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O outro lado do Nobel

O prêmio Nobel está fazendo 100 anos. Foi um século de polêmicas, injustiças, brigas políticas e atos heróicos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 30 nov 2001, 22h00

Denis Russo Burgierman

Um belo dia de 1888, Alfred Nobel acordou e foi ler os jornais. Abriu na página de obituários e encontrou um texto intitulado “O rei da dinamite”. Lá, o jornal afirmava que Alfred Nobel, o “mercador da morte”, o homem que tinha construído uma fortuna explodindo coisas – e pessoas –, estava morto. A notícia não procedia, é claro – Nobel, o milionário sueco de 55 anos, que naquele exato momento lia seu próprio obituário, estava vivíssimo. Ao escrever o texto, um repórter confundiu o nome de Alfred com o de seu irmão Ludwig, esse sim morto no dia anterior.

Mal sabia o anônimo repórter que detonaria, com seu erro, uma longa história de vitórias heróicas, derrotas humilhantes e vice-versa, de injustiças, polêmicas e triunfos. O infeliz obituário levou Nobel, o químico brilhante que inventou a dinamite e enriqueceu com isso, a repensar toda sua vida. Ele não queria entrar para a história com aquela imagem. Em 1895, Nobel terminou seu testamento, no qual detalhava os prêmios internacionais que deveriam ser dados, anualmente, em seu nome. Os vencedores, além de ganhar uma medalha de ouro e um diploma bonito, dividiriam entre si os juros sobre a fortuna que Nobel deixou. Os prêmios seriam dados em cinco categorias: Química, Física, Literatura, Medicina ou Fisiologia e Promoção da Paz. (O de Economia seria criado só em 1968, para comemorar o tricentenário do Banco da Suécia.

A prestigiosa revista científica americana Science publicou recentemente um artigo defendendo a idéia de que esse prêmio não reflete a filosofia do Nobel e propondo sua substituição por um “Nobel de Sustentabilidade”, que incluísse todas as ciências ambientais, inclusive a Economia.) No dia 10 de dezembro de 1896, Alfred Nobel morreu do coração – merecendo desta vez obituários bem mais favoráveis. Cinco anos depois, há exatamente um século, os prêmios começaram a ser entregues.

No dia 10 de dezembro de 2001, mais 14 pessoas se juntaram ao seleto clube dos ganhadores do Nobel. Nessa data, foram entregues os prêmios anunciados em outubro passado. Os 14 vencedores não só se tornaram milionários da noite para o dia (o prêmio é de 940 000 dólares – a fundação cuidou bem do dinheiro de Nobel. No começo do século XX, um premiado levava “apenas” 40 000 dólares). Eles também receberam uma espécie de atestado de genialidade, viraram semideuses, subiram um degrau acima do resto dos mortais. A partir de então, sua opinião será ouvida com respeito não importa o assunto, choverão convites para palestras, para jantares, para encontros com reis e sábios.

Provavelmente, tantos compromissos vão lhes tirar o tempo para pesquisas ou livros. O Nobel em ciências – Química, Física, Medicina e Economia – quase sempre transforma pesquisadores em chefes de grupos, desses que passam mais tempo atrás de mesas assinando papéis do que nos laboratórios operando microscópios. O escritor português José Saramago, Nobel de Literatura em 1998, reclamou que passou meses sem conseguir escrever uma linha sequer depois que ganhou o prêmio. Alguns premiados, em compensação, ganharão moral e coragem para propor teorias improváveis, enormemente pretensiosas, e acabarão impulsionando ainda mais a ciência. Ou se sentirão tentados a trabalhar em nome da humanidade – Linus Pauling, o cientista que ganhou o Nobel de Química em 1954 por explicar o mecanismo das ligações entre átomos, virou um pacifista militante após o prêmio e dedicou-se a combater as armas nucleares. Por isso, mereceu um segundo Nobel, da Paz, em 1962.

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Haverá, é claro, os idealistas que continuarão trilhando o árduo caminho da pesquisa, seguindo o incrível exemplo da polonesa Marie Curie, talvez a maior heroína em 100 anos de Nobel. Ela foi a primeira mulher a ganhar o prêmio – em 1903 levou o de Física por pesquisas sobre a radioatividade (infelizmente, o feito seria raramente repetido depois. De mais de 500 vencedores, apenas 30 eram mulheres). Mas ela continuou enfurnada no laboratório e, em 1911, ganhou um Nobel de Química pela descoberta do elemento químico rádio – até hoje, ninguém mais acumulou o Nobel de Física e o de Química e nenhuma outra mulher levou dois prêmios. Marie, que morreu vítima da radiação que pesquisou a vida toda, legou à família a vocação para o Nobel – sua filha Irene ganhou o de Química, em 1935, por descobrir que é possível tornar um elemento radioativo. Seu genro Henry Labouisse completou as conquistas do clã Curie quando ganhou o da Paz em 1965 pelo Fundo de Emergência para Crianças das Nações Unidas.

Histórias heróicas de abnegação e merecimento, como a de Marie, estiveram desde o começo ligadas ao Prêmio Nobel. Mas a história de polêmicas e injustiças que cercam o prêmio é igualmente antiga. Em 1901, quando o primeiro Nobel de Literatura foi anunciado, o vencedor foi um certo poeta parnasiano francês chamado Sully Prudhomme. Já naquela época, a escolha causou constrangimento – hoje, soa como uma piada de mau gosto. Ainda mais se levarmos em conta que Prudhomme, salvo pelo Nobel de um merecidíssimo esquecimento, era contemporâneo de Henrik Ibsen, Emile Zola, Henry James e Leon Tolstói, todos eles produzindo uma obra-prima atrás da outra (os cinco morreriam sem ganhar um Nobel).

O prêmio de Literatura é, dos seis, o que detém a mais longa lista de gênios esquecidos. Fernando Pessoa, Franz Kafka, Marcel Proust, James Joyce, Rainer Maria Rilke. Verdade que, como alega a academia, todos esses autores só foram inteiramente compreendidos depois de mortos e o Nobel não dá prêmios póstumos (Kafka mal havia sido publicado quando morreu e Pessoa, se gozava de algum – não muito – prestígio em Portugal, era um ilustre desconhecido no resto da Europa).

Outra famosa não-ganhadora do Nobel foi a Relatividade. As duas teorias de Albert Einstein – a Relatividade Geral e a Relatividade Especial – foram, sem dúvida, as maiores revoluções da Física no século, abalando de forma definitiva o até então solidíssimo edifício teórico erguido por Newton (leia mais sobre a teoria e o Nobel na página 27). No mínimo, a Relatividade merecia dois prêmios, um para cada teoria. Não ganhou nenhum. Ano após ano, Allvar Gullstrand, um influente ganhador do Nobel de Medicina integrante do comitê que escolhia o de Física, bloqueou as tentativas de premiar Einstein. Ele batia pé na crença de que a Relatividade não passava de uma teoria exótica sem qualquer relação com a realidade. O lobby de Gullstrand só foi superado em 1921, graças a uma solução conciliadora: premiar Einstein não pela Relatividade, mas pela Teoria do Efeito Fotoelétrico – também brilhante, mas infinitamente menos importante. A maior teoria da Física do século ficou sem Nobel.

A história do Nobel da Paz contém uma ironia parecida. O Parlamento norueguês, responsável pelo prêmio, esqueceu justamente o homem que melhor personificou o pacifismo nos últimos 100 anos. Mahatma Gandhi foi indicado seguidas vezes e seu nome chegou a ser seriamente considerado. Mas sempre havia membros do comitê alegando que, mais do que um pacifista, esse indiano, que pregava a não-violência para resistir ao colonialismo britânico, era um nacionalista – e que, portanto, ele acabava incitando a violência e a intolerância. Em janeiro de 1948, Gandhi foi assassinado. Vários dos membros noruegueses do comitê do Nobel da Paz defenderam a idéia de que o prêmio deveria ser dado postumamente, mas a Fundação Nobel, na Suécia, vetou a infração às regras. Naquele ano, o comitê anunciou que “não havia nenhum candidato vivo merecedor do prêmio”, frase que geralmente é interpretada como uma premiação simbólica a Gandhi.

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Gandhi não ganhou seu prêmio. Mas a Índia já levou quatro. A Guatemala faturou dois – um da Paz, outro de Literatura. O Chile tem dois, de Literatura. E, suprema humilhação, a Argentina conquistou cinco e ainda pode reclamar da enorme injustiça que foi a não-premiação do seu escritor maior, Jorge Luis Borges. Timor Leste, Gana, Paquistão, Tibet e a pequena ilha caribenha de Santa Lúcia também já têm o seu. Até a Autoridade Palestina, que nem um país reconhecido é, ganhou Nobel. Mas, até hoje, nenhum brasileiro foi convidado a ir buscar sua medalha no jantar de gala oferecido em Estocolmo todo dia 10 de dezembro (dizem que a comida é ótima).

E nada indica que estejamos próximos do prêmio. A mais forte candidatura brasileira é para o Nobel da Paz. Trata-se de Zilda Arns e sua Pastoral da Juventude, um projeto social que reduziu enormemente a mortalidade infantil do país. Mas Arns tem que enfrentar uma concorrência forte nesse mundo cheio de guerras – o Parlamento norueguês gosta de premiar pessoas e instituições que agem em regiões de conflito. Não há, hoje, nenhum brasileiro perto de um Nobel de ciências. Uma rápida olhada nos investimentos nacionais em educação ajuda a explicar por quê. Todas as 39 universidades federais do país juntas consomem por ano 2,6 bilhões de dólares. Só a Universidade Harvard, nos Estados Unidos, gasta 2,9 bilhões. Não à toa, Harvard já levou 28 Nobel em ciências – é a recordista mundial, com mais prêmios que a maioria dos países do mundo.

A nosso favor, que se diga que chegamos bem perto um punhado de vezes. O médico mineiro Carlos Chagas (1879-1934) ficou na beiradinha de ganhar o prêmio por descrever a doença que recebeu seu sobrenome e provavelmente só foi relegado porque no começo do século os prêmios tendiam a ir sempre para europeus e, eventualmente, americanos. O físico Mario Schenberg (1916-1990) descobriu como se formam as supernovas e coassinou com o Nobel de Física indiano Subramanyan Chandrasekhar uma teoria sobre o ciclo de vida das estrelas. Nenhum dos feitos passou despercebido pelo comitê que concede o prêmio, mas nem assim Schenberg ganhou. Em 1982, o bioquímico britânico John Vane levou o prêmio de Medicina. O também bioquímico brasileiro Sérgio Ferreira era seu colaborador próximo, mas o comitê preferiu conceder o prêmio só ao líder do grupo.

Adolfo Lutz (1855-1940) identificou os agentes transmissores da malária e Pirajá da Silva (1873-1961) descobriu o Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose, ambos feitos dignos de um Nobel de Medicina. O comitê em Estocolmo não pensou o mesmo.

O Nobel de Literatura ficou pertinho do Brasil algumas vezes e não apenas com o sempre indicado Jorge Amado, cujas chances acabaram em agosto, com sua morte. O poeta modernista Jorge de Lima chegou a ser dado como nome certo. Em 1947, Artur Lunkvist, um influente membro da Real Academia Sueca de Letras – o mesmo que defendeu a candidatura vitoriosa (e para muitos imerecida) do chileno Pablo Neruda –, empolgou-se com a obra do poeta e veio ao Brasil. Na volta, ele convenceu os outros membros do comitê do mérito do brasileiro. Ficou acertado entre os suecos que o Nobel de Jorge seria entregue em 1958, já que antes era preciso premiar alguns grandes autores, como William Faulkner, relegados pela interrupção do prêmio durante a Segunda Guerra Mundial. Infelizmente, o brasileiro morreu antes, em 1953.

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O poeta Carlos Drummond de Andrade também foi seriamente cogitado. Mas ele próprio, que sempre teve aversão a prêmios, desencorajou a candidatura. Quando, em 1967, Arne Lundgren, seu tradutor para o sueco, pediu que ele lhe enviasse todas as suas traduções disponíveis, certamente para atender a um pedido do comitê do Nobel, Drummond respondeu, bravo, que não colaboraria, quase que ordenando que ele interrompesse imediatamente o processo.

Drummond não foi o único a torcer o nariz para o Nobel. O filósofo francês Jean Paul Sartre, ganhador do Nobel de Literatura de 1964, simplesmente recusou o prêmio – não queria que o reconhecimento institucional influenciasse sua obra. Le Duc Tho, governante do miserável Vietnã do Norte, também declinou o prêmio – o da Paz de 1973. Escolhido por ter assinado o tratado que encerrou a Guerra do Vietnã, Le Duc Tho negou-se a receber o prêmio por achar que a paz no país ainda estava longe de ser alcançada.

Teve também muita gente que recusou Nobel por pressão política. O escritor soviético Boris Pasternak, escolhido para o Nobel de Literatura em 1958 (aquele que estava prometido para o brasileiro Jorge de Lima), foi um dos que tiveram que declinar, por pressão do governo de Moscou, que acusava a fundação Nobel de sempre favorecer os países capitalistas. Pasternak, autor de Doutor Jivago, primeiro aceitou agradecido a premiação, depois mandou um misterioso telegrama no qual afirmava: “Devo abster-me do imerecido prêmio que me foi concedido”. O Nobel, na verdade, trouxe mais problemas para Pasternak que vantagens – o governo soviético passou a vê-lo com desconfiança e ele morreu pouco depois, paranóico e amargurado.

Outro governo que pressionava seus cidadãos a recusar o Nobel era o da Alemanha nazista, que considerava a fundação sueca um instrumento de propaganda a favor dos Aliados. Hitler chegou até a cogitar a criação de um prêmio concorrente, que se chamaria – adivinha – Prêmio Hitler. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando os alemães tomaram Copenhagen, na Dinamarca, e invadiram o excelente Instituto Niels Bohr, os ganhadores de Nobel da instituição temeram que as tropas apreendessem suas valiosas medalhas. Para salvá-las, Max von Laue (Nobel de Física em 1914) e James Franck (também de Física, em 1925), deram-nas ao químico George de Hevesy, que dissolveu-as em ácido. Passada a guerra, a Fundação Nobel cunhou-as novamente com o ouro derretido. Hevesy acabou ganhando a sua medalha também – levou o Nobel de Química em 1943, por sua pesquisa com isótopos.

Neste dia 10 de dezembro, mais 14 nomes se juntaram aos de Hevesy, Laue, Franck, Einstein, Curie, Sartre, Pauling. Mais uma página foi virada nessa história de 100 anos. E, já no dia seguinte, milhares de cientistas, políticos, escritores e pacifistas no mundo todo começaram a pensar em 2002. Quem sabe, não será dessa vez que eles acordarão com o telefone tocando e com uma voz com sotaque sueco parabenizando pela conquista do Nobel?

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drusso@abril.com.br

O sueco Alfred Nobel criou o mais importante prêmio do mundo para não entrar para a história como um assassino

O vencedor do Nobel leva uma medalha de ouro maciço e um diploma, além da admiração do mundo inteiro

O prêmio é de 10 milhões de coroas suecas – algo como 940 ooo dólares ou 2,4 milhões de reais

O francês Jean Paul Sartre, Nobel de Literatura de 1964

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A ONU e suas divisões levaram o Nobel da Paz em 1954, 1965, 1981 e 2001

Para saber mais

Na livraria

Mulheres que Ganharam o Prêmio Nobel em Ciências, Sharon Bertsch McGrayne, Marco Zero, São Paulo, 1994

Prêmios Nobel, Santos Salvaggio, Editorial Ramon Sopena, Espanha, 1980

Na internet

https://www.nobel.se

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