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Eugenia não é coisa do passado

A busca pela “raça pura” não é só coisa de nazista: foi um fenômeno mundial. E o seu fantasma ainda ronda a sociedade.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 dez 2019, 19h15 - Publicado em 26 fev 2019, 14h17

Algo cheirava mal na Inglaterra da rainha Vitória. Após três surtos de cólera e um episódio de calor intenso no verão de 1858, batizado de Grande Fedor (em maiúsculas, mesmo), despejar todo o cocô de Londres no Rio Tâmisa não parecia mais uma boa ideia.

Saneamento básico e saúde pública eram tão discutidos no fim do século 19 quanto a corrupção em Brasília é hoje. A Revolução Industrial havia criado uma pobreza inédita, diferente da do camponês que plantava por subsistência. Operários da indústria têxtil e da construção naval se empilhavam em cortiços, sem acesso a água tratada. Frequentavam pubs e bordéis, eram desnutridos, alcoólatras e tinham filhos – muitos filhos.

Francis Galton, rico herdeiro de uma família tradicional, viu na periferia de Londres um problema darwinista. Ao pé da letra: ele era primo de Charles Darwin, e havia lido (ou melhor, devorado) a Origem das Espécies logo após o lançamento, em 1859.

O que Darwin afirmou, grosso modo, foi o seguinte: filhotes de uma ninhada nascem com diferenças sutis. Os que forem mais aptos  – graças a dentes afiados, tímpanos aguçados ou músculos de contração mais rápida – conseguem mais água, alimento e sexo. Assim, eles têm mais filhotes, e seus traços hereditários vantajosos prevalecem na população. Evolução por seleção natural.

Galton pôs a humanidade numa planilha de Excel. E queria deletar as colunas incômodas.

Darwin não menciona o ser humano uma única vez no livro; mesmo assim, acendeu uma lâmpada na cabeça de Galton. Ele não só notou que a sobrevivência dos bem adaptados se aplicava ao Homo sapiens como concluiu que só havia um jeito de salvar a “raça europeia”: acelerar artificialmente, (por decreto, até) a atuação da seleção natural.

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Para Galton, era necessário desestimular o coito entre humanos que a elite econômica via como vira-latas e incentivar os humanos de raça, com pedigree. Empreender um aperfeiçoamento autodirigido, para o bem do próprio povo. Em 1883, Galton deu à estratégia um nome: eugenia. Vem do grego: eu significa “bom”, gene significa “linhagem”, “raça”, “parentesco”.

Francis Galton e Charles Devenport: promotores da eugenia no Reino Unido e nos EUA (Marcel Lisboa/Superinteressante)

“Estamos muito necessitados de uma palavra breve para a ciência de melhorar a estirpe”, afirmou Galton. “Para dar às raças ou linhagens de sangue mais adequado   uma chance melhor de prevalecer depressa sobre as menos adequadas.”

Para Galton, a tendência à miséria, ao vício e à doença era tão hereditária quanto a altura ou a cor dos cabelos. Se os filhos dos inaptos já iam morrer pela mão cruel da seleção natural, era melhor que não nascessem: “O que a natureza faz às cegas (…) o homem pode fazer com previdência, rapidez e bondade”.

“Idiota” e “imbecil” não eram xingamentos: eram categorias científicas.

Ele se tornou uma máquina de coleta de dados. Tirava as medidas corporais de famílias inteiras em busca de uma explicação para o fenômeno da hereditariedade (lembre-se: a genética de Mendel ainda estava escondida na gaveta). Em 1877, numa espécie de Minority Report do século 19,  ele esquadrinhou os rostos de condenados tentando atribuir um tipo de crime a cada fisionomia. Galton queria transformar a humanidade em uma imensa planilha de Excel. E deletar as colunas incômodas.

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Essas ideias foram recebidas como a vanguarda da ciência. No início do século 20, Londres sediaria o primeiro congresso internacional de eugenia. A Inglaterra não chegou a colocar em prática as ideias de Galton.  Dezenas de outras nações, porém, as abraçaram. A mais dedicada delas, nas primeiras décadas, não foi a Alemanha – e sim os EUA.

Eugenia ianque

Em 1907, o Estado de Indiana adotou a primeira lei de esterilização compulsória do mundo. Entre 1907 e a década de 1960, mais de 64 mil americanos considerados “inaptos” evolutivamente foram castrados com anuência das autoridades. Eram alcoólatras, esquizofrênicos,  epiléticos, criminosos, prostitutas… Essa modalidade de eugenia era chamada de negativa. Um relatório sobre o resultado da prática na Califórnia – recordista de esterilização entre os 32 Estados que a adotaram – serviu de inspiração para os oficiais nazistas que implantaram a prática do outro lado do Atlântico.

Também havia a eugenia positiva: incentivar a reprodução dos aptos. Tornaram-se comuns as Fitter Family Fairs (“feiras de famílias mais aptas”, em português), em que casais com genes supostamente bons eram exibidos em pódios e ganhavam medalhas.

Um dos símbolos da eugenia americana foi Charles Davenport, mandachuva do Eugenics Record Office (ERO)  – o centro de pesquisa em Cold Spring Harbour, Nova York, que encabeçou os esforços de higienização genética. Ele era contra casamentos interraciais (comentaremos a relação da eugenia com o racismo nos próximos parágrafos) e via a entrada de imigrantes do sul da Europa e da Ásia como um risco à boa estirpe americana.

(Marcel Lisboa/Superinteressante)

Davenport, de bobo, não tinha nada. Aplicando a lógica de transmissão de características hereditárias descoberta por Mendel em seus experimentos com ervilhas, identificou corretamente que a doença de Huntington era um traço dominante, e o albinismo, recessivo. O problema é que ele extrapolava a lógica: começou a inventar genes para tudo – até um das famílias de construtores de barcos.  Não havia espaço para o óbvio: que um filho tende a seguir o ofício do pai. Tudo era herdado.

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No porto de Ellis Island, também em Nova York, imigrantes recém-chegados da Itália, da Grécia e dos países do bloco comunista eram submetidos a testes de QI. “O propósito de aplicar a escala de medição mental em Ellis Island é peneirar os imigrantes que podem (…) se tornar um fardo para o Estado ou produzir prole que vai requerer vagas em prisões ou asilos”, afirmou em 1915 o médico Howard Knox. Xingamentos como “idiota” e “imbecil” eram termos técnicos, aplicados na classificação de pessoas em relatórios oficiais.

Racismo científico

Embora hoje eugenia seja associada a racismo no imaginário popular, Galton e Davenport não tinham nada a ver com os escravocratas retrógrados do sul dos EUA, associados à Ku Klux Klan. Foi um tipo de racismo diferente que pegou o bonde da eugenia. Se era possível isolar (e eliminar) os indesejáveis dentre os membros de uma raça, por que não seria possível hierarquizar as próprias raças? Pior: por que não fazer isso à maneira Excel, comparando narizes, testas e o volume de cérebros e crânios de negros, brancos e índios?

No livro A Falsa Medida do Homem, publicado em 1980, o biólogo Stephen Jay Gould, de Harvard, cita o caso de Robert Bean – um médico que em 1906 publicou um longo artigo comparando as medidas de várias partes dos cérebros de negros e brancos. Uma das áreas analisadas foi o corpo caloso – que conecta o hemisfério direito ao esquerdo. O corpo caloso é divido em dois trechos, o joelho e o esplênio, e Bean havia percebido algo, em sua opinião, fantástico: o joelho e o esplênio de negros eram muito menores que os dos brancos  [veja o gráfico à esquerda].

A diversidade humana é um degradê sutil. É impossível dividi-la em caixinhas.

Era racista demais para ser verdade. Tanto que Franklin Mall, o orientador de Bean na Universidade Johns Hopkins, suspeitou. Ele refez o estudo – dessa vez, medindo 106 cérebros sem saber, de antemão, a etnia dos indivíduos a que pertenciam. Resultado? Seu gráficos saíram neutros. O desejo de comprovar teses pré-concebidas era tão grande que pesquisadores manipulavam os próprios dados inconscientemente.

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No Brasil, eugenia e racismo andaram de mãos dadas – o ranço aparece disfarçado até hoje: “Meu neto é um cara bonito, viu? Branqueamento da raça”, disse o vice-presidente Hamilton Mourão em outubro de 2018.

Quem concordaria é Renato Kehl – o farmacêutico que, lá na década de 1920, liderou os esforços de limpeza genética no Brasil: “A nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano”. Kehl se tornou o bode expiatório dos livros didáticos, mas não trabalhou sozinho: muito sujeito que hoje é nome de rua participou.

“Vital Brazil foi membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, assim como Arnaldo Vieirade Carvalho – o da Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, fundador da Faculdade de Medicina da USP”, diz a historiadora Pietra Diwan, autora do livro Raça Pura. Monteiro Lobato e Roquette-Pinto, também.

Ou seja: a eugenia foi uma invenção inglesa, aperfeiçoada nos EUA e disseminada por todo o Ocidente no entreguerras. O Holocausto foi só sua manifestação mais conhecida, mas todas as atrocidades ordenadas por Hitler (e rechaçadas pelos Aliados após a 2ª Guerra Mundial) tiveram precursores entre os próprios Aliados. A descoberta dos campos de concentração desencadeou um surto de peso na consciência que culminou com a publicação, em 1950, de um documento da Unesco intitulado A Questão da Raça. A ciência pedia desculpas, e a palavra eugenia virava tabu.

O presente

A mesma genética que justificou a eugenia hoje dá armas para combatê-la. Para começo de conversa, a maioria esmagadora das nossas características é determinada por dezenas de genes, que interagem entre si e com o ambiente numa complicada dança bioquímica. Se na década de 1920 parecia óbvio que há um gene para famílias construtoras de barcos, hoje a única certeza é que não há muitas certezas.

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“Os geneticistas não veem preto e branco, mas tons de cinza”, explica o geneticista Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD). Muotri lida diariamente com esses tons: seu laboratório busca tratamentos para formas graves de autismo – enquanto representantes da parte mais leve do espectro reivindicam que o autismo é só parte de sua personalidade, e não uma doença.

“Isso acontece em outros casos – como o dos surdos nos EUA”, diz Muotri. “Alguns se recusam a ser rotulados como deficientes, e preferem passar a vida sem auxílio médico. Outros surdos optam por tratamentos para voltar a escutar. É preciso respeitar a opinião de cada um.”

(Marcel Lisboa/Superinteressante)

A ideia de raça, por sua vez, simplesmente não tem validade biológica. Um estudo da Universidade Stanford  analisou 1.056 indivíduos de 52 grupos étnicos distantes entre si geograficamente. A ideia era verificar se uma quantidade razoável de genes podia ser encontrada na população de um lugar, mas não de outro – o que evidenciaria a existência de raças.

Algo entre 93% e 95% da variação genética foi verificada entre indivíduos do mesmo grupo. As diferenças entre grupos foram irrisórias – entre 3% e 5%. 47% dos genes analisados apareciam em populações dos cinco continentes. Moral da história: a diversidade humana é um degradê sutil; é impossível dividi-la em caixinhas. A ideia de raça é só uma forma de dar ares científicos ao preconceito.

O futuro

DNA é algo mais revelador que um prontuário médico. Logo, será possível julgar alguém com base nele com a mesma naturalidade com que imigrantes eram julgados por QI em Ellis Island.

“No futuro, todos teremos nosso genoma sequenciado. É inevitável”, diz Muotri. “Por um lado, essa informação vai nos ajudar a prevenir e tratar doenças com mais eficiência [como já se faz com o gene BRCA1, associado ao câncer de mama]. Por outro, seu uso pelos planos de saúde deve ser controlado. Cobrar mensalidades de acordo com a susceptibilidade a doenças não só é possível como já acontece, quando se cobra mais caro de um idoso que de um jovem.”

Empresas como a 23andMe, que oferecem testes de ancestralidade (ainda bastante imprecisos), armazenam as informações do DNA de seus clientes em bancos de dados. Eles passam longe de fazer um sequenciamento completo: leem apenas trechos. Mas mesmo esses trechos são uma arma poderosa. “A 23andMe usa suas bases de dados para conduzir pesquisa numa velocidade que o financiamento governamental não permite. Por exemplo: eles descobriram um gene associado à doença de Parkinson em seis meses”, diz a geneticista Ricki Lewis, do Albany Medical College.

Ter o DNA de todo mundo sequenciado abre caminho, é claro, para editá-lo. E é aí que mora o problema: embora ninguém discorde que buscar a cura para o Parkinson ou Alzheimer seja algo bom, é preciso ter em mente que isso abre brechas perigosas.

Conforme os cientistas elucidarem o quebra-cabeça da interação entre os genes, aperfeiçoamentos cada vez mais complexos se tornarão realidade. Tudo indica que será possível “ajustar” a altura, a cor dos olhos ou até a inteligência – mas com um detalhe, claro: para quem puder pagar. A desigualdade econômica, assim, será também uma desigualdade genética. Uma distopia eugênica, com a criação de uma “casta superior”. É por isso que só há um jeito ético da ciência avançar: pensando nas consequências e na democratização de seus avanços. A genética tem muito a aprender com seu passado sombrio.

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