Bem-vindos ao mundo de Asimov
As duas versões de Eu, Robô, a sagaque mostrou ao mundo do que as máquinas- e a natureza humana - são capazes
Isaac Asimov (1920-1992) tinha menos de 20 anos quando perdeu a paciência: não agüentava mais a lenga-lenga das histórias de robô. Eram todos uns Frankensteins! Resolveu que os autômatos das suas histórias seriam diferentes. Não bonzinhos – “bondade” e “maldade” são idéias orgânicas demais para uma lata cheia de circuitos. Eles teriam seus cérebros programados para obedecer certas diretrizes. Mais exatamente, três. As três leis da robótica:
1. Um robô não pode ferir um ser humano nem, por inação, permitir que ele seja ferido.
2. Um robô deve obedecer as ordens dos seres humanos, exceto quando elas entrarem em conflito com a primeira lei.
3. Um robô deve proteger sua existência, mas só se isso não entrar em conflito com a primeira ou a segunda leis.
Estava feito: por mais poderoso que fosse, um robô “morreria” se burlasse as regras. Simples, não? Nem tanto. Como qualquer lei que se preze, essas trazem ambigüidades. E foram esses paradoxos que deram às histórias do livro Eu, Robô (1939) uma vitalidade psicológica nunca antes vista nesse tipo de ficção. No conto “Mentiroso”, por exemplo, um robô lê pensamentos e sofre por não poder falar o que uma pessoa pensa de ruim da outra. Isso deixaria os humanos moralmente “feridos”, o que entra em conflito com a primeira lei. Para evitar o problema, o autômato só diz o que as pessoas, no fundo, querem que ele diga. E os humanos, bobos, acreditam no robô. Quando vêem que tudo não passava de mentiras para driblar a lei da robótica, acabam duplamente feridos. Nada mais ambíguo.
Depois de 65 anos, Eu, Robô chegou às telas – e em uma nova história, que não está em nenhum dos contos do livro. O jeito de contá-la também foi diferente: enquanto o livro é cheio de diálogos, quase como um roteiro de teatro, o filme é uma chuva de ação e de efeitos especiais. Pode ser menos profundo, mas teve ao menos um mérito: deu uma emoção genuína, convincente ao rosto das máquinas, coisa que até hoje só existia na imaginação dos leitores.
Nas páginas a seguir você vai ler entrevistas com as duas pessoas mais aptas para explicar cada uma dessas versões. A primeira é a psicóloga de robôs Susan Calvin, em uma história escrita por Asimov para interligar os contos do livro. O segundo é John Nelson, o especialista em efeitos especiais que deu vida aos robôs. Qualquer que seja a versão, o que está por trás é Isaac Asimov, o homem que, com seus robôs, criou um jeito especial de traduzir as fraquezas humanas.
Um conto de Isaac Asimov
Susan Calvin: Robopsicóloga
Entrevistada por: Imprensa Interplanetária
Eu, robô
Olhei para minhas anotações e não gostei do que vi. Tinha passado três dias na U.S. Robôs e bem que poderia ter estado em casa com minha Enciclopédia Telúrica.
Susan Calvin tinha nascido em 1982, era o que eles diziam, portanto devia estar agora com 75 anos. Todos sabiam disso. Bem adequadamente, a U.S. Robôs e Homens Mecânicos também estava com 75, já que fora no ano do nascimento da dra. Calvin que Lawrence Robertson dera entrada nos papéis de incorporação do que, eventualmente, iria se tornar o mais estranho gigante industrial da história humana. Bem, todos sabiam disso também.
Com 20 anos, Susan Calvin participara daquele seminário de Psico-Matemática no qual o dr. Alfred Lanning, da U.S. Robôs, exibira o primeiro robô móvel equipado com voz. Era um robô grande, desajeitado e feio, fedendo a óleo de máquina e que estava destinado às minas do planeta Mercúrio, então em projeto. Mas podia falar e ser entendido. Susan não disse nada naquele seminário; não tomou parte no animado período de discussões que se seguiu. Era uma moça fria, comum, sem atrativos, que se protegia contra um mundo que a desagradava através de uma expressão gélida e um intelecto hipertrofiado. Mas, enquanto observava e escutava, sentiu o despertar de um frio entusiasmo.
Em 2003, ela obteve seu grau de bacharel na Universidade de Colúmbia e começou seu trabalho de graduação em cibernética.
Todas as pesquisas com “máquinas calculadoras” feitas em meados do século 20 tinham ficado obsoletas com o trabalho de Robertson e seus circuitos cerebrais positrônicos. Os quilômetros de relés e fotocélulas foram substituídos por um globo esponjoso de platinuirídio do tamanho de um cérebro humano.
Susan aprendeu a calcular os parâmetros necessários para fixar as variáveis possíveis dentro do “cérebro positrônico”; projetando “cérebros” nos quais a resposta a determinados estímulos podia ser prevista com precisão.
Em 2008, ela obteve o seu doutorado e entrou para a U.S. Robôs como “robopsicóloga”, tornando-se a primeira a praticar a nova ciência. Lawrence Robertson ainda era o presidente da corporação; Alfred Lanning tinha se tornado diretor de pesquisas.
Durante cinqüenta anos, ela assistiu a uma mudança na direção dos progressos humanos – e um salto à frente.
Agora estava se afastando – tanto quanto jamais seria capaz. Pelo menos estava permitindo que o nome de outra pessoa fosse colocado na porta de seu escritório.
Era isso, essencialmente, o que eu tinha. Possuía uma longa lista de seus trabalhos publicados, as patentes feitas em seu nome; tinha todos os detalhes de suas promoções, em ordem cronológica – resumindo, tinha sua vida profissional em todos os detalhes.
Mas não era isso o que eu queria.
Precisava de algo mais para os meus artigos na Imprensa Interplanetária. Muito mais.
Falei isso com ela.
– Dra. Calvin – eu disse, com todo o entusiasmo possível –, aos olhos do povo a senhora e a U.S. Robôs são idênticos. Sua aposentadoria será o fim de uma era e…
– E você quer o lado humano?– ela se adiantou, sem sorrir para mim. Acho que ela nunca sorri. Mas seu olhar era penetrante embora não fosse cruel. Senti seu olhar passar através de mim e me senti anormalmente transparente para ela, como todo mundo.
Mas disse:
– Exatamente.
– O lado humano de robôs? Isso é uma contradição.
– Não doutora. O seu lado humano.
– Bem, eu já fui chamada de robô. Certamente já lhe disseram que eu não sou humana.
Realmente tinham, mas não valia a pena confirmar.
Ela se levantou da cadeira. Não era alta e parecia frágil. Eu a segui até a janela e olhamos lá para fora.
Os escritórios e fábricas da U.S. Robôs formavam uma pequena cidade; planejada e ampla. Era achatada como uma fotografia aérea.
– Quando eu cheguei aqui – ela disse – eu tinha uma pequena sala em um prédio bem ali, onde agora fica a estação dos bombeiros – indicou com o dedo –, ele foi demolido antes que você nascesse. Eu dividia uma sala com outros três, tinha direito a metade de uma mesa. Construíamos nossos robôs num único prédio.
A produção era de três por semana.
Agora olhe para nós.
– Cinqüenta anos é um bocado de tempo – comentei tolamente.
– Não quando você olha para eles em retrospectiva. Aí você se pergunta como eles puderam passar tão rapidamente – ela disse.
Voltou para sua mesa e se sentou. Não precisava de uma expressão no rosto para parecer triste.
– Quantos anos você tem? – perguntou.
– Trinta e dois – respondi.
– Então não se lembra de um mundo sem robôs. Houve uma época em que a humanidade enfrentava o universo sozinha e sem um amigo. Agora tem criaturas para ajudá-la, criaturas mais fortes do que o homem, mais fiéis, mais úteis, e absolutamente devotadas aos seus senhores.
A humanidade não está mais sozinha. Já pensou desse modo?
– Temo que não. Posso citar suas palavras?
– Pode. Para você um robô é um robô. Metal e engrenagens; eletricidade e pósitrons, mente e ferro! Feito pelo homem e, se necessário, destruído pelo homem! Mas nunca trabalhou com eles, portanto não os conhece. Eles são uma espécie muito melhor do que a nossa.
Tentei provocá-la disfarçadamente com palavras.
– Gostaríamos de ouvir algumas das coisas que pode nos dizer; sua opinião sobre os robôs.
A Imprensa Interplanetária alcança todo o Sistema Solar. A audiência em potencial é de três bilhões, dra. Calvin. Eles precisam saber o que a senhora pode dizer sobre os robôs.
Não era preciso provocá-la. Ela não me ouviu, mas já estava seguindo na direção certa.
– Eles deviam saber disso desde o começo. Vendíamos robôs para uso na Terra naquela época, antes do meu tempo. É claro que isso foi antes que os robôs pudessem falar. Depois eles se tornaram mais humanos e a oposição começou. Os sindicatos, naturalmente, se opunham a que os robôs competissem com os trabalhadores humanos, e vários segmentos religiosos também se opunham com base em suas superstições.
Tudo muito ridículo e muito inútil. E no entanto, lá estava.
Eu estava anotando tudo em minha máquina taquigráfica de bolso, tentando não demonstrar os movimentos com os nós dos dedos de minha mão. Se praticar bastante você pode anotar tudo com precisão sem tirar a maquinazinha do bolso.
– Veja o caso do Robbie – ela continuou. – Eu nunca o conheci, foi desmontado um ano antes de eu entrar para a companhia, obsoleto. Mas vi a garotinha no museu…
Ela parou, mas eu não tinha falado nada. Deixei seus olhos se focalizarem de novo, sua mente viajar de volta. Tinha um bocado de tempo para cobrir.
– Ouvi falar dele depois, e quando nos chamavam de blasfemadores e criadores de demônios, eu sempre pensava nele. Robbie era um robô não-vocal. Ele não podia falar. Foi feito e vendido em 1996. Nos dias antes da especialização extrema, assim foi vendido para servir de babá…
– De quê?
– De babá…
Vale a pena ler
Eu, Robô, Isaac Asimov, Ediouro, 2004