José Emílio Rondeau
Depois de Toy Story, totalmente feito em computadores, O Corcunda de Notre Dame, que estréia dia 28 nos cinemas brasileiros, vem para mostrar que o desenho animado mais artesanal ainda tem o seu espaço. Neste filme, o 34º longa-metragem dos estúdios Disney, as mãos humanas contaram muito. Trabalharam nele cerca de 1 400 delas. Mas a tecnologia, como você vai ver nesta reportagem, também foi fundamental.
É sem dúvida, uma superprodução. E internacional. Para fazer os 700 OOO desenhos utilizados em O Corcunda de Notre Dame, baseado no romance clássico de Victor Hugo, pela primeira vez na história da Disney foi mobilizado um exército instalado não apenas no QG da empresa, em Burbank, Califórnia (veja mapa no alto da página ao lado). Equipes baseadas em Orlando, na Flórida, e em Paris também deram sua contribuição. Dos 700 técnicos e artistas em ação durante os três anos que durou a produção, cerca de 100 eram franceses. “Tínhamos gente em diferentes fusos horários, o que significa que se trabalhava 24 horas por dia”, conta o produtor Don Hahn, com vinte anos de Disney.
A decisão de botar os franceses na jogada não foi casual. “Eles cresceram conhecendo a obra de Hugo e todo dia passam na frente da catedral de Notre Dame”, Justifica Hahn. Esse pessoal ajudou a montar o clima do Corcunda, na Paris da Idade Média. Mas foi nos Estados Unidos que se construiu a cena mais trabalhosa e tecnológica, com 10 OOO figurantes (veja nas páginas 36 e 37). Ao todo, foram investidos 35 milhões de dólares, pouco mais do que os 30 milhões de Toy Story, e o resultado de bilheteria promete ser igualmente bom. Ou melhor, pois em seu último filme a mais produtiva fábrica de fantasia do mundo não esqueceu dos adultos. Eles também vão adorar.
Uma pitada de boa informática
Embora seja um produto um tanto artesanal, O Corcunda de Notre Dame não saiu todinho da ponta do lápis. Se tivesse saído, provavelmente ainda não estaria pronto, principalmente por causa de uma única seqüência, que foi apelidada pela equipe de Topsy Turvy (tumulto). É a cena que marca a visita de Quasímodo à movimentada e colorida praça defronte à igreja. Lá, ele participa de uma festa popular, com direito a concurso de máscaras, muito parecida com o nosso carnaval, e conhece a cigana Esmeralda, que se torna objeto de seu desejo. Para chegar ao resultado planejado, digno de um épico, o produtor Don Hahn e os diretores Gary Trousdale e Kirk Wise precisaram convocar o programador de computadores Kiran Joshi, um sereno nepalês,que realizou o milagre de transformar seis figurantes em 10 000 (veja ao lado).
Don Hahn resume a importância da participação de Joshi: “Quando você assiste a um desenho animado, está vendo 24 desenhos por segundo para cada personagem. Se ele tiver uma sombra, são 48 desenhos por segundo. Se forem dois personagens com sombra, serão 96 desenhos por segundo. Para 10 000 personagens, seriam necessários algo como 480 000 desenhos por segundo, mais do que se empregou em todo A Bela e a Fera, de 1991”. Pelos cálculos de Hahn, usando técnicas convencionais de animação eles levariam coisa de dois anos para fazer uma cena com apenas 5 000 figurantes que durasse dois segundos. “Antigamente”, complementa Kirk Wise, “para fazer uma cena como Topsy Turvy, criaríamos um desenho com 1 000 pessoas, mas seria uma multidão estática, com talvez uma bandeira tremendo, uma mão acenando, uma fumaça subindo.”
Nada a ver com o método informatizado de Joshi. O software havia sido desenvolvido para a cena do estouro de uma manada de gnus em O Rei Leão, de 1993. “Mas precisamos fazer muitas modificações”, explica o nepalês. “No caso dos gnus, todos os animais íam na mesma direção, enquanto que em Topsy Tuvy tem gente parada, se movendo, olhando para um lado, acenando para o outro.” O resultado dessa confusão toda é uma cena de tirar o fôlego.
Todas a peças do mosaico
Quem perguntar a Don Hahn, como se faz um desenho animado, obterá uma resposta simples. “Ele vai sendo composto como um mosaico.” O diretor Kirk Wise explica o que isso significa. “Primeiro, três ou quatro animadores riscam uma porção de desenhos de como os personagens devem ser. Em algumas semanas, você fica com três ou quatro paredes cobertas de dúzias de versões de cada personagem.” A partir desse material, esboçam-se as cenas de forma rudimentar. Gravado em vídeo, com vozes da equipe, esse roteiro, chamado storyreel, vai sendo aperfeiçoado até se transformar, dois ou três anos mais tarde, no próprio filme, o mosaico completo.
Feitos os rascunhos iniciais, é hora de achar atores para os papéis. Para o Corcunda foram escolhidos, entre outros, Tom Hulce e Demi Moore. Segundo Wise, mais do que a performance de um astro em cena, o que irnporta é a personalidade da sua voz. Ele conta que a Disney já quis usar Julia Roberts em desenhos. “Ela é uma estrela, mas se tirarmos seu sorriso, seu cabelo, seu olhar não dá certo. Você precisa achar um ator capaz de representar apenas com a voz.” É ela que ajuda a moldar o jeitão do personagem, embora maneirismos do artista e do animador, que se olha no espelho para copiar expressões, acabem interferindo no desenho.
Constante revisão
Enquando o desenhista trabalha, o diretor de arte esboça o visual do conjunto da obra. Para isso, no caso do Corcunda, explica Wise, “foi preciso pesquisar a roupa e a arquitetura da época, coisas como a largura das ruas e quanta gente andava nelas”. Documentou-se até a textura das pedras da catedral. Uma maquete dela era levada para as reuniões da equipe.
Conforme essas informações vão sendo acrescentadas, centenas de milhares storyboards, desenhos-guia, que indicam enquadramento, posição dos personagens e a ação da cena, saem das pranchetas. Dois terços deles vão para o lixo. “É um processo de constante revisão”, diz Wise. À medida que a história se arredonda, escolhe-se os momentos para as músicas. Os compositores trabalham com base nos storyboards. Canções gravadas, começa a ser feito o casamento entre vozes e desenhos. E, finalmente, um trabalho de limpeza: o traço dos animadores é burilado por um único artista, de modo a manter a uniformidade. Em paralelo, são feitos os fundos das cenas. Depois que eles são aplicados, adiciona-se os efeitos especiais, como reflexos, chuva, relâmpago, vento. Só nesse momento o filme vai para o computador, para receber cores e eventuais cenas produzidas pela informática. O mosaico, enfim, ficou pronto.
Sinuca entre um desenho e outro
Quem olha por fora o prédio da Disney, em Burbank, Califórnia, vê a reprodução do chapéu do Mickey no filme Fantasia, como na foto da página 35. Quem olha por dentro vê os melhores animadores do mundo. Trabalhando, jogando sinuca ou batendo papo nos enormes corredores salpicados de largas janelas, com o sol da Califórnia entrando sem cerimônia. Os 22 500 metros quadrados da construção foram inaugurados em 1994 para dar conta do crescimento do time. “Há oito anos éramos 160 pessoas, hoje somos mais de 1400, incluindo as turmas da Flórida e de Paris”, diz Peter Schneider, presidente do Departamento de Animação. Foi neste lugar que boa parte dos responsáveis pelo Corcunda trabalhou. Lá também estão sendo produzidas as próximas atrações do estúdio: Hércules, sobre o deus grego, a nova versão de Fantasia, Bugs (besouros), todo feito em computadores, Tarzan, o rei das selvas, Dinosaurs, com animação e cenários reais, e The Legend of Mu Fan, baseado num conto chinês.
* José Emílio Rondeau é correspondente da revista SET em Los Angeles, Estados Unidos.
O milagre da multiplicação
Veja, passo a passo, como uma multidão de 10 000 pessoas em movimento pode nascer na tela do computador Sem a informática, que realizou o prodígio em algumas semanas, os animadores levariam anos para produzir o batalhão de figurantes em ação. E provavelmente não chegariam ao mesmo resultado.
Para começar, três homens e três mulheres… E surge o tumulto organizado matematicamente
1 Modelos básicos
Antes de mais nada, foram criados e animados seis modeios, três de homens (o da foto é um deles) e três de mulheres Num primeiro momento, esses modelos não tinham roupas, cabelos ou qualquer acessório. Eram bonecos bem simples, que iriam ganhar a capacidade de se mexer de uma maneira predefinida com um ritmo particular.
2 Banho de loja
Antes de se pensar em movimento, foram inventados três tipos de roupa para cada um dos modelos básicos. Eles ganharam barbas, bigodes, chapéus, laços, aventais e outros adereços com desenho e tonalidades diferentes. O resultado foi um grupo de dezoito personagens. Na foto você vê as três versôes para o modelo de homem do item anterior.
3 Bons disfarces
Também foram criadas máscaras diferentes para cada um dos personagens anteriores. Como eles apareceriam com e sem máscaras, isso significa que foram duplicados nesta etapa do trabalho. As diferenças não são muito grandes entre um e outro, mas mais tarde, no meio da multidão, eles parecerão tipos bem definidos.
4 Sincronia eletrônica
Para se obter um resultado animado, os modelos básicos, ainda sem roupas ou adereços, foram multiplicados muitas vezes e posicionados, cada um com seu ritmo de movimento e situação específica em relação à tela. Essa parte a máquina fez quase sozinha. A cena foi organizada matematicamente, de modo que os movimentos de uns bonecos não trombassem com os dos outros.
5 Roupas vivas
As roupas bveram que ser animadas separadamente e essa foi a etapa mais dificii do processo. “Se você dá aos personagens três tipos de roupa, precisa dar também três animações diferentes”, explica Kiran Joshi, o criador do programa. Para faciiitar o trabalho, ele conta, optou-se por mostrar a maior parte dessa gente apenas da cintura para cima, concentrando esforços em diferentes acessórios.
6 Enfim no filme
Apenas depois dos figurantes bem distribuídos e já com seus movimentos específicos definidos é que foi aplicado o cenário. Um processo relativamente simples, uma vez que o ambiente já estava criado, pelos animadores que trabalharam na história desde os esboços iniciais fveja texto na piágina 38). Repare como à medida que a cena fica mais complexa os figurantes vão adquirindo personalidade.
7 Todos juntos
Pronto! Está montada a cena. Na foto você vê apenas uma das tomadas, mas a multidão aparece em mais de 5 minutos do filme. Os personagens masculinos ainda foram utilizados em outra sequência. “Construímos um soldado e o multiplicamos. Depois, o pusemos para lutar com os mesmos caras que tínhamos criado para a cena da praça”, conta Kiran Joshi.
Som, cor e muitos dólares
Conhecer a história da fábrica de fantasia criada por Walt Disney é como conhecer a história do desenho animado. Veja aqui alguns de seus momentos mais importantes.
Mickey falante
O rato Mickey estreou em Steamboat Willie (vapor Willie), de 1928, primeiro desenho animado com som. Ele falava com a voz de Walt Disney (1901-1966).
Flores coloridas
Flowers and Trees (flores e árvores) inaugurou, em 1932, a cor nas animações. A partir dele, a Disney não produziu mais nada em preto e branco.
Donald nas telas
O Donald sugiu em 1932, no filme The Wise Little Hen (a pequena galinha esperta). Era um pato mal-humorado e de pavio curto.
Uma longa história
O primeiro desenho animado em longa metragem foi Branca de Neve e os Sete Anões, lançado no final de 1937. Custou 1,5 miihão de dólares.
Alto e bom som
Lançado em 1940 para prestigiar o Mickey, abalado pela popularidade do Donald, Fantasia foi o primeiro desenho com som estereofônico.
Amor em tela larga
A Dama e o Vagabundo, de 1955, ampliou os horizontes da animação. Foi o primeiro desenho projetado em tela mais larga, o Cinemascope.
Sherlock informatizado
Os computadores foram estreados em desenhos em As Peripécias de um Ratinho Detetive, de 1986, para dar ritmo a uma cena nas engrenagens do Big Ben.
Quase um Oscar
Com a indicação de A Bela e A Fera para o Oscar de melhor filme, em 1991, o desenho animado deixa de ser coisa de criança. Ganha status de arte.
O estouro da manada
Os computadores são convocados de novo em O Rei Leão, de 1994. Desta vez ajudam a multiplicar animais, na cena de estouro de uma manada de gnus.
Tudo no computador
Toy Story surge como uma revolução, em 1995. É anunciado como o primeiro filme totalmente feito em computadores.
Também para adultos
Quando se pensava que o desenho à mão estava aposentado, O Corcunda de Notre Dame é lançado com menor participação dos computadores. E ainda utilizando tema adulto.
Várias versões para a mesma história
O francês Victor Marie Hugo (1802-1885) foi um escritor precoce. Aos 20 anos publicou seu primeiro livro de poemas. Mas foi 0 Corcunda de Notre Dame, comovente história de um homem deformado que no século XV vive aprisionado na catedral de Paris e de uma cigana, lançado quando tinha 29 anos, que o tornou popular. Perguntado sobre a razão de a Disney transformar a obra, que aliás não tem nada de infantil, em desenho animado, o produtor Don Hahn só consegue dizer que o drama de Quasímodo e Esmeralda é uma grande história. “E, como contadores de história, ela nos interessa.” Do mesmo modo que já interessou outros fazedores de cinema. Em 1923, um filme mudo contou-a pela primeira vez. Depois, em 1939 e em 1956, surgiram outras versões. Em 1982 foi parar na televisão, numa produção lançada em vídeo recentemente no Brasil. Das várias tentativas, nenhuma chegou perto de reconstruir a beleza do livro de Hugo. A Disney, com seus ingredientes de fantasia e humor, tem agora a sua chance.