Software livre,mundo S.A
O sistema operacional Linux iniciou uma revolução: ados produtos feitos por voluntários e distribuídos de graça.Saiba como ela pode se espalhar por vários tipos de indústria e por que o Brasil é um dos líderes desse movimento.
Texto André Santoro
Havia um dueto estranho no palco. Era a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, um evento da ONU realizado em novembro do ano passado na Tunísia para discutir políticas tecnológicas. De um lado, o ministro-músico Gilberto Gil e seu violão. Ele estava acompanhado de um cantor de barbas e cabelos longos que contava piadas e tentava não desafinar demais. O repertório incluía paródias de canções infantis e uma composição desse vocalista, Free Software Song. “Junte-se a nós / E compartilhe seu software / Você será livre / Hacker, você será livre”, cantava. Na verdade, o cabeludo era a grande estrela do encontro: Richard Stallman, um programador que deu o pontapé inicial em um movimento chamado software livre, revolucionou a informática e pode influenciar todo tipo de indústria nas próximas décadas.
Desde 1983, Stallman vem defendendo basicamente duas idéias. Primeiro: acesse o trabalho de outras pessoas, melhore, corrija erros e tente colaborar da forma que puder. Segundo: disponibilize de graça o resultado do seu trabalho. Com a internet – e a capacidade de se comunicar quase sem custo com qualquer lugar – foi possível montar projetos e redes de colaboração que envolvessem o mundo inteiro. De pequenas listas de discussão a empresas multinacionais, milhões de pessoas aderiram ao modelo. E não só na área da informática. A idéia de compartilhar gratuitamente as idéias se espalhou por outras áreas e passou a influenciar de pesquisas médicas a noticiários. Algumas pessoas já falam até no nascimento de uma “cultura livre”, onde todos colaboram em todos os setores. “Há um novo método produtivo em funcionamento na sociedade e ele está se disseminando rapidamente”, diz o cientista da computação Imre Simon, da USP. O novo estilo chega cheio de promessas – levar a informática a todos, fazer produtos gratuitos de qualidade, ajudar países em desenvolvimento – e tem se espalhado pelo Brasil. Vai dar certo? Vamos quebrar a cara? Ninguém sabe. Mas, antes de falar do futuro, vamos entender como essa onda se formou. Nossa história começa há mais de 20 anos.
Herói da resistência
Em 1983, Richard Stallman, então um programador no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA, percebeu que a indústria de software estava ocultando as linhas de programação de seus produtos, ou seja, você podia rodar o programa, mas não dava para saber como ele foi feito. Ao trancafiar o código-fonte – o conjunto de instruções que o software transmite ao computador – as empresas garantiam que ninguém bisbilhotasse as fórmulas, ganhavam exclusividade sobre elas e transformavam programas em produtos milionários. Só que a ética de Stallman era outra: a da colaboração científica. Nos ambientes acadêmicos, cada descoberta é compartilhada com toda a comunidade – até para ser avaliada por outros e ter problemas corrigidos. Stallman organizou então a resistência: um sistema operacional de código aberto, que qualquer um pudesse usar e modificar. Em uma referência a um dos principais softwares da época – o Unix – Stallman chamou seu sistema de GNU, uma sigla para “GNU não é Unix”, estranho assim.
O software livre, apesar do sucesso, estava restrito ao mundo dos hackers. Isso começou a mudar em agosto de 1991, quando um estudante de ciências da computação, de 21 anos, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, enviou uma mensagem a um grupo de discussão avisando que tinha criado uma espécie de clone do Unix. Seu projeto foi bem recebido pela comunidade virtual e, rapidamente, formou-se uma rede de milhares de colaboradores para aperfeiçoar o sistema, batizado com a mistura do nome de seu criador – Linus Torvalds – e do Unix, o software que o inspirou: Linux. Ele disponibilizou o programa pela GPL, a licença criada por Stallman que permite que qualquer pessoa faça o que quiser com o produto, desde que o código se mantenha aberto (veja no quadro ao lado). Em menos de 15 anos, o Linux ganhou o mundo. Até multinacionais como a IBM investem hoje no modelo e, apesar de estarem obrigadas a abrir mão de qualquer idéia que agreguem ao Linux, faturam em cima de produtos e serviços feitos com base nele.
Em parte graças ao sucesso do Linux, o software livre passou a ser um modelo viável de produção. O motivo do sucesso não é só o fato de os produtos serem gratuitos, mas também a série de argumentos ideológicos que esse sistema movimenta. “No modelo proprietário, o dono do produto será sempre o dono, mesmo que você pague por ele”, diz o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, que até setembro do ano passado era presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), órgão do governo federal empenhado na difusão do software livre no setor público. Além disso, o fato de os programas terem o código aberto permite que qualquer um os adapte à própria necessidade – e até corrija sozinho os defeitos encontrados. “Um conjunto de empresas e usuários trocando conhecimentos o tempo todo é superior a uma empresa que fecha os códigos de seus programas”, diz Sérgio.
A idéia se espalhou por todo tipo de indústria. O exemplo mais conhecido do grande público é a enciclopédia Wikipedia (www.wikipedia.org), em que os verbetes podem ser escritos por qualquer pessoa. Existem também indústrias farmacêuticas que liberam a receita de seus remédios e o resultado de suas pesquisas para que outros cientistas possam ajudá-la a elaborar novos medicamentos. De forma parecida, artistas liberam os direitos sobre suas músicas, livros ou pinturas para que outras pessoas possam se inspirar nelas – ou mesmo usar trechos. Até noticiários e fábricas de cerveja já aderiram ao modelo (veja quadro na pág. 70).
Por um Brasil livre
Não é de estranhar que Stallman tenha encontrado um aliado em Gilberto Gil – um músico que, mais de 3 décadas atrás, já se apropriava de vários ritmos e personagens para formar o seu tropicalismo. E não só em Gil, mas em grande parte das instituições públicas brasileiras. “Uma nação sob o Linux, com música livre e código aberto para todos. Bem-vindo ao Brasil”, afirmou a revista americana Wired em novembro de 2004. Uma pesquisa feita naquele ano constatou que 3% dos PCs e 15% dos servidores do país já usavam programas baseados no Linux – e apostou que esses índices devem triplicar até 2008. Desde 2003, o governo federal incentiva o uso de software livre em órgãos estatais. Não estamos sozinhos nesse jogo – países como Índia, Egito, África do Sul e Argentina também adotaram o Linux em vários projetos públicos – mas ocupamos uma posição de liderança. “Conseguimos atuar não só na política interna, mas também defendemos nossa posição em organismos internacionais”, diz Marcelo D’Elia Branco, um dos articuladores do Projeto Software Livre Brasil. Entre os vários projetos, está até um portal (www.dominiopublico.gov.br) que disponibiliza vídeos, imagens e sons sem cobrar direitos autorais.
A iniciativa tem seus motivos. Em seu livro Software Livre, Sérgio Amadeu enumera 5 argumentos que justificam a adoção do software livre pelo governo:
1) Economia: programas abertos consomem menos investimentos.
2) Segurança: códigos fechados podem ocultar vírus ou instruções nocivas.
3) Autonomia: teremos programas nossos – e mão-de-obra para modificá-los.
4) Praticidade: depois que o software é adquirido, não é preciso depender de ninguém para fazer alterações.
5) Democracia: “O software livre é um símbolo de uma grande batalha pela liberdade do conhecimento”, diz Sérgio.
Mas há quem duvide disso tudo, especialmente as grandes empresas. “Só a colaboração e a pesquisa acadêmica não resolvem nada sozinhas. Não constroem aviões, não encontram petróleo no fundo do mar. As empresas têm um papel importante no processo de produção”, diz Roberto Prado, gerente de estratégia de mercado da Microsoft. Segundo essa lógica, projetos livres podem até levar a grandes produtos, mas por que não ficar com o modelo já bem testado? “Mantemos um círculo virtuoso: colocamos dinheiro em pesquisa e inovação, que vendemos em nossos produtos. Temos um retorno e reinvestimos uma parte em pesquisa”, diz Roberto. Só por questões técnicas, a disputa entre softwares livres e proprietários já poderia continuar infinitamente, mas existe uma questão que torna essa disputa ainda mais acirrada: a propriedade intelectual.
Para onde vamos?
Os projetos colaborativos precisam de matéria-prima: idéias que possam ser usadas e modificadas sem o pagamento de direitos. Por outro lado, com a facilidade que a internet oferece para copiar qualquer música, filme, software ou idéia, a indústria do software proprietário briga por regras cada vez mais restritivas. E daí começa a discussão: “As leis de copyright são rígidas demais. E megacorporações, como a Microsoft e os estúdios de cinema, gastam milhões para fazer com que essas mesmas leis fiquem ainda piores”, diz o guru Stallman. “As empresas precisam ter a garantia de que o dinheiro investido vai voltar de alguma forma. Essa garantia é o direito de propriedade”, diz Roberto Prado, da Microsoft. Essa questão está longe de ser resolvida – até Gilberto Gil esbarrou em proibições de sua gravadora quando tentou quebrar as licenças de suas próprias músicas. O fato é que quase ninguém acredita que a propriedade intelectual deixará de existir. “Os únicos modelos sustentáveis para a nossa sociedade são baseados nos direitos individuais, incluindo o direito à propriedade”, diz Jimmy Wales, fundador e diretor da Wikipedia. Mas os ativistas do software livre acreditam que as leis deveriam ser mais flexíveis. Muito controle, segundo eles, significa criar barreiras para a inovação e a criatividade. Afinal, em um mundo onde qualquer coisa cobra direitos autorais, em que você poderá se inspirar?
Ninguém sabe direito onde tudo isso vai dar, mas todos concordam em um ponto: o mundo já começou a mudar. “O software livre é apenas um capítulo de uma revolução que está transformando o nosso conceito de valor”, diz Renato Martini, atual presidente do ITI. Mas o que acontecerá então com as leis de propriedade intelectual e com a tal “cultura livre”? Ninguém sabe dizer – nem a dupla de músicos Gil e Stallman tem os mesmos palpites. Em 2004, o ministro Gilberto Gil disse à revista americana Wired: “Um mundo desobstruído pelas comunicações não pode permanecer fechado em uma visão feudal de propriedade. Nenhum país, nem os EUA, nem as nações européias, pode ficar no caminho desse processo”, afirmou. Já Richard Stallman não é tão otimista: “Eu gostaria muito de ter essa mesma confiança de que a liberdade vai ganhar a batalha. Mas nós precisamos de um movimento público muito forte para superar as restrições atuais e defender a liberdade universal de compartilhar o conhecimento”, diz. Nessa disputa, ativistas, intelectuais e empresas estão cada um cantando uma música diferente. Quem será que grita mais alto?
Richard Stallman, criador e guru da idéia de softwares feitos por todos, para todos.
O sistema operacional Linux – que tomou o pingüim como símbolo – é o grande responsável pela popularidade do software livre.
Calcula-se que cada versão do Linux teria custado mais de 1 bilhão de dólares se fosse feito por uma empresa tradicional. E olha que há milhares de versões do programa.
Ao disponibilizar a música de qualquer banda, o Napster – lançado em 1999 – acabou sendo fechado pela Justiça americana e mostrou ao mundo que uma das maiores questões da internet é a propriedade intelectual.
As licenças do software livre viraram do avesso as leis de direito autoral. Afinal, elas eliminam qualquer direito sobre a obra – mas, se você modificá-la e mantiver o resultado com o código fechado, pode ser processado por infringir as regras.
Qualquer um pode criar a própria versão do Linux – ou usar uma dos milhões existentes. Por esse motivo, ele hoje está presente em máquinas que vão de supercomputadores e foguetes a videogames e telefones celulares.
O pacote Open Office (que pode ser baixado de graça em https://www.oppenoffice.org) é a resposta dos adeptos do software livre para o Microsoft Office. Já foi baixado por mais de 50 milhões de pessoas – até mesmo por usuários do Windows, da Microsoft.
A enciclopédia Wikipedia pode ser completada ou corrigida por qualquer pessoa – uma fórmula que a fez disputar até com a famosa Britannica. Em 5 anos, ganhou milhões de verbetes em vários idiomas – só em inglês, são 800 mil.
Os defensores da cultura livre sustentam que leis que regulam demais as idéias limitam a criatividade. Afinal, até a Disney – grande defensora da propriedade intelectual – cresceu com versões de contos infantis de outros autores.
Sopa de letras
Pequeno glossáriodo software livre
Código-fonte
É o conjunto de instruções escritas em linguagem de programação. Depois de concluído, o código passa pelo processo de compilação e só então pode ser rodado pelo computador.
Código aberto
Programas que têm seus códigos abertos podem ser modificados pelos usuários. Às vezes, é tido como sinônimo de software livre, mas isso é motivo de disputas acirradas – até porque, em teoria, um software pode ter seu código aberto e ainda assim ser proprietário.
Software Livre
Programas distribuídos gratuitamente e com código aberto, para serem modificados por qualquer um e servirem de base para outros produtos.
GPL
Sigla em inglês para “licença pública geral”. É o modelo legal criado em 1991 por Stallman para licenciar softwares livres. Deixa o usuário usar, modificar e até vender cópias do programa, desde que mantenha com código aberto (e licenciado pela GPL) tudo o que fizer a partir do programa original.
Creative Commons
Entidade criada em 2001 pelo advogado americano Lawrence Lessig (ver Superpapo, junho de 2005) que dá um suporte legal para quem aceita abrir mão de alguns, mas não todos, os direitos sobre suas obras. Está presente em mais de 40 países e já licenciou mais de 30 milhões de obras.
Distribuições Linux
Não existe um programa específico chamado Linux que você possa baixar da internet. O que há disponível são as diferentes versões do sistema – as distribuições. Entre elas estão Debian, Suse, Conectiva, KDE e Gnome.
Hackers
Para a comunidade de software livre, são apenas programadores e especialistas em computação. Os criminosos são chamados de “crackers”.
Liberdade para todos
Os vários setores queaderiram à cultura livre
Medicina e Biotecnologia
Iniciativa de Doenças Tropicais (TDI) – https://www.tropicaldisease.org
Faz remédios de “código aberto” para doenças tropicais. Qualquer um pode pegar a receita, pesquisá-la e melhorá-la. A idéia é desenvolver novas drogas e vacinas para doenças tropicais.
Cambia (sigla em inglês para “Centro para a Aplicação da Biologia Molecular na Agricultura Internacional”) – https://www.cambia.org
Reúne cientistas da área de biotecnologia para promover estudos relacionados a vegetais transgênicos. Já compartilha mais de 300 mil patentes agrícolas.
Notícias
Digg – https://www.digg.com / Slashdot – https://www.slashdot.org
Notícias sobre ciência e tecnologia que podem ser propostas, comentadas ou corrigidas pela comunidade de leitores.
Internet
Firefox – https://www.mozilla.org/products/firefox
Navegador de código aberto semelhante ao Internet Explorer, da Microsoft, e atualizado constantemente por uma rede de programadores. Mais de 100 milhões de usuários já baixaram o programa.
Matemática
Calculating Pi – https://projectpi.sourceforge.net
Consórcio de matemáticos que quer determinar os algarismos da constante Pi com o máximo de precisão.
Bebidas
Vores Øl – https://www.voresoel.dk
É tida como a primeira marca de cerveja de código aberto do mundo. Use a receita como quiser (mas com moderação).
Open Cola – https://www.colawp.com
Receita de refrigerante que pode ser baixada e incrementada pelos usuários.
Para saber mais
Cultura Livre – Lawrence Lessig, Trama, 2004
Software Livre: A luta pela liberdade do conhecimento – Sérgio Amadeu da Silveira, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004
https://www.softwarelivre.org – Projeto Software Livre Brasil
https://www.creativecommons.org – Projeto Creative Commons