A face oculta do caos
Um grupo de jovens pesquisadores rebeldes arma-se de equações e computadores para desencadear a revolução científica que vê um dos mais estranhos segredos do mundo material: existe ordem onde menos poderia parecer. Como uma torneira que pinga.
James Gleick
Santa Cruz era o mais novo campus da Universidade da Califórnia, esculpido num cenário de livro de histórias, uma hora ao Sul de São Francisco. As pessoas às vezes diziam que mais parecia uma reserva florestal do que uma faculdade. Os prédios ficavam aninhados entre sequóias e, bem no espírito da década de 60, seus planejadores fizeram questão de conservar todas as árvores. Como outros departamentos, o de Física teve de ser criado do nada, começando com um corpo docente de aproximadamente quinze físicos, todos muito ativos e, na memória, jovens. Sua diversidade de interesses convinha a um corpo de aluno brilhantes e inconformistas. Pelo menos os professores pensavam assim. No final da década de 70, o departamento deparou-se com uma míni-revolução, um levante entre os estudantes graduados. O que estes queriam aprender ninguém podia ensinar – uma disciplina recém-criada e mal definida chamada caos. Dez anos depois, o caos tornou-se um dos campos da ciência que mais rápido cresce, oferecendo uma nova maneira de encontrar ordem que aparentemente não têm ordem alguma. Médicos descobrem uma ordem surpreendente na fatal desordem capaz de vencer o coração humano, um tremor espasmódico que é a causa primeira de uma morte súbita e inexplicável. Economistas estão desencavando velhas cotações de bolsas de valores para tentar um novo tipo de análise. Percepções que começaram com Física e Matemática puras remeteram diretamente ao mundo natural – as formas das nuvens, o comportamento dos relâmpagos, o entrelaçamento microscópico dos vasos sanguíneos, a aglomeração galáctica de estrelas. Cientistas estão encontrando padrões universais no comportamento do tempo, no comportamento dos carros congestionando vias expressas, no comportamento do petróleo fluindo nos oleodutos subterrâneos. A nova ciência começou a modificar a maneira pela qual executivos tomam decisões sobre seguros, a maneira pela qual astrônomos olham o sistema solar, a maneira pela qual teóricos políticos falam das tensões que levam a conflitos armados.
Novas idéias podem ser difíceis de ser concebidas e a inexperiente ciência do caos colidiu com algumas tradições firmemente enraizadas – por exemplo, a crença de que sistemas simples devem produzir comportamento simples e ordenados. Quando um punhado de estudantes da Santa Cruz se enredou nos primeiros fios enovelados da nova ciência, perceberam-se totalmente sozinhos. Fora dali, em diversos laboratórios e departamentos de Física, alguns cientistas apaixonadamente iconoclastas estavam criando uma nova disciplina. Um meteorologista, Eduardo Lorenz, tinha descoberto um formato misterioso, mais tarde denominado estranho atrator, que iluminava a caótica imprevisibilidade do tempo que faz na terra.
Um matemático, Benoit Mandelbrot, havia descoberto uma família de padrões que se tornou o fundamento da Geometria fractal. Um físico, Mitchell Feigenbaum, descobria ligações insuspeitadas entre famílias inteiras dos sistemas caóticos, desenvolvendo uma teoria que relacionaria fluidos turbulentos a circuitos eletrônicos flutuantes aos ritmos da própria vida. Todos eles estavam reexaminando muitos sistemas físicos aparentemente fortuitos ou caóticos, descobrindo novas maneiras de formular equações para descrevê-los e daí usando computadores para criar padrões visuais a partir das equações – padrões que não eram óbvios de nenhum outro modo.
Os estudantes, que apenas se iniciavam nessas descobertas instigantes, não sabiam como proceder. A educação de um físico depende do sistema de orientadores e orientados. Um bom orientador ajuda seu aluno a escolher problemas administráveis e fecundos. Se o relacionamento der certo, a influência do professor ajudará o estudante a conseguir emprego. Mas em 1977 não havia orientadores na área do caos. Não havia aulas de caos, nem manuais sobre caos, nem sequer uma publicação dedicada ao caos. Os estudantes tinham de inventar eles próprios o campo de estudos – e, ao fazê-lo, eles conseguiram desenvolver o assunto para todo o mundo.
Em Santa Cruz, o caos começou com um estudante barbudo, natural de Boston e formado pela Universidade de Harvard, chamado Robert Stetson Shaw, que em 1977 estava para completar 31 anos. Isso fazia dele praticamente o mais velho da turma. Sua carreira em Harvard havia sido interrompida diversas vezes, primeiro pelo serviço militar, depois pela decisão de viver numa comunidade e ainda por outras experiências improvisadas. Shaw era quieto, tímido, mas de forte presença. Ele estava a poucos meses de completar sua tese de doutorado em supercondutividade, então um assunto respeitável, embora de certa forma estagnado.
Ninguém estava particularmente preocupado com o fato de ele perder seu tempo lá embaixo no prédio de Física brincando com um computador analógico. Na evolução dos computadores, os analógicos representavam um beco sem saída. Computadores digitais, construídos a partir de circuitos que podiam ser ligados ou desligados, zero ou um, sim ou não, davam respostas precisas às perguntas feitas pelos programadores. Computadores analógicos, por sua própria concepção, eram muito vagos.
Em sua estrutura não havia interruptores do tipo sim-não, mas circuitos eletrônicos como resistências e condensadores, facilmente reconhecidos por qualquer pessoa que tivesse lidado com rádios, antes que a miniaturização de aparelhos eletrônicos solid-state impedisse que amadores desmontassem tais equipamentos. O computador analógico de Santa Cruz era uma coisa pesada e empoeirada, com um painel de madeira na fachada, como aqueles usados antigamente em mesas telefônicas. Programar um computador analógico era questão de conectar e desconectar fios. Ao conceber diversas combinações de circuitos, um programador simula sistemas de equações de modo a fazê-los adaptar-se perfeitamente a problemas de engenharia. Digamos que alguém queira projetar uma suspensão de automóvel capaz de proporcionar a viagem mais suave possível. Um condensador substitui a mola, indutores representam a massa e assim por diante. Obtém-se um modelo feito de metal e elétrons, bastante rápido e – o que é melhor – facilmente ajustável . Simplesmente girando-se botões, pode-se tornar as molas mais fortes ou a fricção mais fraca. E podem-se observar os resultados sob a forma de um osciloscópio.
Um belo dia, um amigo astrofísico, William Burke, entregou a Shaw uma folha de papel com três equações rabiscadas e pediu-lhe que as colocasse em seu computador. As equações pareciam simples. Edward Lorenz as havia escolhido como um método despojado para calcular um processo conhecido em Meteorologia, os movimentos ascendentes e descendentes do ar ou da água, chamado convecção. Shaw levou apenas poucas horas para conectar os fios adequados e ajustar os botões. Alguns minutos mais tarde, ele viu aparecer na tela um padrão peculiar, cambiante e infinitamente complicado — e soube então que nunca terminaria sua tese sobre supercondutividade.
A tela de Shaw proporcionava uma maneira de criar diagramas abstratos de comportamento dinâmico de longo prazo de qualquer sistema físico — uma bolinha de gude imóvel no fundo de um buraco, um relógio de pêndulo balançando monotonamente ou o tumulto imprevisível do tempo na Terra. Para a bolinha de gude em repouso, o diagrama seria simplesmente um ponto. Para um sistema periodicamente cíclico como o relógio de pêndulo, o diagrama teria a forma de uma lançada. Para o sistema enganadoramente simples das três equações da convecção, o diagrama era algo completamente diferente. Esse sistema de fluidos ascendentes e descendentes comportava-se caoticamente como a própria atmosfera, um sistema muito mais complicado, embora relacionado a ele. Um sistema caótico nunca se repete de uma maneira periódica e o diagrama que Shaw começava a estudar nunca girava em torno de si do mesmo modo.
Em vez disso, tinha uma forma intricada e recorrente, uma espécie de dupla espiral, enrolando-se primeiro numa direção, depois em outra. Shaw sabia que Edward Lorenz, do MIT (Massachusetts Institute of Technology), havia descoberto esse tipo de padrão em 1963. Lorenz reconheceu sua importância quando tentava fazer previsões do tempo no computador. Mas a natureza caótica do atrator significa que previsões de longo prazo seriam impossíveis.
Ao mesmo tempo, o estranho atrator revelava padrões inesperados. Era sinônimo de desordem e imprevisibilidade mas, ainda assim, significava um novo tipo de ordem no tumulto. Dois cientistas franceses, David Roelle e Floris Takens, mais tarde dariam a esses padrões seu nome provocativo: estranhos atratores. Shaw conhecia a nova linguagem da geometria fractal. No entanto, muito tempo havia passado antes que ele, assim como outros envolvidos em trabalhos do mesmo gênero, reconhecesse que a forma diante de seus olhos era um fractal, o que significa que revelava novas complexidades em escalas cada vez menores.
Assim, ele passou várias noites no laboratório observando o ponto verde do osciloscópio percorrendo a tela, traçando sem parar seu roteiro caótico e nunca exatamente no mesmo modo. O percurso da forma permaneceu na retina, oscilante e vibrante, diferente de qualquer objeto que Shaw conhecera em suas pesquisas. Parecia ter vida própria. Prendia a mente como uma chama que se move em padrões que nunca se repetem. Em criança, Shaw tinha tido ilusões a respeito do que seria a ciência – uma disparada romântica ao desconhecido. Isso, finalmente, era alguma coisa à altura de suas ilusões. E ele estava atraindo atenções. Ocorre que a entrada do Departamento de Física era bem do outro lado do corredor e muita gente passava por ali.
Um dos que começaram a aparecer por lá foi Ralph Abraham, professor de Matemática. “Tudo o que tem a fazer é colocar suas mãos nesses botões e, de repente, estará explorando esse novo mundo no qual você é um dos primeiros viajantes e nem vai querer subir para tomar um pouco de ar”, diz Abraham. “Shaw teve a experiência espontânea em que apenas um pouco de exploração revela todos os segredos”. Logo Shaw começou a ter colegas. Doyne Farmer, natural do Novo México, alto, magro, cabelos cor de areia, tornou-se o porta -voz mais articulado do grupo que veio a se autodenominar Coletivo dos Sistemas Dinâmicos (outros, às vezes, chamavam-no Os Conspiradores do Caos).
Em 1977, Doyne tinha 24 anos, era todo energia e entusiasmo, uma máquina de idéias. O membro mais jovem do grupo era James Crutchfield, pequeno e atarracado, um estilista do windsurf e, o que era mais importante para o coletivo, um mestre nato em computação. Norman Packard, amigo de infância de Farmer, criado na mesma cidade de Silver City, no Novo México, chegara a Santa Cruz naquele outono, bem quando Farmer começava um ano de licença, disposto a dedicar toda sua energia ao plano de aplicar as leis do movimento ao jogo da roleta
O empreendimento da roleta era tão sério quanto forçado. Durante mais de uma década Farmer e Packard, junto com um grupo mutável de colegas físicos e alguns curiosos adotaram-no. Eles calcularam inclinações e trajetórias, escreveram e reescreveram programas, adaptaram computadores especiais nos sapatos e fizeram nervosas incursões a cassinos. Deve ser dito que o projeto proporcionou um treinamento incomum em análises rápidas de sistemas dinâmicos, mas fez pouco para tranqüilizar os professores de física de Santa Cruz. Tampouco eles entenderam por que Shaw abandonara sua tese sobre supercondutividade.
Por mais que estivesse entediado, raciocinavam, ele sempre poderia passar correndo pelas formalidades, acabar seu doutorado e entrar no mundo real. Quanto ao caos, havia questões de adequação acadêmica. Ninguém em Santa Cruz estava qualificado para supervisionar um curso neste campo-sem nome. E certamente não havia empregos para graduados com este tipo de especialidade. Mesmo assim, o coletivo tomou forma. Quando alguns equipamentos eletrônicos começaram a desaparecer de noite, tornou-se aconselhável procurá-los no antigo laboratório de Shaw, de Física de baixas temperaturas. Tracejadores de gráficos, conversores e filtros eletrônicos começaram a se acumular. Um grupo de físicos de partículas que trabalhava no mesmo corredor tinha um pequeno computador digital destinado ao ferro-velho. Foi parar no laboratório de Shaw.
A atabalhoada sensibilidade do grupo ajudava muito. Shaw tinha crescido brincando com engenhocas eletrônicas. Packard consertava aparelhos de TV. Crutchfield pertencia à primeira geração de matemáticos que considerava a lógica dos computadores uma linguagem natural. O prédio de Física em si era como o de qualquer lugar, com pisos de cimento e paredes sempre pedindo uma nova demão de pintura, mas a sala ocupada pelo grupo do caos criou sua própria atmosfera, com pilhas de escritos, fotografias de nativos do Taiti nas paredes e, como não poderia deixar de ser, impressos de computadores de estranhos atratores.
Praticamente a qualquer hora um visitante podia ver membros do grupo reorganizando circuitos, arrancando fios remendados, discutindo sobre consciência ou evolução, ajustando o painel de um osciloscópio, ou apenas observando um brilhante ponto verde traçar uma curva de luz, sua órbita vibrando e agitada como algo vivo. A educação tradicional na dinâmica dos sistemas físicos nunca revelara o potencial de tal complexidade porque se concentrava em sistemas lineares. Um sistema linear obedece às leis da proporção – quanto mais depressa se vai, mais longe se chega. A linearidade torna os cálculos fáceis ou, ao menos, manejáveis. Infelizmente, a maioria dos sistemas do mundo real não é linear.
Eles contêm uma certa torção, como a fricção, que não varia puramente como uma função de outras variáveis. A não-linearidade exigia cálculos mais difíceis. Era a mosca na sopa previsível da Mecânica clássica. Poucos consideraram a não-linearidade uma força criativa; mas foi a não-linearidade que criou os padrões misteriosamente belos dos estranhos atratores. “Não-linear era uma palavra que você só encontrava no final do livro”, diz Farmer. “Um estudante de Física fazia um curso de Matemática e o último capítulo tratava de equações não-lineares. Geralmente essa parte era deixada de lado.” Shaw e seus colegas tiveram de canalizar seu entusiasmo natural para um programa científico. Eles precisavam fazer perguntas que pudessem ser respondidas e que valessem a pena ser respondidas. Eles buscaram meios de interligar teoria e pesquisa – aí, pensavam, estava o vazio a ser preenchido. Antes mesmo de começar, foram obrigados a aprender o que era sabido e o que não era, e isso em si foi um desafio formidável.
Eles não tinham noção disso, mas seus problemas simbolizavam as barreiras que os pioneiros em caos enfrentavam nas mais diversas instituições – um punhado de pesquisadores, normalmente trabalhando por conta própria, receosos de discutir suas idéias não ortodoxas com os colegas. Os estudantes de Santa Cruz eram impedidos pela tendência de avançar aos poucos em ciência, particularmente quando um novo tema se atravessava em subdisciplinas estabelecidas. Freqüentemente, eles não tinham idéia se estavam em território novo ou conhecido e, na verdade, parte de seu trabalho seguia paralelo a descobertas feitas por matemáticos soviéticos. Logo perceberam que muitos tipos de questões poderiam ser levantados sobre os possíveis comportamentos de sistemas físicos simples e os estranhos atratores que eles produziam. Quais as suas formas características? O que a Geometria revelava sobre a física dos sistemas físicos correlatos? Um físico sempre quer calcular medidas. O que havia para ser medido nessas fantasmagóricas imagens em movimento?
Shaw e os outros tentaram isolar as qualidades especiais que tornavam os estranhos atratores tão encantadores. A imprevisibilidade era uma delas — mas onde encontrar os calibres para medir tal qualidade? A essa altura, o coletivo reunia-se com freqüência em um velho casarão não longe da praia. Nele se amontoavam móveis de segunda mão e equipamentos de computador destinados ao problema da roleta e à pesquisa dos estranhos atratores. Convivendo com esses estranhos atratores dia e noite, os jovens físicos começaram a reconhecê-los (ou a pensar que o faziam) nos fenômenos que sacudiam, batiam e oscilavam na vida cotidiana. Eles tinham de jogar esse jogo. Perguntavam-se: onde fica o mais próximo estranho atrator? Estaria no pára-choque barulhento do carro? Na bandeira tremulando a esmo na brisa? Numa folha que flutuava? “Você não enxerga algo até descobrir a metáfora correta que lhe faz percebê-lo”, diz Shaw. Não tardou que seu amigo astrofísico Burke ficasse perfeitamente convencido de que o velocímetro de seu carro oscilava do modo não-linear típico do estranho atrator.
Shaw, ocupando-se de um projeto experimental que iria mantê-lo entretido por anos, adotou um sistema dinâmico tão caseiro quanto algum físico pudesse imaginar: uma torneira pingando. Como gerador de organização, uma torneira pingando oferece pouco para se trabalhar. Mas, para um investigador iniciante do caos, a torneira pingando provou ter certas vantagens. Todo mundo tem dela uma imagem mental. O fluxo de dados é o mais unidimensional possível: uma batida ritmada de pontos isolados mensuráveis no tempo. Nenhuma dessas qualidades poderia ser encontrada em sistemas que o grupo de Santa Cruz iria explorar mais tarde – o sistema imunológico humano, por exemplo, ou o perturbador efeito da interação de feixes que prejudicava inexplicavelmente o desempenho de partículas em colisão do Acelerador Linear de Stanford, ao norte de Santa Cruz.
Na torneira pingando, tudo que existe é a solitária linha de dados. E não é nem uma variação contínua de velocidade ou temperatura – apenas uma lista dos tempos de gotejamento. Os pingos podem ser regulares. Ou, como qualquer um descobre ao ajustar uma torneira, podem tornar-se irregulares e aparentemente imprevisíveis. Solicitado a organizar um ataque a um sistema como esse, um físico tradicional começaria por montar um modelo físico o mais completo possível. Os processos que norteiam a formação e a ruptura das gotas são compreensíveis, ainda que não sejam tão simples como possam parecer. Uma variável importante é o ritmo do fluxo. (Este deve ser lento, comparado à maioria dos sistemas hidrodinâmicos. Normalmente, Shaw observava o ritmo de uma a dez gotas por segundo.) Outras variáveis incluem a viscosidade do fluxo e a tensão de superfície.
Uma gota de água pendendo de uma torneira, à espera do momento de se romper, assume uma forma tridimensional complicada e apenas o cálculo dessa forma era, como diz Shaw, “o estado de arte em matéria de cálculo por computador”. Uma gota enchendo-se de água é como um pequeno saco elástico de tensão superficial, oscilando para lá e para cá, aumentando a massa e expandindo as paredes até a ruptura.
Um físico que tentasse construir um modelo completo do problema da gota, formulando um conjunto de equações para depois tentar resolvê-las, acabaria no mato sem cachorro. Uma alternativa seria esquecer a Física e observar apenas os dados, como se estivessem saindo de uma caixa-preta. Dada uma lista de números representando intervalos entre as gotas, será que um especialista em dinâmica caótica encontraria algo útil para dizer? Na verdade, como foi comprovado mais tarde, podem-se conceber métodos para organizar esses dados dentro da Física e esses métodos se mostraram decisivos no que diz respeito à aplicação do caos a problemas do mundo real. Shaw começou a meio caminho entre esses dois extremos, fazendo uma espécie de caricatura de um modelo físico completo. Ele fez um resumo rudimentar da Física das gotas, imaginando um peso que pendesse de uma mola. O peso aumenta constantemente. A mola estica e o peso desce cada vez mais. A certa altura, uma porção do peso se rompe. A quantidade que se desprendesse, Shaw supôs arbitrariamente, dependeria apenas da velocidade da queda do peso descendente quando atingisse o ponto de ruptura.
Então, naturalmente, o peso restante voltaria para a posição anterior, como fazem as molas, com oscilações que estudantes aprendem a delinear usando equações normais. A característica interessante do modelo – a única característica interessante – era a torção não-linear que possibilita o comportamento caótico. O tempo preciso de uma gota dependia do ritmo do fluxo, é claro, mas dependia também de como a elasticidade desse saco de tensão superficial interagia com o peso que aumentava constantemente. Se uma gota iniciasse sua vida já em queda, ela se romperia mais cedo. Se acaso se formasse quando sua superfície inferior estivesse subindo, poderia encher-se com um pouco mais de água antes de romper-se.
Será que o modelo de Shaw geraria tanta complexidade como uma torneira de verdade? E essa complexidade seria da mesma espécie? Shaw instalou-se em um laboratório no prédio de Física, com uma grande tina de plástico de água sobre a cabeça. Quando uma gota caía, interrompia um feixe de luz e na sala ao lado um microcomputador marcava o tempo. Enquanto isso, Shaw fazia suas equações e operava o computador analógico, produzindo uma torrente de dados imaginários, muito parecidos às gotas da torneira real. Mas, para ir além, Shaw necessitava de um modo de colher dados puros de qualquer experiência e trabalhar com equações e estranhos atratores que pudessem revelar padrões ocultos.
Com um sistema mais complicado,uma variável poderia ser graficamente relacionada a outra, correlacionando mudanças na temperatura ou na velocidade com o passar do tempo. Mas a torneira pingando proporcionava apenas uma série de tempos. Shaw tentou, então, uma técnica desenvolvida pelo grupo de Santa Cruz, que foi talvez sua contribuição prática mais esperta e duradoura ao progresso do caos – um método de reconstruir um estranho atrator invisível que poderia ser aplicado a qualquer série de dados. Para os dados da torneira pingando, Shaw construiu um gráfico no qual o eixo horizontal representava um intervalo de tempo entre duas gotas e o eixo vertical representava o intervalo de tempo entre as duas seguintes.
Se entre a gota número um e a gota número dois decorressem 150 milésimos de segundo, e depois 150 milésimos de segundo decorressem entre a gota número dois e a gota número três, ele marcava um ponto na posição 150-150. Era tudo que havia a fazer. Se o gotejamento fosse regular, o gráfico seria apropriadamente inerte. Cada ponto cairia no mesmo lugar. O gráfico seria um simples ponto. Ou quase – na verdade, a primeira diferença entre a torneira pingando no computador e a torneira real era que esta estava sujeita a distúrbios, ou “ruído”, sendo extremamente sensível. Shaw acabou fazendo a maior parte de seu trabalho à noite, quando o tráfego de pessoas no corredor era mínimo. O barulho significava que, em vez do simples ponto previsto pela teoria, ele veria uma mancha ligeiramente indistinta.
A medida que o fluxo aumentasse, o sistema passaria por uma mudança repentina nas suas características. Então as gotas cairiam em pares repetidos.Um intervalo poderia ser de 150 milésimos de segundo e o próximo, de 80. Assim, o gráfico mostraria duas manchas indistintas, uma centrada em 150-80 e outra em 80-150 e assim por diante. O verdadeiro teste ocorreu no momento em que o padrão se tornou caótico, quando o ritmo do fluxo foi novamente modificado. Se fosse mesmo fortuito, haveria pontos dispersos por todo o gráfico. Mas, se um estranho atrator estivesse oculto nos dados, poderia se revelar como um padrão vago mas perceptível.
Muitas vezes acontecia serem necessárias três dimensões para se ver a estrutura; mas isso não era problema. Em vez de assinalar cada intervalo em relação ao próximo, os cientistas assinalavam cada intervalo em relação a cada um dos dois subseqüentes. Era um truque, um artifício. Normalmente, um gráfico tridimensional requer o conhecimento de três variáveis independentes em um sistema. O truque possibilitava três variáveis pelo preço de uma. Refletiu a crença desses cientistas de que a ordem está tão profundamente contida na aparente desordem que encontraria um modo de se expressar, mesmo a pesquisadores que não soubessem quais variáveis físicas medir.
No caso da torneira de Shaw, as imagens ilustram o fato. Em três dimensões, sobretudo, os padrões apareciam como rastros de fumaça saindo de um avião, desses que escrevem no céu, descontrolado. Shaw poderia combinar sinais gráficos dos dados experimentais com os dados produzidos pelo modelo computadorizado, sendo a principal diferença o fato de os dados reais aparecerem sempre mais indistintos, manchados pelo ruído. Mas a estrutura era inconfundível. A medida que os meses passavam, a transição de rebeldes para físicos era lenta. De vez em quando, sentados em um café ou trabalhando em seu laboratório, um ou outro estudante tinha de conter o espanto que sua fantasia científica ainda não tinha eliminado. “Meu Deus, ainda estamos fazendo isso e ainda faz sentido”, dizia Crutchfield. “Ainda estamos aqui: Até onde isso irá?”
A maioria dos professores de Física viu-se numa posição difícil. “Não tínhamos orientador, ninguém para nos dizer o que fazer”, diz Shaw. “Durante anos ficamos numa situação à parte e isso persiste até hoje. Nunca tivemos recursos financeiros em Santa Cruz. Cada um de nós trabalhou períodos consideráveis sem receber nada e o tempo todo era uma operação de fundo de quintal, sem orientação intelectual ou de qualquer outro tipo.” Cada membro do coletivo era chamado de lado de tempos em tempos para conversas francas. Eles eram advertidos de que, mesmo se de alguma forma fosse encontrada uma maneira de justificar um doutorado, ninguém seria capaz de ajudar os estudantes a conseguir um emprego em um campo inexistente.
Isso podia ser uma moda passageira, diziam os professores, e depois como é que vocês vão ficar? Na verdade, fora do abrigo de sequóias nas colinas de Santa Cruz, o caos estava criando seu próprio estabelecimento científico e o Coletivo dos Sistemas Dinâmicos deveria se juntar a ele. O ponto de inflexão foi uma aparição surpresa em um encontro sobre Física de matéria condensada realizado em Laguna Beach em 1978. O coletivo não fora convidado, mas apareceu assim mesmo, amontoando-se na caminhonete Ford 1959 de Shaw, apelidada por eles “Sonho Cremoso”. Por via das dúvidas, o grupo levou equipamentos, incluindo um enorme monitor de TV e um videoteipe. Quando um orador convidado cancelou sua presença à última hora, Shaw avançou e tomou seu lugar.
A ocasião foi perfeita. O caos já ostentava a fama de ser mencionado a meia voz, mas poucos dos físicos presentes à conferência sabiam do que se tratava. Shaw começou então explicando os diferentes tipos de atratores, dos comuns aos estranhos; a princípio, os estados inertes (quando tudo fica imóvel); depois, ciclos periódicos (quando tudo oscila); e, por fim, estranhos atratores caóticos (o restante). Ele demonstrou sua teoria com gráficos computadorizados em videoteipe. (“Os meios audiovisuais nos deram uma vantagem”, diz Shaw. “Podíamos hipnotizá-los com flashes de luz.”) Ele ilustrou o atrator de Lorenz e a torneira que pinga. A palestra foi um triunfo popular e vários professores de Santa Cruz estavam no auditório, vendo o caos pela primeira vez através dos olhos de seus colegas.
Mas o coletivo não podia durar para sempre. Quanto mais se aproximava do mundo real da ciência, mais perto da separação se encontrava. Seus membros começaram a pensar no futuro individual e passaram a colaborar com físicos e matemáticos estabelecidos em outros lugares. Tendo aprendido a procurar estranhos atratores em bandeiras tremulantes e em velocímetros defeituosos, os cientistas fizeram questão de detectar os sintomas do caos em toda a Física atual. Peculiaridades outrora desprezadas como ruído – flutuações surpreendentes, regularidades misturadas a irregularidades – eram explicadas agora nos termos da nova ciência. Tais efeitos pipocaram de repente em escritos a respeito de tudo, desde lasers até circuitos eletrônicos.
Quando o coletivo se dissolveu – seus membros se dirigindo às mais importantes instituições de Física, do Laboratório Nacional de Los Álamos ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton e à Universidade da Califórnia em Berkeley -, alguns professores de Santa Cruz também já haviam aderido ao caos. Eles estavam se associando a um movimento: químicos, ecologistas, economistas, climatologistas tentam atualmente reconstruir estranhos atratores a partir de dados brutos, assim como Shaw fizera em seus estudos com a torneira gotejante.
Especialistas em finanças usam as técnicas desenvolvidas pelo grupo de Santa Cruz para analisar décadas de cotações diárias de bolsas de valores,buscando padrões que acreditam existir ali. Muitos fisiólogos acreditam agora que o caos proporciona um modo de prever – e talvez de tratar – ritmos irregulares no processo que governa a vida, desde a respiração até os batimentos cardíacos e até a função do cérebro. No MIT, médicos comparam eletrocardiogramas humanos com dados de um modelo de computador de contrações cardíacas caóticas, numa tentativa de prever com bastante antecedência quando o órgão sofrerá um espasmo fatal.
Ecologistas usam a Matemática do caos para descobrir como, na ausência de mudanças ambientais fortuitas, populações de espécies podem crescer ou diminuir desordenadamente por conta própria. Packard estuda a tendência de processos caóticos de criar padrões complexos em fenômenos como flocos de neve, cuja forma delicada incorpora uma mistura de estabilidade e instabilidade que só agora começa a ser compreendida. Ele e Farmer utilizam a Física dos sistemas dinâmicos para estudar o sistema imunológico humano, com seus bilhões de componentes e sua capacidade de aprender, memorizar e reconhecer padrões. Para esses cientistas e seus colegas, o caos tornou-se um conjunto de instrumentos capaz de elucidar fatos aparentemente casuais.
Mas é também uma série de atitudes em relação à complexidade — uma nova maneira de ver. Eles sentem que estão revertendo uma tendência científica de analisar sistemas em termos de suas partes constituintes — quarks, cromossomos ou nêutrons. “A tendência científica, particularmente em Física, tem sido pelo reducionismo, uma constante fragmentação das coisas em minúsculos pedacinhos”, diz Farmer. “O que as pessoas estão finalmente percebendo é que esse processo é um beco sem saída. Os cientistas estão muito mais interessados na idéia de que o todo pode ser maior que a soma da partes.”