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Tecnologia com humanismo

E como o progresso está cada vez mais rápido, pois é cumulativo e auto-alimentado, a adaptação, que exige tempo, torna-se cada vez mais difícil.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h37 - Publicado em 31 jul 2003, 22h00

Renato M. E. Sabbatini

Toda vez que há progresso, falta adaptação. Quando o progresso é mais rápido do que a nossa capacidade de se adaptar a ele, há conflito, estresse, perturbação da ordem estabelecida. E como o progresso está cada vez mais rápido, pois é cumulativo e auto-alimentado, a adaptação, que exige tempo, torna-se cada vez mais difícil.

Portanto, é natural que fiquemos perturbados com todo esse espantoso progresso da medicina. Aliás, o que mais espanta não é o que conseguimos até agora, mas o que está por vir. E este porvir parece inevitável, pois o embasamento científico e tecnológico da medicina torna as predições cada vez mais prováveis de acontecer. É uma espécie de fatalismo.

O mais impressionante é que a ciência exige cada vez mais que a ética e a moral se adaptem a ela, e não o contrário. Muita gente acha que o ideal seria que elas fossem mais estáveis e absolutas, como almejam e procuram ensinar as religiões, pois parece óbvio que não podemos sobreviver como sociedade sem a referência proporcionada pela ética, pela moral e pelo respeito às normas sociais. Além disso, desde que trabalhadores queimaram teares automáticos na Inglaterra no século 17, existe o medo de que um dia seremos dominados ou substituídos pelas nossas invenções. Numerosas distopias, como a famosa peça teatral de Karel Capek, que deu origem ao termo “robô”, o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e, mais recentemente, a série Matrix, alimentam esse medo.

O uso cada vez mais intenso de tecnologias avançadas em medicina preocupa os defensores da idéia de que a medicina tem de ser mais humanista e menos técnica. São cada vez mais freqüentes as queixas de que muitos médicos, preocupados em pressionar teclas e olhar para monitores, estão perdendo o contato com os seus pacientes e deteriorando uma relação tão importante para a obtenção da cura. Assim, muitas cirurgias parecem ter se transformado em videogames praticados em pacientes sem cara e sem alma. Radiologistas examinam imagens complexas e fazem diagnósticos sem chegar a saber direito o nome de pacientes que nunca vêem. Alguns clínicos, antes mesmo de perguntar o que seus pacientes sentem, fazem listas enormes de requisições de exames laboratoriais. Manipulações gênicas interferem diretamente na natureza de seres que sequer nasceram.

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Ao mesmo tempo, é impossível refutar ou renunciar às benesses da medicina moderna. Sem as vacinas, os antibióticos, as vitaminas, os hormônios, a radiografia, as cirurgias, os transplantes e tantas coisas mais, estaríamos ainda com uma expectativa de vida em torno dos 40 anos e uma qualidade de vida semelhante à da Inglaterra vitoriana. Descobertas que foram tremendamente polêmicas quando surgiram, como a fertilização in vitro, são hoje praticadas sem nenhum dos problemas previstos pelos catastrofistas e religiosos.

Tudo isso nos ensinou uma coisa muito importante. De nada adianta ter a tecnologia mais sofisticada do mundo, se ela não for praticada e acompanhada por médicos e outros profissionais de saúde, que a conheçam bem e a integrem a uma medicina que seja fundamentalmente preocupada com o ser humano. Gosto sempre de ficar imaginando o que aconteceu em 1895, quando Wilhelm Röntgen fez a espantosa descoberta dos raios X. Os médicos devem ter ficado com medo de ser descartados, agora que qualquer um poderia visualizar o interior de seu corpo e diagnosticar seus próprios males. No entanto, menos de um ano depois da descoberta, surgia uma nova especialidade médica, a radiologia.

Minha visão, ainda que cautelosa, é otimista. Precisamos nos preocupar sempre em estudar como as novas tecnologias irão impactar a sociedade. Tendo de se adaptar freqüentemente às descobertas da ciência médica, os códigos de ética e de conduta profissional e a legislação precisam estar continuamente alertas a essas mudanças. Se necessário, podemos ir mais devagar, decretando moratórias e estudos mais completos antes de adotar alguma coisa muito nova e revolucionária. Mas parar, nunca. É da natureza do ser humano e de sua ciência. Qualquer mudança ou novidade tem sempre dois gumes: ela pode representar uma ameaça ou uma chance de mudar para melhor. A evolução só existe quando existe diversidade e mudança.

 

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