Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Planeta queijo

Como um alimento tão estranho, fedido e vivo, cheio de micro-organismos e coisas que jamais aceitaríamos em outras comidas, pôde acabar se tornando tão popular - e tão gostoso? A história, a ciência e o futuro do queijo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h05 - Publicado em 1 Maio 2011, 22h00

Marina Fuentes

Pegue 10 litros de leite, misture com ácido e deixe estragar num lugar quente. Algum tempo depois, o líquido terá se transformado numa massa semissólida, de aspecto estranho e lotada de bactérias – que se alimentam do leite e nele liberam seus excrementos. Parece apetitoso? Espere a gororoba secar, molde-a no formato desejado e coma. Se preferir, deixe-a apodrecendo por mais algumas semanas e fungos se juntarão à festa, adicionando mofo. Desde que a humanidade aprendeu a fazer queijo, ele virou uma de nossas comidas preferidas. Mas, se você parar para pensar, não deveria ser assim. “Os melhores queijos do mundo têm gosto muito forte, e cheiram como uma coisa que você não deixaria entrar na sua casa. O queijo é comida extrema”, define perfeitamente o queijólogo (opa, fromagier) Max McCalman, autor de vários livros sobre o assunto. Tem razão. O queijo possui características que jamais aceitaríamos em outros alimentos. Por que gostamos tanto dele? A história explica.

Acredita-se que a produção do queijo tenha começado junto com a criação de animais, lá pelo ano 12000 a.C. Mas a primeira referência a ele data do ano 3000 a.C, e está num desenho feito pelos sumérios. Era um povo que sabia viver: carrega a honra de ter inventado a cerveja. Ao contrário do que acontece hoje, em que a maior parte dos queijos é feita com leite de vaca, o primeiro queijo do mundo foi produzido com leite de cabra. Ele fez sucesso, tanto que os sumérios aprenderam a produzir 20 tipos diferentes de queijo, mas o sabor não era lá essas coisas. Isso porque o queijo sumério era fabricado pela mistura do leite com algum componente ácido, como suco de limão, que tinha a função de coagular o líquido e transformá-lo em sólido. Em alguns casos, isso resultava em queijos muito fedorentos. Tanto que o nome de um deles, nagabu, também era usado como xingamento pelos sumérios. Mas, naquela época, o gosto e o cheiro eram preocupações secundárias. O importante era conservar o leite, tarefa que o queijo cumpre excepcionalmente bem – isso acontece porque as bactérias e os fungos que o infestam não fazem mal ao ser humano (mais sobre isso daqui a pouco, quando chegarmos ao século 19).

O queijo só se tornaria realmente gostoso muito tempo depois, nos últimos séculos antes de Cristo. Isso porque sua composição mudou: saiu o limão e entrou o coalho, uma enzima produzida pelo estômago dos animais. Não se sabe exatamente como isso aconteceu, mas os historiadores acham que foi sem querer. Acontece que, naquela época, os romanos transportavem o leite em sacos feitos de pele de animal – que contém restos da tal enzima. Alguém pode ter deixado o leite muito tempo dentro do saco; e aí, ao abri-lo, encontrado uma bela surpresa. Hoje, a maioria dos queijos é produzida com coalho – e alguns levam também outros aditivos (veja no infográfico).

A expansão dos romanos pela Europa, entre 50 a.C. e o ano 100, foi a grande divulgadora da atividade queijeira – como dificilmente estragava, o queijo era a ração perfeita para os soldados de Roma, que o levavam por onde passavam. Os países que hoje se consideram reis dos queijos finos, como França e Suíça, devem isso aos romanos. Que também foram os responsáveis por transformar esse alimento, até então considerado coisa de pobres, em delícia gastronômica. Só que os romanos tinham um hábito curioso: misturar todos os tipos de leite em seus queijos (se você quiser saber no que dá essa mistureba, procure no supermercado um queijo espanhol chamado Cabrales – que é feito com leite de vaca, cabra e ovelha). Mas nem todas as receitas de Roma eram estranhas. Algumas delas, como a do parmesão tradicional, são seguidas até hoje. Os romanos também usavam o queijo numa panqueca (que chamavam de placenta), e criaram um cheesecake feito com leite de ovelha.

Continua após a publicidade

A empolgação com o alimento se tornou cada vez maior, até chegar ao ponto mais bizarro (e gostoso): os queijos mofados. O primeiro registro deles é do ano 800, quando o imperador Carlos Magno estava viajando pela França. Era uma sexta-feira, dia em que Carlos não comia carne, e seu anfitrião não conseguiu peixe. Decidiu servir um queijo – mofado. Depois de uma certa relutância, o imperador provou e adorou. E o tal queijo mofado, um roquefort, passou a ser considerado iguaria.

Mas nessa época o queijo sofreu seu primeiro revés. Surgiram teorias pseudo-científicas dizendo que ele fazia mal à saúde (podia causar pedras nos rins), e os médicos passaram a desaconselhar seu consumo, que caiu drasticamente. O desenvolvimento do queijo passou para os monastérios – que precisavam ser autossuficientes, e por isso investiam muito tempo e esforço na fabricação e no aperfeiçoamento de certos alimentos. Os monges trapistas, que já faziam uma ótima cerveja, inventaram queijos de alto nível, como o port-du-salut (um queijo forte, que é produzido até hoje -não por monges – e custa R$ 30 o quilo).

O Renascimento, entre os séculos 14 e 16, foi um tempo de renegar as crenças medievais e inventar coisas novas – inclusive de comer. O queijo ganhou variedades gourmet, como o brie e o camembert, e voltou a ser cultuado na Europa. Mas ainda levaria um bom tempo para chegar ao Brasil. Sim: embora houvesse vacas por aqui desde os primórdios da colonização, tivemos que esperar até o século 19 para ter acesso ao queijo – quando a receita de um tipo chamado Serro foi trazida pelos portugueses. Algumas fazendas passaram a produzir uma versão simplificada dele, o Queijo Minas.

Logo depois, o biólogo Louis Pasteur viria a fazer uma descoberta revolucionária. No final do século 19, ele constatou que a fermentação do queijo não era simplesmente uma reação química, causada pela mistura do leite com o coalho. Na verdade, ela era causada por seres vivos – 7 tipos de bactéria, que comem a lactose do leite e excretam vários tipos de substância. Sabendo dessas coisas, foi possível isolar, estudar e selecionar esses bichinhos. A fabricação do queijo se tornou uma ciência, e finalmente passamos a entender por que cada tipo tem o gosto que tem. O queijo suíço, por exemplo, é todo furadinho por causa do CO2 liberado pelas bactérias que vivem dentro dele. E seu gosto se deve aos ácidos acético e propriônico que elas geram. Pasteur revolucionou o queijo. Ironicamente, seu outro grande feito viria a causar uma grande polêmica entre os amantes desse alimento.

Continua após a publicidade

O QUEIJO SEM QUEIJO?

Existem duas maneiras de fazer queijo. A artesanal, com leite não pasteurizado, geralmente em fazendas pequenas e com processos tradicionais. O queijo artesanal é cheio de nuances e surpresas (dois pedaços do mesmo tipo, feitos pelo mesmo produtor, podem ter gostos completamente diferentes) e o preferido dos experts. O outro é o queijo industrializado, que compramos no supermercado. Ele é feito com leite pasteurizado, ou seja, que foi fervido para matar as bactérias naturais – só contém bactérias cultivadas em laborátorio, que são adicionadas artificialmente.

As duas filosofias, artesanal e industrial, sempre conviveram pacificamente nas prateleiras e barrigas do mundo. No Brasil, por exemplo, o Ministério da Agricultura exige que todos os queijos sejam feitos com leite pasteurizado – e concede licença para que algumas queijarias produzam com leite “cru” e métodos tradicionais, desde que elas sigam boas condições de higiene.

Mas uma guerra está se desenhando. Os EUA, maiores produtores do mundo, querem acabar de vez com o queijo não pasteurizado, que consideram perigoso para a saúde. Alguns tipos, como o brie e o camembert artesanais, já estão banidos por lá. É ilegal produzi-los, comprá-los ou importá-los – a alfândega apreende os queijos proibidos. E os especialistas temem que essa diretriz se espalhe para outros países, até se tornar uma norma quase global.

Exagero? Já está acontecendo. O melhor camembert do mundo é produzido na Normandia, região no norte da França. Só que duas companhias, responsáveis por 90% da produção de lá, decidiram abandonar o método de fabricação tradicional – e vão pasteurizar todo o seu queijo. Ou seja: o camembert autêntico praticamente desapareceu. “O queijo precisa das bactérias naturais para se desenvolver plenamente. A gente aprendeu que as bactérias do iogurte fazem bem à saúde. Vamos acabar aprendendo que as bactérias do queijo também são benéficas”, acredita o historiador da comida Andrew Dalby. Talvez ele esteja sendo muito otimista. Na verdade, a tendência é outra. Os queijos industrializados podem ter sua gordura animal (leite) substituída por gordura vegetal. Ou podem ser totalmente feitos à base de vegetais. Não, não estamos falando do tofu. Estamos falando do queijo sintético – um produto que tem cor, textura, cheiro e até gosto de queijo. Mas não é queijo. Nos EUA, ele é um megassucesso: geralmente na versão cheddar, pode ser encontrado em qualquer supermercado e em várias redes de fast food. Um teste feito pelo governo alemão com 51 marcas e tipos de queijo descobriu que 40% deles eram sintéticos – sem que essa informação estivesse destacada no rótulo.

Continua após a publicidade

No Brasil, a onda do queijo sintético invadiu as prateleiras de requeijão: vários deles contêm amido ou gordura vegetal (informação que consta do rótulo, mas em letrinhas bem pequenas), e por isso são sintéticos ou semissintéticos. Os fabricantes fazem isso porque o produto fica mais barato – mas menos saboroso. Tem gente mexendo no seu queijo.

Tá na tábua
Veja como são feitos, e quais ingredientes levam, alguns dos queijos mais conhecidos – e consumidos – do mundo

O queijo pelo mundo
Tipos e tradições exóticas

Contém larvas vivas
Você acha que já provou de tudo? Experimente o Cazu Marzu, um queijo que contém… larvas! Ele é feito com leite de ovelha, e deixado num ambiente aberto e escuro para atrair moscas – que nele depositam seus ovos. O queijo foi inventado na Sardenha (Itália) e é proibido, mas faz sucesso no mercado negro. Ele deve ser consumido com as larvas vivas e saltitantes – recomenda-se usar óculos para proteger os olhos. 

Continua após a publicidade

Fama injusta
Na Alemanha, há um prato tradicional chamado handkase mit musik: é um queijo, o handkase, acompanhado de música – no caso, os puns que a maioria das pessoas solta após comê-lo. Mas é injustiça: na verdade, a flatulência é causada pela cebola que acompanha o queijo.

País do catupiry
Ele não é exatamente um queijo, e sim um requeijão (pasta formada pelo aquecimento e coagulação do leite). O Catupiry foi inventado em 1911 na cidade de Lambari, Minas Gerais, pela família de imigrantes italianos Silvestrini. Desenvolvido a partir do requeijão tradicional (que tem consistência mais firme), o cremosíssimo Catupiry hoje é exportado para o Japão e os EUA. 

O cheese da questão
Quem faz, e quem come, o queijo do planeta

Mundo: 18 bilhões de kg/ano (2,8 kg por pessoa)

Continua após a publicidade

Maior produtor: EUA 4,1 bilhões de kg

Maior variedade: França 700 tipos

Maior exportador: Alemanha 603 milhões de kg

Maior consumidor: Grécia 27,6 kg per capita/ano (no Brasil, são 3 kg)

Para saber mais

Cheese: A Global History
Andrew Dalby, Reaktion Books, 2009.

The Cheese Plate
Max McCalman, Clarkson Potter Books, 2002.

American Farmstead Cheese
Paul Kindstedt, Chelsea Green, 2005.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.