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História

Mengele: as três vidas do anjo da morte

O mais cruel dos médicos nazistas, um dos fugitivos mais procurados do mundo, um esqueleto transformado em material didático

por Maurício Horta Atualizado em 26 Maio 2020, 16h04 - Publicado em 3 dez 2018 19h04

O monstro

Quando criança, Josef queria ser um cientista famoso. Já formado em medicina, viu em Auschwitz a oportunidade para realizar seu sonho – usando humanos como cobaias.

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(Super/Superinteressante)

“Rechts”, “links”, dizia o médico de 33 anos, estatura mediana, olhos e cabelos castanhos, e os incisivos superiores notavelmente separados. No uniforme da SS, uma Cruz de Aço: ele era o único médico do complexo de Auschwitz com condecoração de guerra. A cada preso que saía do trem, o rapaz apontava para uma ou outra direção com uma bengala – acabara de quebrar a bacia num acidente de moto no campo de concentração, em junho de 1943. “Rechts”: e seguiam para a fila da direita os judeus capazes para o trabalho escravo. “Links”: e seguiam para a esquerda os “incapazes”, a caminho de Birkenau, rumo às câmaras de gás. Mas dr. Josef Mengele buscava ainda um terceiro grupo: cobaias humanas, sobretudo irmãos gêmeos. Para o médico, que mal tinha se formado antes de ir para o front, Auschwitz não era apenas um trabalho. Era o trampolim para a fama. 

“Josef me falou que um dia eu ainda leria seu nome na enciclopédia”, disse o ex-colega de escola Julius Diesbach, numa entrevista de 1980. Não que lhe faltasse pedigree. Até hoje, a cidadezinha bávara de Günzburg, onde nasceu em 1911, ostenta uma rua Mengele. A homenagem não se refere a Josef, mas a seu pai, Karl, dono da terceira maior indústria de equipamentos agrícolas da Alemanha. Os negócios do pai não atraíam o primogênito. Josef queria ser conhecido por algo mais grandioso. Decidiu tornar-se o primeiro cientista da família Mengele e virou médico.

Josef estava na hora errada no lugar mais errado da história: foi estudar na Universidade de Munique em 1930. A cidade era notória por sediar o partido nazista, e por servir de palanque para um certo ex-soldado austríaco, que tinha planos de exterminar judeus e de dominar o mundo. Hitler. Naquele ano, uma crise econômica agravava a polarização política, de forma que o partido nazista já era o segundo no Parlamento alemão. Além de Munique, poucas universidades eram tão abertas para a ascensão dos nazistas, que confundiam antropologia com genética, e genética com eugenia.

Durante os estudos, um dos professores que mais influenciaram Josef foi o dr. Ernst Rudin, que defendia que médicos deveriam eliminar certas vidas “destituídas de valor” para “higienizar” a raça. Em 1933, quando Adolf Hitler virou chanceler alemão, a ideia de Rudin virou a Lei para Prevenir Doenças Hereditárias, que previa a esterilização obrigatória de pessoas com atraso mental, deformidades físicas, cegueira e surdez. O racismo, assim, virou política de Estado. Com 45% dos médicos alemães afiliados ao partido nazista, a medicina eugenista chegou a Josef Mengele.

Para coroar sua adesão ao nazismo, em 1938, Mengele se filiou à SS, a Schutzstaffel, força paramilitar de Hitler. Para isso, teve seus detalhes físicos detalhadamente registrados. Consta dos arquivos da SS que Mengele tinha 1,74 m de altura e 78 kg, tórax arqueado com 93 cm de diâmetro, cabeça com 57 cm de diâmetro e formato achatado, porte atlético, todos os dentes molares obturados e um histórico de sepse, osteomielite e nefrite aos 15 anos. Cinco décadas depois, foi essa minúcia dos arquivos nazistas que ajudou a identificar o paradeiro de Mengele.

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Dois meses depois de entrar para a SS, recebeu o título de doutor pela Universidade de Frankfurt. Mas a carreira pseudocientífica do dr. Mengele foi breve. No dia 10 de setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia e iniciou a 2a Guerra Mundial – Mengele tinha 28 anos de idade, cinco meses de casado e apenas dois estudos publicados: uma tese comparativa sobre maxilares e um artigo que analisava a hereditariedade de dobrinhas na orelha. Depois de uma breve passagem pelo front soviético, no qual resgatou dois soldados alemães de um tanque em chamas e acabou condecorado com a Cruz de Aço, Mengele voltou para a pesquisa médica. Desta vez, porém, em Auschwitz. Ele tinha apenas 32 anos.

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(Barbara Siewert/Superinteressante)

Os gêmeos

Para os médicos nazistas, a triagem de prisioneiros era a tarefa mais estressante do campo. Quem contou isso foi a dra. Ella Lingens, austríaca presa no campo por ter protegido judeus. “Alguns chegavam a se embebedar antes do batente.” Mengele, não. Nenhum colega era tão resoluto ao selecionar prisioneiros para as filas da direita ou da esquerda. Ganhou notoriedade pela eficiência ao lidar com uma epidemia de tifo entre as presas de Birkenau, no fim de 1943. Nessa ocasião, sem hesitar, Mengele mandou matar todas as 600 mulheres de um bloco e, em seguida, desinfetou o lugar. No fim de 1944, Mengele resolveu uma crise de abastecimento diminuindo o número de bocas no campo: mandou cerca de 4 mil mulheres para a câmara de gás diariamente, por dez dias. 1,1 milhão de pessoas seriam mortas em Auschwitz-Birkenau entre 1940 e 1945.

Essa atividade quase administrativa, porém, não era seu maior interesse. Mengele mantinha o sonho adolescente de se tornar um cientista reconhecido. Experimentos com prisioneiros vinham sendo conduzidos em vários campos de concentração: testes de temperatura e desidratação extremas em Dachau, transplantes em Ravensbruck, armas químicas em Sachsenhausen, infecção com doenças em Buchenwald. Auschwitz era o maior dos campos e Mengele resolveu praticar, em escala industrial, seus experimentos de “higiene racial”.

No verão de 1943, o médico realizou sua primeira tentativa: injetou pigmentos nas íris de dezenas de crianças, para reproduzir olhos azuis. O resultado foram infecções e, em alguns casos, cegueira. Mengele preservava os olhos e enviava as crianças para as câmaras de gás. Também fez experimentos com anões e pessoas com deficiências. Mas seu maior interesse, como já dissemos, eram irmãos gêmeos, que serviriam para pesquisar se uma dada característica era genética ou conse-quência do ambiente.

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Pares univitelinos eram alimentados e tratados contra doenças num galpão de Birkenau, apelidado de “Zoológico”. Uma vez saudáveis, seguiam para o hospital, onde médicos tiravam suas medidas e os entregavam a Mengele, que os examinava por horas. Começavam, então, os experimentos in vivo: amputações, punções lombares, transfusões de sangue de tipo incompatível, infecção com doenças. Um irmão servia de cobaia, outro, de controle. Depois, o médico matava os dois e comparava os corpos.

Nunca foram encontrados documentos relatando os experimentos de Mengele – as informações vêm dos sobreviventes e de colegas. Certo, porém, é que o alemão não deixou nenhuma contribuição para a ciência. Diferentemente do mito do gênio diabólico, Mengele não era genial, mas um médico medíocre que parou de estudar aos 28 anos – e que usou cobaias humanas para se projetar academicamente dentro de uma pseudociência.

O primeiro disfarce: trabalhador rural

Quando a derrota na 2a Guerra se tornou inevitável, os principais líderes nazistas se suicidaram, antes que as tropas aliadas os capturassem. Outros oficiais foram presos e enfrentaram julgamento em Nuremberg. Mengele pertence a um terceiro grupo – o dos que fugiram. Quando a artilharia soviética estava a dez dias de Auschwitz, em 17 de janeiro de 1945, o médico recolheu os registros de seus experimentos, desesperadamente. Guardou em duas caixas os papéis que considerava mais importante e partiu com elas num carro que o esperava. À meia-noite, a SS amontoou os demais documentos médicos e os eliminou ao gosto nazista: numa fogueira imensa.

Em setembro, trocou de identidade e virou Fritz Hollmann, um camponês de mãos macias e sotaque aristocrático. “Fritz” trabalhou em plantações do sul da Alemanha, colhendo batatas por quatro anos, até conseguir um passaporte falso da Cruz Vermelha em 1949. Desta vez sob o nome “Helmut Gregor”, abandonou sua Heimatland para iniciar uma nova vida em Buenos Aires. Deixou para trás a mulher Irene, o filho de 5 anos, Rolf, que só vira uma vez, e o sonho adolescente de um dia ser um grande cientista.

 

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O fugitivo

Mengele escondeu-se por quatro décadas na América do Sul, sempre sob proteção de nazistas. Morreu em Bertioga, afogado e deprimido.

Era um fim de tarde ensolarado de 7 de fevereiro de 1979 quando o cabo da PM Espedito Dias Romão atendeu à ocorrência na praia da Enseada, em Bertioga, litoral paulista. Estirado na areia, o corpo de um senhor branco de estrutura óssea robusta, cabelo grisalho e bigode abundante. Não tinha vômito ou outros sinais de afogamento. Depois de uma análise, descobriu-se que havia morrido de mal súbito enquanto nadava. Ele estava na praia a convite de amigos – os austríacos Wolfram, ex-soldado nazista, e Liselotte Bossert, professora do colégio alemão Humboldt, residentes no bairro paulistano do Brooklin.

No IML de Santos, Liselotte apresentou a identidade do morto: “Wolfgang Gerhard”, 54 anos, austríaco. O que ninguém sabia é que o verdadeiro Wolfgang Gerhard havia morrido dois meses antes, em sua terra natal, depois de ter deixado seus documentos com um certo amigo íntimo – um médico alemão 13 anos mais velho e 14 cm mais baixo, que morava num casebre próximo à represa Billings, em São Paulo. No bairro, era conhecido como “seu Pedro”. Já caçadores de nazistas, que investigavam o paradeiro de fugitivos, chamavam-no Josef Mengele, o Anjo da Morte.

Viver no Brasil não estava nos planos originais de Mengele. Em 1949, fugira para Buenos Aires, onde encontrou uma rede de proteção nazista. Graças ao dinheiro da família, tinha uma vida de classe média porteña. Abriu uma pequena carpintaria, onde produzia brinquedos, comprou um carro, mudou-se para o subúrbio. Separou-se da mulher, que ficou na Alemanha, e chegou até mesmo a fazer uma viagem à Suíça, em 1956, na qual se encontrou com o filho Rolf, de 12 anos. Apresentou-se como “tio Fritz” – até então o menino acreditava que o pai fora herói de guerra. Rolf só descobriria as atrocidades paternas quatro anos depois. De volta a Buenos Aires, Josef Mengele ficou tão tranquilo com seu esconderijo que voltou a usar o nome verdadeiro. Chegou a comprar parte de um laboratório que produzia medicamentos contra tuberculose – com o próprio nome. 

Enquanto isso, caçadores de nazistas investigavam o esconderijo do médico. Pressionado, o governo alemão – que já sabia de seu paradeiro desde o divórcio, em 1956 – produziu em 1959 um pedido de extradição, que demorou 1 ano e 23 dias para ser processado. Foi o tempo que Mengele precisou para fugir para o Paraguai, onde morou na colônia alemã de Hohenau. Sua ideia era proteger-se da extradição virando paraguaio. De fato, o ditador Alfredo Stroessner lhe concedeu a nacionalidade. 

Mas, mesmo que fosse legalmente paraguaio, Mengele não estava seguro. Quando soube que Israel sequestrou em Buenos Aires o estrategista do Holocausto Adolf Eichmann para que fosse julgado em Jerusalém, ficou claro que ele seria o próximo. Precisava sumir de vez. Deixou seus últimos rastros no Paraguai e escapou anonimamente para o Brasil.

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Acho que gosto de São Paulo

O primeiro contato de Mengele por aqui foi Wolfgang Gerhard, um ex-líder da Juventude Hitlerista da cidade austríaca de Graz, que se mudara para o Brasil em 1948. Ele que encontrou uma família para abrigar o médico, em troca de uma pensão: o casal de húngaros Geza e Gitta Stammer. Os Stammer estavam à procura de um fazendeiro que pudesse administrar sua propriedade em Nova Europa, a 300 km de São Paulo. Assim, Mengele se tornou “Peter Hochbichler”, um camponês suíço solitário.

A primeira impressão que tive foi a de um homem simples, limpo e arrumado”, disse Gitta em 1985 a um canal de TV britânico. “Nada de excepcional.” Mas sua opinião mudou rapidamente. Mengele era esquisito. Em casa, ouvia música clássica e falava de filosofia e história – algo estranhíssimo para um suposto camponês. “Então, começamos a perceber que ele tinha medo de todo mundo. Quando alguém vinha à fazenda, ele desaparecia”, disse Gitta. Somente saía de capa e de chapéu, acompanhado de uma matilha de cães de guarda. Vivia com dor de dente e chegava a ter abscessos dentários, que possivelmente provocavam sinusite crônica, mas drenava-os sozinho, com uma lâmina. “Ele não entendia nada de lavoura”, disse o empregado da fazenda Francisco de Souza ao Jornal do Brasil

Em 1962, os Stammer se mudaram para Serra Negra, SP, numa fazenda quatro vezes maior: Mengele pagou a metade. Longe do calor, sentiu-se finalmente à vontade, em meio à “maravilhosa floresta de eucaliptos”. “Estou esplendidamente estabelecido”, escreveu em seu diário. Ainda assim, não abandonou a paranoia: chegou a construir uma torre de cinco metros na fazenda, e passava o tempo lá em cima – supostamente para observar pássaros. 

Mengele tinha razão para temer visitas. Certo dia, um cliente veio à fazenda comprar frutas. Na saída, esqueceu um jornal. Lá estava a foto de Josef Mengele, nos tempos da SS, identificado como criminoso nazista. Gitta confrontou “Peter” com o jornal, e o Anjo da Morte confirmou sua identidade. A relação com a família degringolou, embora ainda dependessem dele financeiramente. Em 1969, os Stammer se mudariam para um sítio em Caieiras, na Grande São Paulo. Mengele foi junto. 

Em São Paulo, o amigo Wolfgang Gerhard apresentou-o a um novo casal – os austríacos Wolfram e Liselotte Bossert. Com eles, Mengele recuperou a autoconfiança. Voltou a tirar fotos e parou de esconder o rosto com as mãos quando trombava com um desconhecido. Toda quarta-feira, Wolfram o buscava em Caieiras para levá-lo para jantar com a família. Discutiam sobre o futuro da humanidade, arqueologia, problemas ecológicos, o mal do materialismo. Em 1971, o amigo Wolfgang Gerhard voltou à Áustria e deixou com Mengele sua cédula de identidade. 

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Mas as dificuldades não demorariam a voltar. Em 1974, os Stammer venderam a chácara de Caieiras e enviaram Mengele para um casebre na estrada do Alvarenga, ao lado da Billings – o local hoje abriga um bufê de casamentos. Conforme a saúde se deteriorava, confinou-se em casa. Tinha pressão alta, enxaquecas, insônia, próstata inflamada, reumatismo e uma perna que vivia inchada. Com medo de caçadores de nazistas, dormia com uma velha pistola Mauser. Qualquer barulho de carro o ressaltava. Em cartas, falava em suicídio.

Sem remorso

Rolf Mengele nunca compreendeu o pai – mas tampouco pôde esquecê-lo. Não se meteu nos negócios da família. Considerava-se um liberal. Estudou direito e foi trabalhar em Friburgo, no sul da Alemanha. Adotou outro sobrenome. Ainda assim, munido de passaporte falso, pegou um voo Varig em Frankfurt, no dia 10 de outubro de 1977. Já tinha 33 anos. Em frente ao casebre da Billings, viu diante de si uma criatura assustada. Por duas semanas, interrogou Josef. 

“Falei a meu pai que queria ouvir sua versão sobre Auschwitz”, contou Rolf a Gerald Posner e Hohn Ware, autores do livro Mengele: The Complete Story. O velho disse que apenas seguiu o instinto de sobrevivência. “Meu pai tentava convencer-me de que salvou milhares de vidas. Disse que não dava ordens e que não foi responsável pelas câmaras de gás. Que os gêmeos do campo deviam-lhe suas vidas. Que jamais fez pessoalmente mal a alguém. Infelizmente, percebi que ele nunca expressaria nenhum remorso ou culpa.” A despedida de pai e filho foi rápida e formal. Rolf não o denunciaria – “afinal, ele era meu pai”. 

Mengele passou o resto da vida deprimido e solitário. Em fevereiro de 1979, o casal Bossert convidou-o à casa de praia em Bertioga, para animá-lo. Pegou um ônibus no dia 5. Por dois dias, não saiu do quarto. Às 15h do dia 7, tomou coragem. Caminhou pela praia com o amigo Wolfram. Ficou olhando o mar. Por volta das 16h30, foi para a água. Passados dez minutos, provavelmente teve um AVC. Wolfram ainda tentou resgatá-lo, mas Josef Mengele já estava morto, aos 67 anos.

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Os ossos

Mengele queria ser cremado, mas a burocracia brasileira não deixou. E seus restos mortais foram parar em sala de aula.

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(Barbara Siewert/Superinteressante)

Em um prédio anexo da Faculdade de Medicina da USP, vizinho ao IML de São Paulo, o professor Daniel Romero Muñoz guarda uma velha ossada. Desde o ano passado, ele a usa em aulas de pós-graduação para explicar como se identifica uma pessoa a partir de seus restos mortais. “Partimos do princípio de que estão tentando nos enganar”, diz Muñoz, com seu tom de voz baixo. “Então, confrontamos todos os dados disponíveis para buscar sistematicamente discordâncias.”

A ossada que ele descreve tem bacia estreita, com ângulo infrapúbico de 600: é do sexo masculino. Tem o membro superior direito maior que o esquerdo: destro. Grande orifício na maxila direita: possível consequência de sinusite crônica. Neoformação óssea na bacia: pela posição, sofreu um acidente com a perna dobrada. Altura: 1,73 metro. Idade: 65 a 70 anos. Maxilar com forame incisal enorme, que provocaria uma imensa separação entre os dentes incisivos superiores. Todas as características do esqueleto eram compatíveis com as fichas da SS em 1938 e com os depoimentos das famílias Bossert e Stammer. Mas ainda faltaria o laudo oficial. 

Ter os ossos expostos num país sul-americano não era o fim que o médico nazista esperava para si. Obcecado pela morte, Mengele contou ao casal Bossert que desejava ser cremado. Seus últimos vestígios físicos deveriam virar cinzas, e sua existência sumiria juntamente com o silêncio dos 40 parentes e amigos que sabiam sua verdadeira identidade. Mengele só não contava com a legislação brasileira: a cremação exige autorização de parentes diretos – e não havia ninguém para dá-la. Identificado com o RG falso cedido por Wolfgang Gerhard, só restava ao corpo de Josef Mengele ser enterrado no Brasil, passando-se pelo amigo. 

E Gerhard era um ótimo amigo. Antes de voltar para a Europa, havia até mesmo reservado uma sepultura para Mengele no túmulo conjugado da própria mãe, no cemitério de Nossa Senhora do Rosário, em Embu das Artes. Foi para lá que Liselotte partiu com o caixão, serra acima. Quando ela perguntou pelo túmulo de Gerhard, Gino Caritá, administrador do cemitério, lembrou-se do homem alto, de cabelos claros e sotaque estrangeiro. Liselotte entrou em desespero com a possibilidade de Caritá desmascarar o defunto. O administrador tinha a tarefa de abrir o caixão para checar a identidade do morto. Assim, Liselotte simulou um ataque de nervos. “Não, eu não quero!”, gritou. “Meu marido está no hospital e eu estou sozinha aqui e quero que tudo acabe o quanto antes!” Caritá obedeceu. Mengele permaneceu anônimo.

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(Barbara Siewert/Superinteressante)

A caça

A notícia da morte do pai chegou a Rolf. Restava agora ao filho decidir. Se ficasse em silêncio, o nome da família continuaria na boca de caçadores de nazistas. Se anunciasse a morte, exporia todos aqueles que colaboraram com seu esconderijo. Escolheu preservar os colaboradores. Voou para São Paulo, deu aos Bossert uma compensação em dinheiro e dividiu entre eles e os Stammer o valor do casebre no Alvarenga. 

Esse silêncio fez de Josef Mengele uma espécie de lenda urbana. O mundo todo dizia ter visto o nazista: havia relatos no Clube Alemão de Assunção, entre indígenas do Chaco paraguaio, numa colônia nazista no Chile, na Bolívia, no Uruguai, em Nova York, em Miami. Governos e organizações ofereciam, em troca de informações, o total de US$ 3,4 milhões (R$ 22 milhões, em valores atuais). 

A charada só começou a se resolver quando o fim da 2a Guerra se aproximava de seus 40 anos, e aumentava a pressão sobre o chanceler Helmut Kohl para que encontrasse Mengele. No dia 10 de maio de 1985, autoridades americanas, israelenses e alemãs ocidentais, reunidas em Frankfurt, anunciaram que buscariam o criminoso. Já no dia 31 de maio, a polícia federal alemã encontrou correspondências entre os Bossert e o ex-secretário da família Mengele, lamentando a morte do “amigo em comum”. O castelo de cartas tinha sido derrubado. 

Em São Paulo, o superintendente regional da PF, Romeu Tuma, amargava o histórico de ter dirigido o infame DOPS durante a ditadura militar, que acabava de terminar. Quando recebeu a notificação bombástica da PF alemã de que Mengele estava enterrado no Brasil, o delegado viu em seu colo a oportunidade para regenerar a carreira. Por quatro dias e quatro noites, agentes observaram a movimentação na casa dos Bossert; depois, fizeram uma busca. Encontraram o casal, seus dois filhos e vários ensaios, fotografias e objetos pessoais de Mengele. Na quarta-feira, dia 5 de junho, os Bossert depuseram na PF e confessaram ter acolhido e acobertado o nazista. No dia seguinte, o casal já estava no cemitério de Embu, ao lado de Tuma e de um circo de câmeras de TV, fotógrafos, repórteres e curiosos que acompanhavam coveiros exumarem os restos de Mengele. Na sepultura, a tampa branca ainda era visível, protegida da umidade pelo verniz. Sob ela, o restante do caixão se desmanchara, misturando-se à terra. Entre os restos, a camisa, uma calça, um cinto e os ossos. 

Enquanto isso, o dr. Muñoz, na época diretor do setor de antropologia do IML de São Paulo, montou a equipe de colegas que o assistiriam no reconhecimento da ossada. Para a confrontação de dados, o inquérito da PF forneceu informações e materiais obtidos das famílias Bossert e Stammer, e o Departamento de Justiça dos EUA enviou ao Instituto os arquivos do tribunal de Nuremberg, com todos os dados nazistas sobre Mengele.

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(Barbara Siewert/Superinteressante)

Caso encerrado

No dia 6 de julho, o IML divulgou seu laudo. “A somatória de coincidências indica que é altamente provável que o esqueleto exumado seja o de Josef Mengele”, concluiu. Sete anos depois, quando um exame de DNA já havia se tornado possível, o geneticista britânico Alec Jeffreys, da Universidade de Leicester, na Inglaterra, comparou uma amostra de DNA de Mengele com outra de Rolf, e reafirmou a conclusão do IML – foi quando Israel deu o caso como encerrado. 

As dúvidas se foram, mas a ossada ficou. O único que poderia pedir sua remoção do Brasil era o filho Rolf, mas ele não demonstrou interesse. Assim, os ossos ficaram três décadas no IML, protegidos de eventuais ladrões de relíquias, em um local isolado, para evitar a peregrinação de fãs do nazismo. Por 30 anos, os restos mortais de Josef Mengele ficaram jogados em um saco plástico até serem transferidos para a Faculdade de Medicina da USP, sob cuidados do doutor Daniel Muñoz. Em 2016 foi escrito o último capítulo da história do Anjo da Morte: o professor decidiu usar em sala de aula a ossada que ele havia ajudado a identificar. Mengele voltou à medicina – mas não do jeito que imaginava. 

Nessa história, sobram ironias. Depois de décadas escondido, o criminoso de guerra não foi denunciado por detratores, mas pelos próprios ossos – e pelo esmero com que a SS documentava os detalhes físicos de seus oficiais, tentando provar seu pertencimento à raça “ariana”. O pesquisador medíocre, que na infância sonhava entrar para as enciclopédias, morreu desesperado por anonimato. Foi enterrado numa terra estrangeira, em túmulo alheio, sem sapatos. Teve a sepultura devassada e os ossos escrutinados, identificados por brasileiros. O antigo oficial da SS, o nazista cruel, o médico monstro, finalmente conseguiu contribuir para a ciência – na forma de material didático.

 

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