Mecânica de precisão
Receita de um carro imbatível: junta-se um motor potente, um chassi com ótima aerodinâmica, um combustível explosivo sob medida uma suspensão inteligente. O prato perfeito chama-se Williams.
Fátima Cardoso, Ivan Martins e Gisela Heymann
O campeonato de 1992 entrará para a história como o mais monótono já disputado na Fórmula 1. Com precisão de relógio suíço e previsibilidade de pôr-do-sol, os FW14B da equipe Williams-Renault venceram tantas corridas que, dois meses antes do fim do campeonato, já se sabia que Nigel Mansell, salvo tragédia, seria o campeão da temporada. Mansell, até o ano passado um veloz quebrador de carros, quebrou este ano o recorde de oito vitórias numa mesma temporada, reduziu a pó os limites de velocidade dos circuitos e, junto com Riccardo Patrese, levou a Williams à liderança absoluta entre as escudarias de Fórmula 1. Aos outros, só restou a poeira.
A escuderia fundada em 1968 pelo engenheiro inglês Frank Williams construiu para a temporada 92 um carro uma geração à frente dos demais competidores. O espécime mecânico FW14B está para as McLaren e Benetton como um Homo sapiens sapiens está para um Neandertal — ele é mais inteligente, mais adaptável, mais competitivo. Que mágica fez Frank Williams para chegar a um carro quase perfeito, à prova de erros, seguramente à prova de Nigel Mansell? Várias. “É inútil tentar explicar a superioridade do nosso carro por uma ou outra característica isolada·, avisa Gary Grumpler, porta-voz da equipe. “Este carro é um pacote integrado, uma peça aerodinâmica de alta sensibilidade”, disse ele a SUPERINTERESSANTE. “Não temos nenhum grande segredo.” Têm sim. Ainda que o sucesso do carro se deva à felicíssima conjunção aerodinâmica-motor-combustível, é a suspensão ativa— o segredo mais cobiçado da Williams — que faz a diferença a favor dos ingleses azuis e amarelos.
Quem assistiu ao Grande Prêmio do México, na pista irregular do circuito Hermanos Rodriguez, viu pela câmera a bordo dos carros o tanto de solavancos que sofriam os McLaren, enquanto as Williams pareciam deslizar sobre a pista. Ninguém sabe como a Williams conseguiu fazer a suspensão ativa funcionar tão perfeitamente, mas as especulações são muitas. A única certeza salta aos olhos: a Williams anda sempre reta na pista, paralela ao chão. O carro não chacoalha, não se inclina nas curvas e a frente não levanta na aceleração nem abaixa nas freadas.
O sistema tradicional de suspensão é como trancar a porta depois que o ladrão entrou: quando a roda sobe ao passar por uma ondulação, o amortecedor absorve uma parte do impacto e, em conjunto com a mola, empurra a roda de volta à posição original. Como a suspensão é muito mais dura do que em um carro de passeio, para que o Fórmula 1 balance pouco e se mantenha estável nas curvas, o resultado é um solavanco.
Na Williams, a suspensão é “inteligente”: de alguma forma, que ninguém da fábrica revela nem sob tortura, as rodas sabem o que lhes espera à frente. A esperteza do sistema começa na troca de amortecedores e molas por atuadores hidráulicos — pistões ligados a reservatórios de óleo pressurizado. Uma válvula comandada eletronicamente injeta mais óleo quando deve endurecer a suspensão, e deixa óleo sair quando a ordem é amolecer. Essa é a parte mais fácil, pois essa tecnologia já existe em carros de rua na Europa. Difícil é fazer o atuador responder sob medida para cada palmo de chão em cada um dos dezesseis circuitos do campeonato.
A Williams FW14B se comporta como se suas rodas adivinhassem a topografia da pista. Quando passa sobre uma ondulação, o atuador amolece, a roda sobe e desce, o atuador endurece de novo e o carro continua como se nada tivesse acontecido. A fábrica admite que há censores nas barras de suspensão, como em qualquer outro carro rival, a transmitir as informações sobre a pressão sofrida pelas rodas a dois computadores de bordo. Com base nesses dados, os computadores calculam quanto o atuador deve amolecer ou endurecer.
A diferença entre o sistema atual e aquele usado pela Williams e pela Lotus em 1987, que nunca funcionou direito, é que hoje ele reage em tempo real. O segredo pode estar no software dos computadores de bordo que gerenciam o sistema. A própria evolução da Informática, com chips cada vez menores, com mais memória e maior velocidade de processamento, permite levar em conta esta hipótese: assim que os censores da suspensão percebem uma ondulação, o computador calcula a resposta dos atuadores em milésimos de segundo, a tempo de ser eficiente, e não alguns metros depois.
Correu pelos boxes um boato, porém, de que o grande mistério da suspensão ativa seria um radar capaz de ler o terreno à frente do carro e enviar as informações ao computador, que então mandaria os atuadores amolecerem na hora certa. Se isso é verdade, não confirmada pela equipe, esse radar seria do tipo usado para mapeamento o mesmo, que equipa aviões de caça como o Tornado. Cabe um equipamento de radar num Fórmula 1? Perfeitamente. A antena, pequena porque seria de baixa potência, com alcance de alguns metros à frente do carro, poderia ir escondida no bico. “O problema não é a leitura do solo nem o processamento e envio de ordens pelo computador”, explica Augusto Meyer, engenheiro eletrônico especialista em radares e fã de automobilismo. “O desafio é conseguir que haja resposta rápida do mecanismo que move a suspensão. A engenharia eletrônica evoluiu muito mais do que a mecânica.
“A outra façanha da suspensão espertinha — manter o carro reto nas curvas e freadas — é conseguida com acelerômetros colocados embaixo do banco do piloto. Esses sensores informam aos computadores as acelerações lateral e longitudinal do carro, enquanto os sensores da suspensão informam a carga que está sendo exercida em cada roda. Traduzindo, os computadores calculam o quanto o carro se inclina para a direita quando faz uma curva para a esquerda, e o quanto inclina o bico para baixo numa freada ou para cima numa acelerada forte. Diagnosticando a inclinação para a direita, por exemplo, o computador manda endurecer a suspensão daquele lado, para que o carro volte a ficar reto.
Um Fórmula 1 paralelo ao chão durante todo o circuito, que mantém o mesmo ângulo de ataque em relação ao ar, é o sonho de todo projetista. Com esse comportamento, é como se o carro corresse na condição ideal de um túnel de vento. A Williams anda assim. Seguindo a tendência inaugurada por Harvey Postlewhite na Tyrrel, em 1990, o projetista Adrian Newey desenhou um carro com o bico alto e curvo. Antes, o bico era reto, rente ao chão, para evitar que ar turbulento passase por baixo do carro. Agora, o bico alto e curvo deixa o ar entrar, só que disciplinado e direcionado.Faz toda a diferença. Um Fórmula 1 tem o perfil de asa de avião: o ar passa mais rápido em cima, cria uma zona de baixa pressão ali e o carro tende a voar.
Só não decola porque os aerofólios têm o perfil invertido, e empurram o carro para baixo. Se o projetista consegue fazer o ar de baixo passar disciplinadamente também em alta velocidade, a diferença de pressão cai; isso é o famoso efeito solo. Como o carro tende menos a ser puxado para cima, é preciso menos pressão de aerofólio para mantê-lo no chão. Resultado da matemática aérea: o carro vence melhor a resistência do ar e pode correr mais solto — com pouca asa, como se diz no automobilismo. Resultado da equação: a Williams corre muito nas retas e é estável nas curvas.
A aerodinâmica eficiente em vencer a resistência do ar é um prato cheio para quem vem empurrando atrás: o motor Renault V10 RS3C, 740 cavalos (palavra oficial da fábrica) e 14 000 rotações por minuto.Contrariando a moda lançada pela Ferrari de ganhar potência construindo motores de doze cilindros, a Renault ficou nos dez, e consegue a mesma potência do V12 da Honda. Bernard Dudot, diretor da Renault Sport, contou a SUPERINTERESSANTE por que fez essa escolha quando a fábrica voltou à Fórmula 1 há três anos. Ele lembra que chamou vários amigos especialistas em chassis para opinar sobre qual seria o motor ideal entre o V8, V10 e V12.Ganhou o V10 de ângulo fechado — cinco cilindros de cada lado, dispostos em forma de V. Não era a escolha mais fácil para a fabricação, segundo Dudot, mas não há sombra de arrependimento. “Penso que o V12 é uma escapatória para a falta de tecnologia”, alfineta Dudot. “Se temos pouca tecnologia para fazer um V10 funcionar, a primeira solução é colocar mais dois cilindros e assim aumentar a potência”.
A grande vantagem do V10 em relação ao V12 é ser mais leve e menor. Como a velocidade é resultado da equação peso/potência, fica claro que nem sempre uma cavalaria pesada é a melhor solução. Bernard Dudot ainda vê muita estrada para o V10 antes de pensar em acrescentar mais dois cilindros ao Renault. “O maior potencial de evolução do motor está na escolha dos materiais”, afirma. “O objetivo é fazer com que o motor gire o mais rápido possível com o menor desgaste. Logo, se o construirmos com materiais mais resistentes e mais leves, a tarefa será mais fácil.”A Renault emprega ligas especiais de alumínio e titânio nas partes estruturais dos motores, como pistões e cilindros, que fazem o trabalho pesado. “Ainda não estamos na era das cerâmicas, porque são muito frágeis, mas já usamos carbono nas partes não estruturais”, diz Dudot.
Para aumentar a performance do motor francês, só uma poção mágica francesa: o combustível da Elf, capaz de aumentar a potência em até 7%. Milagre? “Falou-se muito de uma suposta molécula milagrosa que a Elf teria descoberto”, diz Valérie Jorquera, engenheira química da Elf. “Isso não existe. Trabalhamos duro o ano inteiro e melhoramos a performance do combustível aos poucos.”E como trabalham. De julho do ano passado a julho deste ano, a Renault testou para a Elf 34 gasolinas diferentes. Para cada mistura testada, a Elf fez cinco, ou seja, desenvolveu 170 gasolinas em um ano. A Federação Internacional de Automobilismo Esportivo, tentando acabar com essa farra, quer padronizar o combustível para todas as equipes — um golpe no feliz casamento da gasolina Elf com o motor Renault. Até que ponto isso abala o perfeito equilíbrio do carro Williams é uma pergunta a ser respondida na pista.
Tanta pesquisa em combustível é necessária porque há centenas de produtos em cada uma das cinco grandes famílias de hidrocarbonetos que compõem a gasolina — parafina, isoparafina, aromáticos, olefina e nafta —, o que propicia uma enormidade de misturas diferentes. “Estamos sempre à procura de uma molécula que ofereça boa combustão, ou seja, queime exatamente no mesmo tempo de rotação do motor, nem antes nem depois, e que tenha consumo mínimo”, explica Valérie.
Para cada circuito é feita uma gasolina sob medida. Em Mônaco, uma pista de média baixa de velocidade, a gasolina era menos eficiente do ponto de vista do consumo, mas tinha melhor performance na retomada de aceleração. Valérie rechaça a impressão de que essas gasolinas — 20 dólares o litro — são tóxicas só por causa do cheiro horrível. “Na gasolina da Elf não há componentes aromáticos, como o benzeno, que são altamente tóxicos”, explica. A gasolina comercial de qualquer posto tem 25% de componentes aromáticos, benzeno incluído.Para domar a cavalaria envenenada da Renault, a Williams tem o câmbio semi-automático. Um sistema hidráulico administrado por computador controla a embreagem e faz a seleção de marchas cada vez que o piloto aperta um dos interruptores atrás do volante — há um botão para reduzir e outro para subir a marcha. Assim, o piloto mantém as duas mãos no volante durante toda a volta, e ainda é impedido de fazer besteiras pelo computador.
Se ele tentar engatar uma segunda quando deveria colocar a quinta, o computador sabe em que rotação está o motor e ignora a ordem que provavelmente estouraria o câmbio.Esse é também o motivo de o sistema ser semi, e não totalmente automático. “Imagine se o computador decidisse mudar de marcha no meio de uma curva baseado apenas na rotação do motor? “, indaga o porta-voz Gary Grumpler. Outra razão é que um câmbio automático inibiria o estilo de cada piloto. A Williams tem Riccardo Patrese, que sempre reduz na entrada das curvas, e Mansell, que sob pressão às vezes mal executa as curvas.O controle automático de transmissão é outro recurso que faz da Williams um carro resistente a pilotos afobados. Se um sensor na roda indicar que ela está girando mais rápido do que seus avanços no chão — ou seja, patinando —, o computador imediatamente desliga dois ou três pistões do motor, reduzindo a velocidade do carro. O processo permite largadas em altíssima rotação sem risco de derrapagem. O piloto só acelera e vai embora, o sistema de transmissão cuida do resto. A Williams colocou tanta inteligência num Fórmula 1 que nem o estabanado Mansell consegue atrapalhar seu desempenho.
Para saber mais:
(SUPER número 4, ano 5)
A implacável dinâmica dos carros
(SUPER número 10, ano 6)