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Os nerd$ vão às compras

Conheça o bairro de Berlim onde o bitcoin deixou de ser só uma curiosidade de matemáticos e já começou a dar outra cara para a economia local

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h32 - Publicado em 26 fev 2014, 22h00

Rafael Kenski

Estou escrevendo esta matéria em um café chamado Room 77, em Berlim, e vou pagar a conta com algo que era considerado praticamente uma brincadeira três anos atrás. Preciso apenas puxar o celular, escanear um código de barras, digitar o valor de três centavos e, pronto, está pago. A negociação foi feita em bitcoins, uma moeda que não é aceita por nenhum banco ou governo. É apenas uma tecnologia digital, um software como qualquer arquivo do seu computador, que o dono do bar decidiu achar que vale o mesmo que dinheiro. E não só ele. No mesmo quarteirão tem restaurantes, bares, um sebo de disco e uma loja de eletrônicos, todos dispostos a receber da mesma forma. A região ficou apelidada de bitcoinkiez (o “bairro do bitcoin”, em alemão), e é tida como o lugar no mundo onde melhor se pode viver sem precisar das moedas emitidas por qualquer governo. O próprio Room 77 se define como “o restaurante no fim do capitalismo”.

A primeira compra de um objeto concreto com bitcoins aconteceu em 2010, quando um usuário ofereceu 10 mil para que alguém enviasse duas piz- zas à casa dele – o que coloca o custo atual do jantar em mais de R$ 2 milhões. É que, na época, um bitcoin valia só alguns centavos, e agora vale mais de R$ 200 (ou pelo menos valia até o fechamento desta edição). A valorização é resultado de uma adesão cada vez maior por parte dos usuários e dos próprios comerciantes. Mesmo no Brasil, você pode usar bitcoins para pagar uma pousada no litoral de São Paulo ou alugar um apartamento no Rio de Janeiro.

Isso significa que o bitcoin já começa a preencher pelo menos um pré-requisito para funcionar como dinheiro: é algo que as pessoas querem e acreditam que tem valor. Como também se trata de um recurso escasso (a quantidade de moedas no mercado é controlada e vai diminuindo automaticamente com o tempo), já é meio caminho andado. O bitcoin foi inventado em 2008 para ser uma economia independente dos governos e 100% virtual: é como se o dinheiro de papel fosse extinto e sobrassem apenas as transações feitas por home banking.

No último mês de maio, a soma de todos os bitcoins circulando no mundo ficou acima de US$ 1 bilhão pela primeira vez. Para muitos economistas, é como se o mundo tivesse ficado louco e, de repente, todos começassem a aceitar dinheiro de Banco Imobiliário. Mas, para outros, essa é uma das maiores inovações já provocadas pela internet, mais revolucionária que MP3 ou e-commerce. É que o grande diferencial do bitcoin é inovar no produto mais valioso de todos: o próprio dinheiro.

Como transportar ouro na internet?

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Quando eu disse ao caixa do Room 77 que ia pagar em bitcoins, ele ficou tão surpreso quanto ficaria se eu tivesse dito que ia usar dinheiro ou o cartão de crédito. É que, além dos próprios moradores do bairro (o bitcoinkiez faz parte de uma região muito frequentada por jovens e estudantes), muita gente de fora faz questão de passar lá só para gastar suas moedas digitais. Esse movimento extra já ganhou dos comerciantes o apelido de “turismo bitcoin”.

Mas moedas que só existem eletronicamente não são algo do futuro e nem estão restritas a pequenas regiões como o bitcoinkiez. Jogos on-line como World of Warcraft e Second Life têm cada um o seu próprio dinheiro, normalmente usado para comprar e vender bens que só existem dentro da internet, mas que geraram uma economia avaliada pelo Banco Mundial em R$ 6,3 bilhões em 2011.

A popularidade desses serviços deixou claro o potencial da internet para serviços bancários. Em teoria, não há nada que impeça a realização de transferências instantâneas para qualquer lugar do mundo com taxas baixíssimas e anonimato total. Empresas como a e-gold e a Liberty Reserve tentaram fazer exatamente isso ao longo da última década. O problema é que, muitas vezes, elas eram usadas por criminosos, o que levou as empresas a serem fechadas, e os donos, condenados por facilitar lavagem de dinheiro.

O bitcoin também permite a mesma facilidade em transações, mas com uma diferença essencial: ele não tem dono, é totalmente descentralizado. E isso faz dele algo menos parecido com o dinheiro que você tem na carteira e mais relacionado a barras de ouro – algo que nenhum governo inventou, mas que é valioso e usado como dinheiro.

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Ser um “ouro on-line” traz diversas possibilidades. Para começar, não é necessário criar políticas monetárias ou confiar em banqueiros para tomar conta da sua grana. O bitcoin funciona por conta própria, seguindo apenas as regras inscritas no software que, por sua vez, pode ser verificado por qualquer pessoa. Criar um sistema assim não é fácil. Requer rastrear quem de fato tem ou não o dinheiro e evitar que as pessoas gastem mais de uma vez a mesma moeda – afinal, tudo o que é digital pode ser copiado infinitamente. Por isso, todas as negociações feitas em bitcoin são reunidas em um pacote e processadas por uma enorme rede de computadores a cada dez minutos. Essa rede é composta apenas por voluntários. Como recompensa, cada pacote sorteia 25 bitcoins entre eles. É assim que novas moedas entram em circulação, o que rendeu ao processo o apelido de “mineração”: é como se os computadores estivessem extraindo dinheiro do nada.

No começo, qualquer pessoa podia usar o próprio computador e ganhar uns trocados, mas o esquema se sofisticou rapidamente. Em 2011 já era preciso turbinar tanto o computador que um garoto ficou famoso por se tornar uma das primeiras vítimas dessa “nova era da economia”: as quatro máquinas que tinha em seu quarto esquentaram tanto que ele, dormindo, teve hipertemia e sofreu danos cerebrais permanentes. Amadores têm poucas chances de ganhar dinheiro nesse cenário, e menos ainda no Brasil. Como os dois insumos necessários para a mineração – eletrônicos e energia elétrica – são muito caros por aqui, o prejuízo é garantido.

Precisamos de uma moeda assim?

Vamos fazer um exercício de ficção científica: imagine a economia brasileira das décadas de 1980 e 1990, mas em uma realidade paralela na qual o bitcoin já tivesse sido inventado. Durante a hiperinflação dos anos 80, ele seria aceito em qualquer lugar: um tipo de pagamento fácil e barato, que não só está protegido da inflação como pode até valorizar. Daí, em 1990, quando o Plano Collor confiscasse a poupança, ele não conseguiria fazer nada com quem tivesse apostado na moeda virtual. E não importa o número de planos, pacotes ou corte de zeros que a política econômica fizesse, o bitcoin seguiria o seu curso.

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Algo parecido com esse cenário acontece hoje em alguns países. No começo de 2013, a ilha de Chipre sofreu uma crise que ameaçava até arrastar outros países da zona do euro. Coincidência ou não, o número de downloads de aplicativos relacionados a bitcoin explodiu em poucos dias. Era bastante claro que os bancos e governos tinham falhado, e muita gente resolveu se juntar ao sonho de uma moeda que não dependesse deles.

É inegável que existe o risco de, subitamente, o bitcoin perder valor. Uma tecnologia que se propõe a mudar toda a economia certamente vai fazer muitos inimigos. Os bancos, por exemplo, tiram boa parte de sua receita de transferências e serviços que o bitcoin se propõe a fazer quase de graça. Governos também poderiam investir contra a novidade que tira deles o monopólio sobre a produção de dinheiro. Hoje, eles até podem processar empresas do setor por lavagem de dinheiro, mas isso não acabaria com a moeda. Só que existem outras formas de ataque, como comprar e vender bitcoins em grandes quantidades e fazer o preço oscilar a ponto de deixar qualquer negociação inviável.

A principal ameaça é que, como toda tecnologia, o bitcoin pode se tornar obsoleto. É algo que nunca vai acontecer com o dólar ou o real, que serão sempre necessários, nem que seja para pagar impostos. Mas o próprio bitcoin inspirou novas moedas que podem um dia fazer com ele o que o Facebook fez com o Myspace. O litecoin é quase idêntico ao bitcoin; o zerocoin tenta ser 100% anônimo e o ripple é promovido por uma empresa, para que as transações sejam mais fáceis e rápidas. No futuro, a concorrência pode ser ainda maior: os próprios bancos, operadoras de cartão de crédito e governos poderão lançar suas versões de moedas eletrônicas.

O futuro do bitcoin, portanto, ainda é incerto, mas o café Room 77 pode ser o pioneiro de uma grande revolução. Algum risco faz parte, mas as possibilidades são enormes. Mesmo porque os cafés de Berlim que não aceitam bitcoins baseiam suas negociações em outra experiência econômica que também foi considerada bastante inovadora na sua época: o euro – e ele também corre bastante perigo.

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Imagem: gettyimages.com

PAS A PAS

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1. Para começar, é preciso fazer o download da sua carteira digital no site MultiBit (multibit.org) ou baixar o aplicativo BitCoin Wallet (Android). A carteira digital funciona como uma conta corrente.

2. Você pode comprar suas primeiras moedas em um dos muitos sites que trocam dinheiro real por bitcoins, como o Mt.Gox (mtgox.com) ou o Mercado Bitcoin (mercadobitcoin.com.br).

3. Depois, é só procurar vendedores que trocam produtos por bitcoins no UseBitcoins (usebitcoins.info). Para comprar, basta transferir os bitcoins da sua carteira para a carteira do vendedor.

4. Transferência feita, é hora dos mineradores entrarem em ação. Eles cedem a potência dos seus computadores para verificar todas as transações e garantir que não ocorram fraudes.

5. A cada dez minutos, os mineradores recebem automaticamente um novo bloco de transações. Como recompensa, eles ganham 25 bitcoins por bloco processado. É assim que o dinheiro novo entra no mercado.

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