A cura pode estar aqui (ou dentro da sua cabeça)
Um paciente que acredita no tratamento melhora mesmo tomando pílulas de farinha?
Maria Fernanda Vomero
Se você perguntar para um grupo de médicos se um deles já teve algum paciente que melhorou de forma surpreendente sem recorrer a remédios ou cirurgias, certamente vai ouvir muitas histórias. Se fizer a mesma pergunta aos amigos, é provável que descubra casos interessantes de gente que sarou sem passar pelo ambulatório. Foi a vizinha que se curou do câncer, o tio que espantou a insônia, o colega que se livrou da artrite. Não se trata de conversa fiada nem de fenômeno sobrenatural. Melhoras ou curas como essas começam a ser vistas pela ciência como provas da participação ativa da mente – ou seja, das emoções, crenças e expectativas – no tratamento de uma doença física. É o efeito placebo.
Placebo é um termo emprestado do latim. Significa “agradar”. Serve para designar a substância inócua usada em experimentos clínicos que testam a eficácia terapêutica de uma nova droga. Nesses experimentos, os pacientes são divididos em dois grupos: o primeiro recebe o novo medicamento e o segundo, que servirá de controle, o placebo. São testes chamados de duplo-cegos, porque nem o paciente nem o médico sabem que indivíduo receberá qual substância – a informação é mantida em sigilo pela equipe coordenadora até o fim da experiência. Ao contrário da droga estudada, o placebo não tem princípio ativo. Pode ser uma pílula de farinha, uma cápsula com açúcar ou uma ampola com soro fisiológico – desde que a semelhança com o remédio de verdade seja perfeita. Teoricamente, não deveria provocar efeito algum. No entanto…
“O índice de melhora do grupo que recebe placebo chega a 40% dos casos, em média”, afirma o psiquiatra Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo. Isso mostra que até quatro em cada dez pacientes sente alívio de algum sintoma físico somente por tomar um remédio de mentira acreditando que é verdadeiro. Eis o efeito placebo. A vontade de se curar, a crença no médico ou no poder terapêutico da substância trazem benefícios para o doente, desde potencializar a ação de um medicamento até reverter um quadro de dor, por exemplo. “O efeito placebo é real. Trata-se de ciência e não de esoterismo ou magia, como muita gente pensa”, diz o farmacêutico José Carlos Nassute, professor da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara.
Casos para comprovar o fenômeno não faltam. “Se a medicina não contar com a crença do paciente em sua própria melhora, nada funciona”, afirma Carlini. Ele se recorda de uma experiência realizada no Hospital São Paulo, na capital paulista, com uma substância que teria propriedades antiepiléticas. Foram selecionados pacientes com epilepsia severa, que, no ano anterior, haviam tido pelo menos uma crise por semana e que não reagiam mais a nenhum medicamento. O estudo seguia o modelo duplo-cego e obteve a aprovação do comitê de ética do hospital.
Entre os que receberam o placebo estava um paciente chamado João. Era um homem humilde e apresentava duas ou três convulsões por semana. Durante os seis meses de acompanhamento, em que recebia uma cápsula com açúcar cristal por semana, João não teve nenhuma crise. “Seria difícil explicar para ele o fim da experiência”, diz Carlini. “Então, durante mais de um ano, continuamos a lhe dar o placebo. Lembro-me de que ele nem sempre tinha dinheiro para pagar a condução. Mas fazia questão de nos trazer uma caixa de bombons sempre que possível, quando vinha buscar as cápsulas.”
Carlini analisa a história de João dentro do contexto do sistema de saúde brasileiro. Em geral, diz ele, os pacientes costumam ser atendidos em ambulatório, enfrentar filas de espera e consultas rápidas, cada vez com um profissional diferente. Quando são selecionados para participar de um estudo, recebem toda a atenção da equipe médica, em horários agendados, e têm o tratamento supervisionado do começo ao fim. “Esse paciente, ao ser tratado dessa maneira, deseja melhorar. Ficar bom é uma forma de agradecer ao médico que o atende com tanta atenção”, diz Carlini. Ele e outros cientistas reconhecem que a gratidão do paciente pode desencadear o efeito placebo, assim como outros fatores presentes na relação com o médico. Um cumprimento mais afetuoso ou mesmo um procedimento complexo, como a cirurgia, também podem induzir uma melhora.
“A intensidade do fenômeno depende tanto da doença que está sendo tratada quanto da natureza do placebo”, diz o psicólogo americano Irving Kirsch, da Universidade de Connecticut, que há 25 anos estuda o assunto. “Placebos apresentados como se fossem remédios de uma marca conhecida provocam mais efeito do que aqueles tidos como genéricos. E injeções de substâncias inócuas são mais efetivas do que as pílulas da mesma substância.” Quanto maior e mais dramático parece ser o procedimento terapêutico, maior o efeito placebo para o paciente.
Um exemplo da influência das expectativas aconteceu no Texas, Estados Unidos. Dez pacientes, com fortes dores no joelho devido a artrite, aguardavam a vez de serem operados pelo cirurgião americano J. Bruce Moseley. Cético sobre os reais benefícios da cirurgia, Moseley resolveu fazer um teste. Conseguiu a aprovação do comitê de ética do hospital e o consentimento dos pacientes. Os dez homens seriam anestesiados e levados para a sala de operações. No entanto, apenas dois deles seriam submetidos à cirurgia completa, que consiste em retirar parte da junta inflamada e lavar a região afetada. Três teriam apenas a área atingida lavada e, nos cinco restantes, seriam feitos apenas três pequenos cortes superficiais no joelho, imitando os normalmente adotados nesse tipo de cirurgia. Seis meses depois, os dez pacientes ainda não sabiam a que tipo de procedimento haviam sido submetidos, mas todos eles sentiram o mesmo grau de diminuição das dores.
O efeito placebo não se restringe aos testes. “Está presente em todo ato terapêutico”, diz o médico Eduardo Baleeiro, da Universidade Federal da Bahia. “Na minha experiência clínica, o fenômeno placebo não aparece como exceção, mas sim como a regra.” Ele conta a história de um homem de 74 anos que estava com câncer de laringe e, por isso, apresentava uma rouquidão constante. Foi submetido a duas sessões de radioterapia, sem sucesso.
Baleeiro e sua equipe, ao ver o tamanho do tumor, optaram por uma cirurgia para a remoção da laringe. Se não fosse operado, acreditavam, o paciente provavelmente morreria em poucos meses. Mas o homem negou-se a passar pela cirurgia pois, sem laringe, não poderia fazer o que mais gostava: nadar diariamente e tocar sua gaita de sopro. (Depois da cirurgia de retirada da laringe, os pacientes passam a respirar por um orifício no pescoço.) Ele procurou, então, seu médico de confiança, que lhe propôs um tratamento sem cirurgia. “O paciente está vivo há mais de cinco anos, graças à sua determinação e à incondicional confiança naquele médico”, afirma.
Mas, tanto nos experimentos quanto no consultório, os médicos encontram também casos de efeito nocebo – o fenômeno inverso ao placebo. “O paciente pode, ao tomar uma substância inócua, sentir os mesmos efeitos colaterais que um remédio causaria”, diz Robert Hahn, especialista em antropologia médica do Centro de Controle de Doenças do governo dos Estados Unidos. “Às vezes, também, as expectativas do paciente quanto ao tratamento são tão negativas que acabam bloqueando ou invertendo a ação do medicamento verdadeiro.”
Auto-sugestão? Os pesquisadores admitem que a mente desempenha um papel fundamental no efeito placebo (e no nocebo também). “Está mais do que provado que as emoções podem desencadear alterações físicas”, diz o farmacêutico José Nassute. Por que o mesmo antibiótico passa a “agir” quando você muda de médico? “Em certas doenças, a fé do paciente na cura pode funcionar por si só”, afirma o cardiologista americano Herbert Benson, fundador do Instituto Médico Mente e Corpo, ligado à Universidade de Harvard. “Em outras, a fé potencializa os efeitos da medicação. Isso quer dizer que a mente participa do tratamento. Mas não substitui os remédios e cirurgias que existem.”
Para a psicóloga Denise Gimenez Ramos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o efeito placebo soa como um fenômeno inexplicável porque o ser humano se acostumou a enxergar a capacidade de cura como algo externo a si mesmo. “Projetamos o efeito curador no médico, no remédio, na cirurgia, num objeto mágico, numa imagem sagrada – ou no placebo.”
Denise cita a história do paciente Wright, um americano com câncer em estado avançado, que ficou famoso na medicina pela evidência do poder dos efeitos placebo e nocebo. Doente terminal, Wright apresentava tumores grandes e respirava com a ajuda de tubos de oxigênio. Ele descobriu que o hospital em que estava internado iria realizar testes com uma nova droga, o krebiozen, e pediu para ser incluído no grupo a ser estudado. Apesar de desenganado, estava tão entusiasmado que os médicos não tiveram alternativa senão aceitá-lo nos testes.
Dias depois das primeiras aplicações de krebiozen, Wright deixou o hospital recuperado. Mas isso só durou até os jornais divulgarem pesquisas que questionavam o efeito terapêutico da droga. Wright ficou deprimido. Seus tumores voltaram, ele teve uma recaída fulminante e foi internado novamente, em estado grave. O médico, percebendo o efeito placebo, disse que tinha disponível krebiozen refinado, muito mais eficaz que a versão anterior. Wright recuperou a confiança na cura e, depois das injeções de placebo, recebeu nova alta. Quando o relatório final da Associação Médica Americana foi divulgado, dizendo que a droga de fato não funcionava, Wright retornou ao hospital e, dias depois, morreu.
Pode parecer que o fenômeno não passa de um jogo de emoções. Mas os cientistas apontam algumas explicações fisiológicas para os efeitos placebo e nocebo. Muitos deles apostam no reflexo condicionado. A repetição de um estímulo acaba acostumando o sistema nervoso a responder sempre da mesma maneira. Quem elaborou essa teoria foi o fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936). Durante meses, ele tocava um sino e, em seguida, alimentava seus cães. Com o tempo, bastava tocar o sino para que os animais começassem a salivar, mesmo que não houvesse ração.
“Mas o condicionamento pavloviano nada tem a ver com expectativas pessoais”, diz o psicólogo Shepard Siegel, da Universidade McMaster, no Canadá, especialista no assunto. Ele cita um caso clássico de pessoas com alergia ao pólen – mesmo quando expostas a flores de plástico desenvolviam uma grave reação alérgica. “A associação entre a imagem da flor e a lembrança do malefício do pólen trazia a mesma reação à visão daquelas flores artificiais.”
Outro interessado em entender a fisiologia do placebo, o italiano Fabrizio Benedetti, da Universidade de Torino, constatou que as nossas expectativas podem evitar ou disparar a sensação de dor. Ou seja, nossa mente teria um poder analgésico, sim. E seria capaz de anestesiar uma parte do corpo e não outra, dependendo da resposta específica ao placebo. Voluntários que passaram um placebo na mão, acreditando ser um gel contra a dor, afirmaram que a sensibilidade das mãos diminuiu, ao contrário da dos pés. “Concluímos que na diminuição da dor provocada pelo placebo há participação das substâncias narcotizantes do nosso próprio cérebro quando fatores cognitivos, como expectativas e crenças, estão envolvidos.”
Mesmo com tantas evidências, há quem coloque em dúvida a existência do fenômeno na maioria dos casos já descritos. Em maio deste ano, dois pesquisadores dinamarqueses publicaram um estudo comparando o efeito placebo com a ausência de tratamento. A conclusão surpreendeu o meio científico. Após analisar 114 pesquisas com quase 7 500 pacientes em 40 diferentes condições, eles concluíram que não há dados suficientemente seguros para afirmar que os doentes melhoram só por acreditar que um falso tratamento é real.
“Constatamos que a porcentagem de melhora atribuída ao efeito placebo não era estatisticamente significativa”, diz o médico Asbjorn Hrobjartsson, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, um dos autores do estudo. “Nos testes com resultados em escala (como melhora da hipertensão, por exemplo), a presença do efeito placebo era modesta e não podia ser diferenciada de um esforço do paciente para agradar o pesquisador.” Além disso, afirma ele, a maioria dos artigos publicados sobre o fenômeno não distingue os efeitos do placebo do curso natural de uma moléstia. Em geral, existe um período na doença em que o indivíduo parece melhorar. “Será que não se atribui erroneamente esse período de melhora ao efeito placebo?”, pergunta Hrobjartsson. Os pesquisadores não têm a resposta.
Falta muito para a ciência entender os mecanismos emocionais e fisiológicos que envolvem o desaparecimento de moléstias no organismo. “Há tratamentos em que não se produz efeito placebo. Em outros, quase 100% dos pacientes melhoram”, diz Irving Kirsch. Ao que tudo indica, há mais coisas entre a doença e a cura do que sonha a nossa biologia.
Para saber mais
Na livraria
Placebo Effect, de Anne Harrington. Harvard University Press, Estados Unidos, 2000
A Psique do Corpo, de Denise Gimenez Ramos.
Summus Editorial, São Paulo, 1994
Emoções que Curam, de Daniel Goleman (org.)
Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1999
Na internet