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Privacidade em público

Saiba como a tecnologia e os bancos de dados acabaram com aquilo que um dia foi conhecido como privacidade.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 30 jun 2006, 22h00

Texto Pedro Dória

A mesma tecnologia que faz a vida rápida e confortável permite que empresas, governos e até esposas conheçam os detalhes de nossas rotinas. E isso é bom ou ruim? Enquanto descobre a resposta, sorria. Porque você certamente está sendo vigiado.

Há uma história que circula nos corredores de uma empresa de telefonia celular brasileira. Conta que um diretor certa vez assistia à apresentação de um jovem empresário do ramo de games, que demonstrava um jogo comunitário, desses em que as pessoas se inscrevem e o celular informa quando há outro participante por perto para atacar. Para que um jogo desses seja possível, celulares precisam identificar localização. O executivo, então um iniciante no ramo, achou a novidade maravilhosa. Perguntou ao programador se ele era capaz de encontrar qualquer pessoa que tivesse um telefone de sua operadora. “Se o celular estiver ligado, sim”, respondeu. Em poucos minutos a sala toda descobria que a mulher do diretor estava num motel.

Cheira a lenda urbana, mas quem conta cita nomes. E, mesmo que seja lenda, não é exatamente uma situação absurda. Richard Stallman, por exemplo, o programador americano considerado pai do movimento do software livre, se recusa a usar celulares. “Porque são localizadores”, afirma. Stallman é um purista quando se trata de liberdades pessoais e privacidade. E sabe o que fala. Jogos como o que o pobre executivo testou são populares na Finlândia, a meca da telefonia móvel. Na Inglaterra e no Brasil, o serviço de localização é vendido comercialmente – e pais acompanham o ir e vir dos filhos pela cidade. Kevin Mitnick, que nos anos 90 era o hacker mais famoso do mundo, foi localizado enquanto operava pelo celular. Ganhou uma estada de 5 anos numa penitenciária americana. Preocupado em ter o mesmo destino, o terrorista saudita Osama bin Laden abandonou o uso de celulares – e os americanos nunca conseguiram colocar as mãos nele.

Não que seja preciso ter um celular no bolso para ser encontrado. Há 4 ou 5 anos, instalar um localizador no carro era coisa para quem tivesse 5 mil reais. Hoje, em alguns modelos, já vem de fábrica. É o caso de todo Golf que a Volkswagen põe no mercado, por exemplo. Como é um dos automóveis mais visados por ladrões, o localizador é visto como bom atrativo para o cliente. Se o critério for dinheiro, é mesmo um baita negócio. O localizador pode fazer o custo do seguro cair até 40%. Se o critério for vida íntima, daí fica a dúvida. Se o sujeito perder a cabeça numa tarde de paixão que emende madrugada adentro, se sua mulher chegar à conclusão de que ele foi seqüestrado, assaltado, assim acontecerá o flagrante. Ele perdeu a privacidade do pecadilho, como a perdeu a mulher do executivo de telefonia.

Moral da história: para o motel, só de táxi e com celular desligado. Só não pense que isso basta para garantir seu isolamento. Porque telefones mais modernos são equipadas com câmeras fotográficas tão discretas que muitas academias de ginástica nos EUA recolhem os aparelhos na entrada do vestiário.

O olho da tecnologia

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Enquanto os New England Patriots venciam os Philadeplhia Eagles, na final do futebol americano de 2005, 22 câmeras filmavam os pouco mais de 100 mil espectadores que estavam no estádio. Em frações de segundo, cada rosto da arquibancada era desfeito por computador, analisado, reconstruído num modelo eletrônico e comparado com um banco de fotografias de criminosos e terroristas procurados. Com o programa, os organizadores afirmavam, seria possível flagrar qualquer pessoa que estivesse lá para causar problemas, e não para torcer.

Um programa chamado Cromatica, que está sendo desenvolvido pela Universidade Kingston, em Londres, promete mais: a câmera poderá prever comportamento. Mas quem programará que tipo de comportamento a câmera deve flagrar? E se o país cair nas mãos de um ditador, ela vira os olhos do Grande Irmão tal qual os imaginou George Orwell?

Que se busquem tecnologias mais simples ao alcance de todos: o Google Maps, por exemplo, fascinante software que mostra fotos de satélite para qualquer endereço dado nos EUA e em algumas outras grandes capitais do mundo. Quando os assinantes da revista americana Reason receberam a edição de junho de 2004, tomaram um susto: na capa, uma foto de sua própria casa. A casa de cada um. Bastou uma tecnologia parecida com o Google Maps, uns truques de programação, os endereços dos assinantes no banco de dados e uma moderna tecnologia de impressão.

Não é difícil para qualquer mortal encontrar na internet o mesmo material a que os editores da Reason tiveram acesso. O segredo da sensacional idéia que os editores da revista tiveram foi cruzar a tecnologia das imagens por satélites com um bem organizado banco de dados. Bancos de dados, aliás, que sempre dão um jeito de aparecer na história quando o assunto em pauta é esmagar os limites da privacidade.

Por livre e espontânea iniciativa, incluímos nossos nomes em bancos de dados a toda hora. A ficha no supermercado que rende um cartão de fidelidade, por exemplo. Conforme fazemos as compras mensais e passamos o cartão em busca de descontos exclusivos, o banco de dados dos supermercados mais modernos inclui item por item. Ele sabe o que consumimos.

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Registrar tudo o que sai da loja na boca do caixa é útil. Permite ter um estoque enxuto. Permite saber que determinados produtos – cerveja, por exemplo – vendem mais no fim de semana. Traz eficiência no comando da loja. Mas também permite saber que um consumidor, você, por exemplo, sempre compra barras de cereais sabor morango. E que, se você andar sumido (talvez porque encontrou um concorrente mais barato), a oferta de um desconto naquela barra de cereal talvez o atraia de volta.

O banco de dados do supermercado pode ser um bom negócio, então. Se o lojista que presta um serviço sabe mais sobre seus clientes pode atendê-los melhor. Sai mais barato para ele. E você consegue comprar com desconto uma barrinha de cereais sabor morango. Mas, se bancos de dados são poderosos individualmente, quando cruzados eles vão muito além. Uma empresa que venda seguros de saúde pode comprar o banco de dados de uma rede de lojas esportivas e outro de um supermercado. Juntando as fichas, vai perceber que há nomes em comum. Pode descobrir que um indivíduo que compra apetrechos para exercícios físicos também se alimenta com barras de cereal e comida sem açúcar ou gordura. Potencialmente, é um cliente e tanto – não gastará muito com médicos.

O indivíduo jamais soube que seu seguro de saúde conhece sua lista de compras, mas, se rendeu uma mensalidade mais baixa, por que reclamar? Mas nem sempre funciona idealmente. Na Flórida, em 2000, o governo do estado contratou uma empresa, a Choice Point, para cruzar seu cadastro de eleitores com os bancos de dados policiais. Ali, quem passou pela cadeia não tem direito ao voto. Resultado: uma lista de 57 700 eleitores, a maioria negros, todos impedidos de participar das eleições. Segundo as contas de Greg Palast, um repórter da BBC de Londres, pelo menos 90% dos integrantes dessa lista eram inocentes. Todos homônimos de criminosos. Nenhum deles pôde votar – historicamente, os negros da Flórida votam no Partido Democrata. George W. Bush, candidato do Partido Republicano, elegeu-se presidente dos EUA graças a uma diferença de 537 votos nesse estado.

Após o 11 de Setembro, a mesma Choice Point foi contratada para comprar no mercado internacional tantos bancos de dados quanto possível. Segundo a Epic, ong inglesa dedicada à defesa da privacidade, a Choice Point tem, por exemplo, os dados de registro civil e os de posse de veículos de todos os brasileiros, argentinos, colombianos e mexicanos. O objetivo desse megabanco de dados cruzado é descobrir perfis de possíveis terroristas, saber quem pode entrar no país. Nada mais justo.

Ou não. Talvez nem incomode até que, repentinamente, se é barrado na entrada dos EUA numa inocente viagem à Disney – e lá vai você passar horas e horas tentando convencer o funcionário da imigração no Aeroporto de Orlando a carimbar seu passaporte.

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Bancos de dados oferecem descontos em supermercados. Permitem numa emergência que um médico saiba a que remédios um paciente tem alergia e seu tipo de sangue. Mas são informações pessoais. E se é verdade que podem trazer um seguro de saúde mais barato, também podem encarecê-lo. Mal empregados, bancos de dados podem custar, literalmente, a presidência dos EUA. Bem empregados, evitam um novo 11 de Setembro. O que escolher?

Afinal, quem quer privacidade?

Em junho, a revista New Scientist revelou que uma agência do governo americano financiou uma pesquisa da Universidade da Geórgia para saber em que medida sites de relacionamento pessoal, como orkut e MySpace, podem servir para levantar dados concretos sobre indivíduos. O objeto do estudo era interessante: os pesquisadores queriam usar esses sites para descobrir se médicos estavam revisando artigos acadêmicos redigidos por amigos – um comportamento irregular por causa do conflito de interesses. Seria normal, portanto, que a agência de saúde americana patrocinasse o estudo. Mas não era ela a origem dos fundos. Quem bancou a pesquisa foi outra agência, a de segurança. Para a New Scientist, o governo quer usar a mesma tecnologia que denuncia médicos antiéticos para saber a quantos graus de distância uma pessoa está de um terrorista. E, assim, vigiá-la mais de perto ainda.

Discorde-se ou não dos motivos, os EUA estão sob ameaça. O governo tem o direito e a obrigação de promover a segurança de seus cidadãos. E a verdade é que, hoje em dia, sem bancos de dados e investigações de inteligência, é difícil para uma nação prestar esse serviço. Sem raios X nos aeroportos, então, é impossível. Tanto que fabricantes já colocaram à disposição um modelo novo – e polêmico. A máquina é capaz de enxergar além das roupas. Vê a pessoa nua, o que permite encontrar explosivos plásticos que detectores de metal não denunciam. Não foi instalado ainda. Mas é tão fácil imaginar as dificuldades que causa quanto os problemas que resolve.

Além do mais, muitos gostam de lembrar, grande parte da privacidade é perdida por escolha: pela conveniência da vida urbana e conectada. Por outro lado, nem sempre se sabe aonde vai parar cada informação – muita gente parece não se dar conta que quase todos os departamentos de RH pesquisam na internet a vida pregressa de seus candidatos a emprego.

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E não há que fazer da tecnologia vilã. Ninguém usa nada obrigado – Richard Stallman escolheu jamais colocar um telefone celular no bolso. E o fluxo de dados entre empresas pode permitir, afinal, um seguro de saúde mais barato. Por paradoxal que seja, foi justamente a tecnologia que nos permitiu a privacidade à qual estamos acostumados. No tempo da aldeia, todo mundo sabia a vida de todo mundo, exposta na praça principal. A vida urbana, os apartamentos fechados, coisas simples como vasos sanitários e descargas, criaram esse estado de individualidade que agora achamos natural. A privacidade é uma invenção da história recente: surgiu da Revolução Industrial, quando, para os críticos, não passava de um pudor da Inglaterra vitoriana.

Nenhuma discussão realmente é possível sem entender o que é e para que serve privacidade. Charles Fried, jurista americano nascido na antiga Tchecoslováquia, talvez tenha dado a melhor definição. Privacidade é o controle que alguém tem da informação sobre si. Alguma informação – o nome, por exemplo, – damos a qualquer um. Outras, o telefone, para quem conhecemos. Coisas como a localização de nossa casa, para amigos. Estamos sempre equilibrando a gerência de cada informação pessoal. A amante que conhece a nudez, mas não o endereço; a faxineira que conhece a casa mas não a profissão; o amigo que sabe quase tudo, mas não aquele segredo. Na escolha de quem saberá isto ou aquilo, definimos graus de intimidade. Esses graus é que sustentam nossas relações, é que definem coleguismo, amizade, amor. Nessa definição, se perdemos o controle sobre esse tipo de informação, perdemos individualidade, escolhas: a identidade se vai.

Ou, de certa forma, se vai um conceito de identidade, de individualidade, que não tem muito mais do que século e meio. Voltamos à vida em comuna. Marshall McLuhan, o professor de literatura medieval canadense feito teórico pop nos anos 60, dizia que a tecnologia de comunicação que nos permite saber do mundo não importa a que distância estava – está – criando um equivalente global da pequena aldeia. E, talvez, por escolhermos a comodidade do uso dessas tecnologias, estejamos voltando a viver num ambiente como o da aldeia de Asterix, onde todos, afinal, sabem da vida de todos. Na aldeia global, tem disso.

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Fala que eu te escuto

Em dezembro de 2005, o jornal The New York Times anunciou ao público aquilo que seus repórteres já sabiam fazia um ano: a NSA estava passando os olhos em todas as comunicações internas nos EUA. Isso incluía conversas telefônicas, e-mails e o que mais seguisse por meios eletrônicos.

A NSA, Agência Nacional de Segurança, é bem menos conhecida que a CIA – e bem mais importante. Desde que a crise disparada pelo 11 de Setembro se estabeleceu, os burocratas trataram de arranjar meios para levantar informações que levassem à descoberta de novas células terroristas no país.

O método se chama datamining, mineração de dados. Tudo que entra de conversa no território dos EUA passa pelos computadores da NSA, que, com softwares especializados de reconhecimento de voz, procuram conjuntos específicos de palavras. É, literalmente, grampear todos os telefones com autorização presidencial.

Há um processo em curso para discutir o tema. Entidades civis alegam que, sem ordem assinada por juiz, grampear todo mundo não pode nem em tempos de guerra. A defesa da Casa Branca é que essa é uma interpretação errada da lei e que o presidente tem o direito de fazer o que quer se há uma guerra. A briga promete ser longa.

A ferramenta que a NSA utiliza prova o que se sabia possível apenas em teoria. Embora não existam pessoas ouvindo todas as conversas telefônicas do país de fato, qualquer conversa sobre um tema específico (jihad, por exemplo) pode ser percebida por um grande computador espião, devidamente gravada, e aí sim ouvida para que as medidas cabíveis sejam tomadas contra aqueles que conversam sobre o proibido.

Qualquer ditador iria adorar tal ferramenta. Aliás, esse é justamente o argumento das entidades de defesa de direitos de consumidores e cidadãos nos EUA: esse não é o tipo de poder que governos constitucionais e democráticos cogitem usar; só ditadores lançam mão.

Para saber mais

https://www.eff.org – Electronic Frontier Foundation

https://www.aclu.org/privacy/index.html – American Civil Liberties Union

https://www.epic.org – Electronic Privacy Information Center

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