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As pessoas que não sentem dor

Cortes, fraturas, queimaduras... eles não temem nada disso. Saiba como vivem, e quais riscos correm, as pessoas cujo organismo é imune à dor

Por Bruno Moreschi (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 10 mar 2021, 17h17 - Publicado em 15 jan 2011, 22h00

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2011

O primeiro sinal de que havia algo errado com Lúcio* foi quando ele completou 7 meses de idade e seus dentes de leite começaram a nascer. Um belo dia, de tarde, os pais se depararam com uma cena horripilante: o bebê tinha dilacerado a própria língua de tanto mordê-la, e por pouco não morreu engasgado com o sangue. Como a medicina viria a descobrir mais tarde, Lúcio, que mora em Brasília, sofre de uma síndrome rara: a insensibilidade total à dor, uma condição que afeta menos de 300 pessoas em todo o mundo. Elas podem dar uma topada com o dedão, cair de bicicleta ou fazer tratamentos dentários sem anestesia – e nunca sentir nada. Mas a ausência de dor, em vez de tornar tudo mais fácil e agradável, transforma a vida delas num inferno.

A mãe de Lúcio, que é psicóloga, foi obrigada a largar a profissão para se dedicar exclusivamente ao filho. Os pais só descobriram o que o menino tinha quando, por sugestão de um neurologista amigo da família, escreveram ao neurocirurgião sueco Jan Minde, maior especialista em insensibilidade à dor. Ele enviou um questionário e instruções para uma experiência. Lúcio e o pai deveriam mergulhar as mãos numa bacia com água extremamente gelada, com a mãe cronometrando qual dos dois resistiria por mais tempo. O pai aguentou 1 minuto e 22 segundos. Já o menino, mesmo depois de 3 minutos, não se mostrava sequer incomodado. Foram os pais que decidiram por tirar as mãos dele, já completamente roxas.

Eles criaram um sistema para ensinar a Lúcio, que hoje tem 13 anos, o que é ou não é perigoso: praticamente todos os itens da casa são etiquetados com adesivos verdes, amarelos ou vermelhos. Só assim ele conseguiu entender que enfiar os dedos na tomada, por exemplo, dá choque. Há 5 anos, Lúcio registra num diário todas as suas experiências – como o dia em que caiu, quebrou um dente e só foi perceber horas depois (veja trechos no bloco ao fim da matéria). No fim do ano passado, porém, ele ficou vários meses sem registrar seus tropeços. Sem se dar conta, dormiu de mau jeito e o peso do seu corpo quebrou o punho direito. Ele só percebeu a fratura quando acordou e notou que não conseguia pegar uma colher para comer.

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Algumas das pessoas imunes à dor, como Lúcio, também têm outro sintoma bizarro: elas sofrem de anidrose, ou seja, incapacidade de suar. Para as pessoas normais, isso também pode parecer positivo: já pensou como seria legal ficar sempre limpinho? Mas, na prática, é terrível. Como o menino não transpira, seu corpo fica superaquecido, e ele tem crises de febre quase todas as semanas. Para tentar evitar o problema, Lúcio precisa tomar banho gelado todos os dias. O que não chega a ser o fim do mundo, pois ele não sente frio.

As dores da vida sem dor

Um episódio da série americana Grey’s Anatomy começa com a pequena Megan, personagem com insensibilidade congênita à dor, sendo analisada por um médico. Com um machucado profundo na perna, a menina não chora e ainda mostra um ferimento no braço grampeado por ela mesma na tentativa de evitar o incômodo (visual) do sangue escorrendo. “Sou uma super-herói”, sussurra como se guardasse um segredo. Mas exames detalhados mostram que essa condição nada tem de heroica. A menina morre de hemorragia interna, causada pelas surras que levou na escola. De fato, no mundo real as vítimas dessa síndrome bizarra raramente sobrevivem à puberdade – como elas não percebem quando estão machucadas, acabam colocando sua vida em risco.

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É o caso da americana Gabby, 3 anos, protagonista do documentário A Life Without Pain. Com nítida dificuldade em se comunicar, por causa das constantes e involuntárias mordidas na língua, é uma criança que ainda não se percebeu diferente. Gabby brinca com as amiguinhas, mas o filme registra pelo menos 5 cenas em que ela se machuca. Dia e noite, ela precisa usar óculos de natação para proteger os olhos. Isso porque a menina tem o hábito de cutucá-los, mas, como não sente nada, corre o risco de se machucar seriamente e ficar completamente cega – ela já perdeu o olho esquerdo. Gabby já fraturou a mandíbula e também teima em bater a cabeça na parede. Na última vez em que fez isso, desmaiou e foi parar no hospital. Tudo isso levou os pais a tomar uma decisão corajosa e arrepiante. “Nós decidimos extrair os dentes [dela], pois [Gabby] estava mutilando os próprios dedos”, conta o pai da menina.

Outro caso chocante é o da alemã Jamila, 10 anos. Enquanto fala, ela rói as unhas com uma ferocidade desconcertante – até que suas mãos ficam cheias de sangue. Ao ver a boca machucada de Miriam, 7 anos, um médico sugeriu que a menina usasse uma espécie de focinheira. “Essa é apenas uma das besteiras que precisamos ouvir de médicos sem conhecimento suficiente para tratar crianças como a nossa”, conta a mãe da menina, sem conter o choro.

Se chegam à idade adulta, as pessoas imunes à dor geralmente têm sequelas terríveis. É o caso do canadense Owen, hoje na faixa dos 20 anos, que anda com dificuldade. Quando era adolescente, ele quebrou a perna jogando basquete – só que, como não parou de jogar, esmigalhou os ossos e teve de fazer uma operação para colocar 10 pinos na perna. Owen também era presa fácil para a crueldade das outras crianças. “Elas me induziam a fazer as coisas. Alguém me desafiou a pular de uma ponte, e eu pulei. Na hora, meu braço ficou muito duro.” Era uma fratura. “Não sentir dor é regredir na escala da evolução, pois a dor é um alerta. 80% das pessoas que procuram atendimento médico estão com algum tipo de dor. Se elas não sentissem, não se dariam conta de que estão enfermas, não se tratariam. E a sobrevivência humana estaria em sérios apuros”, explica o neurologista americano Frank Vertosick, autor do livro Why We Hurt? (“Por Que Sentimos Dor?”, ainda sem versão em português).

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Além de Lúcio, existe pelo menos mais um caso de insensibilidade à dor registrado no Brasil. Na verdade, dois: na cidade de Campinas, há dois irmãos que foram diagnosticados com a doença. Mas os pais deles evitam falar sobre o assunto. Há também um estudo brasileiro que avalia os distúrbios psicológicos na vida desses pacientes. “Por se sentirem tão diferentes, eles possuem ego frágil, comportamentos defensivos e relacionamentos superficiais”, afirma Andréa Portno, uma das autoras do estudo e professora da Faculdade de Medicina da USP.

Como você já deve ter percebido, não sentir dor é ruim e perigoso – e entre os que tem esse “poder”, um caso é pior do que o outro. Mas o que causa, afinal, a insensibilidade à dor? O que acontece no organismo dessas pessoas?

O corpo insensível

Até a década de 1970, acreditava-se que o problema era o excesso na produção de um hormônio, a endorfina, que é um relaxante natural – e, em grande quantidade, deixaria o organismo constantemente dopado. Mas essa explicação não era muito convincente. Se ela fosse verdadeira, bastaria dar naloxona (uma substância que bloqueia a endorfina e outros anestésicos como heroína e morfina) aos pacientes e pronto: tudo estaria resolvido. Mas isso não funcionava, e estudos mais aprofundados acabaram chegando à real causa da insensibilidade à dor. Ela é um problema genético, que ataca homens e mulheres na mesma proporção, passa de pai para filho e surge devido a mutações num gene que afetam o Nav1.7 – uma espécie de canal eletroquímico que liga os chamados nervos periféricos ao sistema nervoso central.

Quando o gene apresenta mutações, esse canal de comunicação não funciona, e o sinal de dor não chega até o cérebro. Por enquanto, não existe esperança de cura. Mas estudar essa síndrome pode trazer enormes benefícios para as pessoas normais. “É um passo para a evolução dos medicamentos analgésicos”, explica Geoffrey Woods, geneticista do Instituto de Pesquisas Médicas da Universidade de Cambridge. Afinal, sentir dor também é um dos grandes incômodos da humanidade. A qualquer hora do dia ou da noite, existem 85 milhões de americanos sofrendo com isso – o equivalente a 28% da população dos EUA. Estima-se que a dor seja responsável por 515 milhões de dias de trabalho perdido, e um prejuízo de US$ 100 bilhões, todos os anos. No Brasil, as pessoas gastam 10% do orçamento na farmácia – e 5 dos 10 remédios mais vendidos são analgésicos.

Seis mil anos antes de Cristo, o homem primitivo já tentava diminuir a sensação de dor. Numa tentativa fútil de acabar com as dores de cabeça, tinha gente que perfurava o próprio crânio para liberar os supostos espíritos que causavam a dor. Mas a dor também ajudou a humanidade a evoluir. O frio durante a noite nas cavernas pode ter nos estimulado a produzir fogo por conta própria. Como o filósofo grego Aristóteles diria 5 500 anos depois, “é impossível aprender sem dor”.

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A doutora Felícia Axelrod, do Centro Médico da Universidade de Nova York, é uma das maiores especialistas em insensibilidade congênita à dor e viaja pelo mundo dando palestras a respeito. Ela quer diminuir o número de médicos que não conhecem a síndrome e evitar que os doentes sejam tratados como aberrações. Porque alguns são. Em 2006, por exemplo, Felícia descobriu o caso de um menino paquistanês de 13 anos que se apresentava nas ruas espetando facas no corpo e andando sobre brasas. “Até hoje, porém, nunca presenciei caso mais chocante que o de Felipe García”, conta.

O tal Felipe, 9 anos, morava com a família num circo na cidade de Chihuahua, norte do México. Entre as atrações, estavam leões descritos como perigosíssimos, mas que na verdade sofriam pela falta dos dentes da frente, um globo da morte com 3 motociclistas, e “o incrível menino que se prega”. Quem pagasse o equivalente a R$ 5 para ver o show de Felipe não tinha como não sair impressionado.

O menino estendia a mão sobre a mesa de madeira e pregava 1, 2, 3 pregos nas dobras dos dedos da mão. Como era imune à dor, não soltava um único grito durante o espetáculo. Algum tempo depois, convidava a platéia para comandar o martelo. Aí, a coisa ficava ainda pior. O suposto voluntário, que na verdade era um funcionário do circo, errava de propósito a martelada e acertava um prego em um dos braços do menino, que continuava estático como se nada tivesse acontecido. Ao final, o público aplaudia com entusiasmo.

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Numa visita de rotina, a polícia mexicana vistoriou o circo e encontrou Felipe, que era tratado como um animal: ficava preso numa jaula de 2 m2 e se alimentava de frutas e verduras apodrecidas. Até hoje ele não fala – em parte porque ninguém o ensinou, mas também porque mutilou a língua enquanto se alimentava. Pai, mãe, irmã mais velha e dois tios estão presos desde 2007. Felipe foi adotado por uma família da Cidade do México, que há poucos meses começou a colar adesivos vermelhos, amarelos e verdes por toda a casa. É uma tentativa de ensiná-lo sobre os riscos do mundo – lição para a qual não há melhor professora do que a tão famigerada dor.

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