temperatura de até 1 650 oC. Todas as Soyuz feitas até hoje agüentaram a bronca. Acidentes, só tiveram dois: um em 1967, quando o pára-quedas de frenagem não abriu; outro em 1971, quando um vazamento deixou a cabine sem ar e os tripulantes morreram asfixiados. De lá para cá, todos têm de usar roupas pressurizadas durante a descida.
Para que ir até lá em cima?
O motivo principal: com a vaga de Pontes na estação, vêm as primeiras pesquisas científicas do país no espaço. Ele vai conduzir 8 ali. Todas sobre efeitos da ausência de peso – como qualquer uma feita na estação por outros países. Num deles, por exemplo, o astronauta vai testar a capacidade de reparos do DNA num ambiente sem gravidade. Em outro, mais prosaico e bolado por alunos de 1º grau, vai ver como sementes de feijão reagem lá no alto. Mas e aí? Vale a pena gastar 10 milhões de dólares para colocar brotos de feijão a 400 quilômetros de altura? Para a AEB vale, já que um dos objetivos da missão seria estimular os jovens daqui a perseguir uma carreira na ciência. “Além disso, o vôo serve para divulgar o Programa Espacial Brasileiro”, diz Sérgio Gaudenzi, presidente da agência. Mas que diabos é esse tal de “Programa Espacial Brasileiro”? Na verdade, o país foi um dos primeiros a ter aspirações espaciais. Começou em 1960, quando o presidente Jânio Quadros estabeleceu um grupo para formular uma estratégia para o setor. Essa equipe virou o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). E de lá para cá, a área de satélites foi a que decolou. Hoje o Brasil faz aqueles que monitoraram o desmatamento da Amazônia, por exemplo. Em outro ramo nacional, o de foguetes lançadores de satélites, o cenário é outro. Nossa última experiência com um deles causou uma baita explosão e 21 mortes. Ainda assim, existem projetos para criar novos foguetes. O mais potente, previsto para 2022, teria capacidade para lançar sondas interplanetárias. Viagens tripuladas? Não. Vamos continuar pedindo carona mesmo.
As entranhas da estação
Embarque nessacasa-da-mãe-joana hi-tech.
CENTRO TECNOLÓGICO
• O caótico módulo Destiny foi construído pela Boeing e chegou em 2001. Ele tem 13 “armários” para abrigar experimentos científicos, cada um do tamanho de um armário de verdade mesmo. Logo atrás dele está o módulo Unity, onde os painéis solares ficam presos.
• O visual lá dentro não tem nada de Jetsons. Além de fios pra todo lado, não falta fita adesiva para não deixar as bugigangas voando ao léu pela nave.
• À esquerda do Unity fica uma área hermeticamente isolada, com uma porta que abre para o vácuo. É daqui que os caras saem para andar no espaço.
O PRIMEIRÃO
• Aqui fica o porta-trecos. Este módulo, o Zarya (“nascer do sol”, em russo). Construído pela então União Soviética, foi o primeiro módulo a ser despachado para o espaço, em 1988. Hoje serve como bagageiro e porta de entrada da estação – olha a Soyuz estacionada ali.
• Um dos experimentos mais comuns ali é criar plantas no ambiente sem gravidade, coisa que pode ser útil em futuras missões de longa duração.
HOTEL RUS
• O laboratório Zvezda (“estrela”, em russo) é o módulo mais caseiro, já que não tem as paredes tão atulhadas. Ele chegou em 2000 e serve de dormitório. A estação, aliás, tem 44,5 metros de comprimento. Pouco, mas os astronautas pelo menos podem andar no teto.
• Eles levam comida desidratada e algo parecido com carne seca. Sal? Tem, mas só em forma líquida – senão os grãozinhos flutuariam para sempre lá.
• Eles têm de malhar 4 horas por dia. Mas até fazer esteira é difícil, já que o corpo tem de ficar amarrado para não sair voando ao primeiro passo.
Para saber mais
A Vida no Limite – Frances Ashcroft, Jorge Zahar Editor, 2000
International Space Station – https://spaceflight.nasa.gov/station