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A cozinha nos salvou de sermos iguais aos outros primatas

Suzana Herculano explica que apesar de o nosso cérebro não ser maior que o de outros animais, temos mais neurônios no córtex graças ao ato de cozinhar

Por Pâmela Carbonari Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 out 2017, 20h02 - Publicado em 27 out 2017, 19h47

O novo livro da neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel fala sobre comida. Ou melhor, fala sobre preparar comida. Em A Vantagem Humana: como nosso cérebro se tornou superpoderoso, ela mostra que só desenvolvemos cérebros complexos (que sugam 25% da energia que consumimos) depois que aprendemos a cozinhar os alimentos – o que facilitou a extração de calorias e possibilitou a nossa evolução.

Suzana é autora dos livros O Cérebro Nosso de Cada Dia (2002), Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor (2009) e Fique de Bem com seu Cérebro (2007). Atualmente, é professora na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. Em conversa com a SUPER, ela conta como a cozinha nos salvou de estarmos ainda no topo das árvores.

Se os outros primatas cozinhassem, eles seriam tão inteligentes quanto nós?

É difícil dizer. Eles também teriam de passar por uma combinação fortuita de evoluções pelas quais nós passamos, como o bipedalismo, que liberou as mãos do chão, e a posição dos nossos polegares, que permitiu o manuseio de objetos. Sem isso, não dá para manipular ferramentas como nós fazemos. E, na nossa evolução, o uso de ferramentas aparece muito antes do cérebro moderno. Existem várias coisas que vieram antes do aumento do número de neurônios, que surgiu com o fim da limitação calórica.

Se nós não tivéssemos desenvolvido a habilidade de cozinhar, não teríamos evoluído?  

Não. Primeiro que a gente não conseguiria passar nove horas por dia atrás de comida. Os outros primatas conseguem ficar no máximo oito horas buscando alimento. Mais tempo que isso, eles passam fome e perdem peso. O limite é de oito horas sem comida. Então, não teríamos a forma que temos hoje. O maior hominídeo seria como o Homo erectus de cerca de 2 milhões de anos atrás. Ou seja, teríamos o mesmo número de neurônios que um gorila ou um orangotango e passaríamos a maior parte do dia atrás de comida. Não teríamos tempo para estudar, falar ao telefone ou nos questionar sobre do que somos feitos ou nos dar ao luxo de comer uma dieta especial.

Hoje sofremos com os problemas causados pelo excesso de calorias, como diabetes e obesidade. Como você explica isso?

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É uma consequência natural. Não só resolvemos o problema de não ter calorias suficientes, como temos acesso a calorias abundantes. Hoje ingerimos as 2 mil calorias necessárias por dia comendo um sanduíche em 15 minutos. Por um lado, temos a industrialização que cria bombas calóricas em pacotinhos fáceis de consumir – por outro, nosso cérebro é o mesmo faminto de 200 mil anos atrás, quando não existia agricultura, geladeira ou fast-food. A epidemia de obesidade é completamente compreensível, resultado de um cérebro que adora comida misturado com as tecnologias que esse mesmo cérebro é capaz de inventar.  Já solucionamos o problema de “como eu faço pra conseguir calorias”, agora precisamos resolver o “como eu faço pra parar de comer quando eu não preciso mais”.

Como dietas restritivas influenciam o cérebro?

Quando a desnutrição e a subnutrição acontecem na infância, os efeitos ficam no resto da vida porque impactam na formação do cérebro. As pessoas não se desenvolvem normalmente. Depois de adulto, a alimentação pobre em calorias e nutrientes tem um efeito diferente. Toda vez que a gente não ingere calorias suficientes num dia, o corpo prioriza o cérebro, desviando nutrientes e mandando tudo para lá. O corpo sabe que o cérebro é mais importante. Tanto que, no extremo, quando falta caloria demais, a gente desmaia.

Como foi a recepção da comunidade científica diante da sua descoberta de que temos menos neurônios do que os pesquisadores achavam que tivéssemos?

O consenso era de que o cérebro humano tinha 100 bilhões de neurônios e era fora do comum. Ninguém questionava, mas ninguém creditava a fonte original que tinha comprovado isso. Até que apareceu esse artigo de um grupo de brasileiros com uma ideia maluca de transformar o cérebro em sopa para contar os neurônios, dizendo que temos, na verdade, 86 bilhões de neurônios e, no máximo, uma célula glial para cada neurônio. A parte mais importante nem são os números em si, mas a descoberta de que nosso cérebro não tem nada de especial. Levamos três anos até conseguir publicar o primeiro artigo. Os revisores diziam que não podiam deixar passar um trabalho que dissesse que temos um cérebro de primata genérico. Hoje, oito anos depois, nossa descoberta virou uma referência de quantas células o cérebro humano é feito, o artigo tem mais de 400 citações. E a noção de que o nosso cérebro é um cérebro de primata que consegue ser enorme porque temos um jeito tecnológico e diferente de nos alimentar também já tem bastante apoio.

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No seu livro você confessa se sentir aliviada porque as pessoas aceitam ser chamadas de primatas. Por quê?

É difícil encontrar um cientista que discorde que somos animais, mas muitos ainda se grudam à ideia de que alguma coisa tem que ser radicalmente diferente e especial. Existem várias pesquisas focadas em buscar genes, alterações, circuitos ou tipos de células exclusivos da espécie humana. E não digo que não existam. Da mesma maneira que você olha para um pessoa e para um chimpanzé e você sabe qual é qual, é claro que existem várias características exclusivas nossas, porque senão não conseguiríamos responder essa pergunta. Sem conhecimento, somos só mais um primata que tem 86 bilhões de neurônios no cérebro, que pode fazer um monte de coisas com esses neurônios que outros primatas não conseguem no nível que conseguimos, mas que ainda assim precisa ser educado. A diferença entre nós e as outras espécies não está em nenhuma biologia fora do comum, mas no que conseguimos fazer com isso. Precisamos mudar a noção de que o mundo é nosso, que é feito pra gente, e entender o nosso lugar na natureza.

A edição de A Vantagem Humana lançada no Brasil é traduzida. Se a maior parte do trabalho foi feita aqui, por que escrevê-lo em inglês?

Esse é o primeiro livro que publico sobre o meu trabalho e não sobre como vejo o trabalho de outros cientistas. E queria que tivesse um público o mais amplo possível. Ele reúne dez anos de trabalho, é um resumo de tudo o que fiz no Brasil antes de mudar pra cá. Todos os meus livros anteriores foram escritos em português e isso dificulta a divulgação em outras línguas. No Brasil, estamos acostumados com a publicação de traduções, faz parte da nossa dinâmica, mas nos Estados Unidos isso não acontece. Há uma resistência enorme das editoras em traduzir, porque o custo é muito alto e aqui isso já faz parte dos custos normais de publicação. Escrevi em inglês porque é um livro internacional e a ciência é internacional.

No vídeo abaixo, Suzana explica a relação entre o tamanho do nosso cérebro e o do corpo, a densidade do nosso córtex e o quanto o cérebro demanda de energia.

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Leia um trecho livro aqui.

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