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A real sobre a Neuralink

A empresa de Elon Musk pretende integrar o cérebro a computadores – e já implantou seu chip em um paciente. Essa tecnologia pode mudar o mundo. Mas ela não é nova, já vem sendo tentada faz tempo – e ainda tem problemas sem solução visível.

Por Salvador Nogueira e Bruno Garattoni
15 abr 2024, 10h00

EEm 20 de março, a Neuralink publicou um vídeo em que Noland Arbaugh, de 29 anos, controla o cursor de um mouse, e usa um laptop para jogar xadrez online, usando apenas seus pensamentos. Arbaugh, que ficou tetraplégico após um acidente de mergulho, é o primeiro voluntário a receber um implante cerebral da empresa.

Essa tecnologia traz esperança para pessoas paralisadas, e promete ir muito além disso: Elon Musk, fundador da empresa, acredita que os chips implantáveis permitirão uma integração total entre a inteligência humana e a artificial.

O feito da Neuralink impressiona. Mas, ao mesmo tempo, a proeza omite pontos críticos: há pela frente grandes obstáculos, que ainda não têm solução – e tornam as propostas da empresa mais distantes do que podem parecer.

Fundada em 2017, a Neuralink tem como objetivo declarado “criar uma interface cerebral generalizada para restaurar a autonomia a aqueles com necessidades médicas não atendidas hoje e destravar o potencial humano amanhã”. Repare bem no palavrório, que segue o padrão usual de Musk.

Ele parte de um objetivo de longo prazo (“destravar o potencial humano”), e então coloca como plataforma desenvolvimentos tecnológicos imediatamente desejáveis (“restaurar autonomia a aqueles com necessidades médicas não atendidas”) a fim de instigar o próprio mercado a levar a revolução adiante.

Em fevereiro, durante um evento transmitido em sua rede social X (antigo Twitter), Musk falou um pouco sobre os resultados obtidos com o primeiro voluntário a ter um implante instalado no cérebro. “O progresso é bom e o paciente parece ter se recuperado totalmente, sem nenhum efeito nocivo de que tenhamos conhecimento. O paciente é capaz de mover um mouse pela tela apenas pensando”, disse.

Imagem do protótipo do robô R1, que foi desenvolvido pela Neuralink e insere microfios no cérebro.
Imagem do protótipo do robô R1, que foi desenvolvido pela Neuralink e insere microfios no cérebro. (Neuralink/Divulgação)
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Para quem não acompanha essa área, o feito impressiona. Mas a verdade é que experimentos similares já foram realizados com sucesso anos atrás, inclusive com seres humanos, por outros grupos e empresas. No fim dos anos 1990, neurocientistas já trabalhavam com a implantação de eletrodos no cérebro de animais para medir sua atividade cerebral e “decodificar” seus sinais.

Em 2000, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), se tornou um dos grandes pioneiros no desenvolvimento das chamadas interfaces cérebro-máquina (conhecidas pela sigla em inglês BMI) ao demonstrar, em um estudo publicado na revista científica Nature, como um computador podia decodificar instruções cerebrais de um macaco para mover um braço robótico.

Ao longo das décadas seguintes, a área continuou evoluindo. Em 2004, o projeto BrainGate, concebido na Universidade Brown, em Rhode Island (EUA), iniciou testes clínicos com voluntários humanos.

Em 2006, um trabalho liderado por John Donoghue e publicado na mesma Nature já havia demonstrado como era possível, por meio de eletrodos implantados no cérebro, permitir que um paciente tetraplégico (ele havia sofrido um dano na coluna espinhal) conduzisse um cursor por uma tela, e até controlasse uma mão robótica rudimentar.

Basicamente, o voluntário é orientado a pensar em movimentos específicos, e um conjunto de eletrodos instalados na região do córtex motor (área cerebral responsável pela intencionalidade e pelo controle de movimentos) capta o disparo de neurônios e os registra. Depois de aprender a “lê-los”, sempre que eles são reproduzidos no cérebro, o computador pode comandar uma ação específica, como a movimentação de um cursor numa tela.

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Veja, isso foi em 2006. Estamos em 2024. Por que nos espanta que a empresa de Musk, quase duas décadas depois, tenha meramente conseguido reproduzir esses resultados? Bom, é verdade que há muita herança tecnológica – e mesmo de equipe – entre esses pioneiros.

O primeiro CEO da Neuralink, Max Hodak, fez iniciação científica com Nicolelis na Universidade Duke. O engenheiro Tim Hanson, um dos fundadores da empresa, havia feito doutorado com o brasileiro. E Joseph O’Doherty, doutor em engenharia biomédica, também fez pós-graduação com Nicolelis antes de se juntar à Neuralink. Dos três, ele é o único que ainda está lá.

A nova empresa, contudo, também traz inovações. Em particular, o implante desenvolvido por eles consegue registrar a atividade de cerca de mil neurônios, o que em tese permitiria um controle mais sofisticado de movimentos.

O chip, do tamanho de uma moeda, contém 1.024 eletrodos (cerca de dez vezes mais que o experimento pioneiro de 2006), distribuídos em 64 fios ultrafinos e flexíveis, que precisam ser introduzidos no cérebro.

“É um número superior a todos os outros implantes até aqui, ainda que bastante inferior àquilo que de fato é necessário para o reestabelecimento de função [motora, objetivo central dessa primeira investida da Neuralink]”, diz Álvaro Machado Dias, neurocientista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e especialista em IA.

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Outra inovação fundamental da empresa foi a criação de um robô especialmente desenhado para fazer a inserção dos fios no cérebro da forma mais delicada – e eficiente – possível. Parte da necessidade de criar a máquina, batizada de R1, foi tentar simplificar ao máximo a cirurgia para a instalação do implante.

Isso porque Musk acredita que, no futuro, os implantes poderão se tornar ferramentas para expandir as habilidades cerebrais das pessoas em geral – não só restaurar os movimentos de pacientes paralisados (no teste atual, a Neuralink só aceita pessoas tetraplégicas ou com esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa rara que ficou famosa por acometer o físico britânico Stephen Hawking).

 

Imagem de uma visão explodida do Neuralink, mostrando todos os componentes dele, com um box em cima escrito “O processo” e um botão de “Infográfico - clique aqui” que redireciona para um infográfico completo sobre como ele é instalado no cérebro.
(Arte/Fotos: Neuralink/Divulgação/Superinteressante)

 

“Isso faz muita diferença em termos clínicos, além de apontar para um futuro de preços compatíveis com a popularização da neuroprostética”, afirma Dias. “Em paralelo, existe uma inovação imaginária e de marketing. Elon Musk popularizou a ideia de fusão humano-máquina, para o bem ou para o mal.”

Claro, o grande drama no momento é demonstrar que o procedimento, acima de tudo, é seguro. Não será fácil. Ainda mais porque, se existe algo que marca todos os empreendimentos de Musk, é a pressa por resultados – e isso não casa bem com cirurgias cerebrais.

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Testes controversos
Em 2020, um ano depois que a Neuralink pediu à FDA permissão para realizar testes em humanos, Musk apresentou ao mundo a porquinha Gertrude, um dos três suínos que foram os primeiros a receber um implante experimental da Neuralink.

O objetivo da apresentação era recrutar mais cientistas para o projeto. Mas a forma casual com que Musk apresentou o animal já disparou um alerta na comunidade científica – normalmente há um cuidado enorme em apresentar cobaias, por medo de reações da opinião pública.

E as coisas se complicaram ainda mais depois que começaram a surgir informações sobre os experimentos da Neuralink com macacos. Em 2022, relatórios veterinários vieram a público mostrando que vários dos símios que receberam o implante da Neuralink passaram por situações de bastante sofrimento.

 

Foto do macaco Code, cobaia da Neuralink, com um box em cima escrito “As cobaias” e um botão de “Infográfico - clique aqui” que redireciona para um infográfico completo de todas as cobaias da Neuralink.
(Arte/Fotos: Neuralink/Divulgação/Superinteressante)

 

Realizados entre 2017 e 2020, os experimentos foram conduzidos pelo Centro Nacional de Pesquisa de Primatas da Califórnia, uma instalação associada à Universidade da Califórnia (Davis). Entre as complicações citadas pelos veterinários em seus relatórios estavam diarreia com sangue, paralisia parcial e edema cerebral – inchaço no cérebro.

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Em várias ocasiões, houve problemas especificamente com os implantes, que incomodavam a ponto de os animais tentarem arrancá-los, e por vezes quebravam. O relatório relativo ao “Animal 15”, por exemplo, indica que, dias após a implantação, em março de 2019, a macaca começou a pressionar sua cabeça contra o chão sem motivo aparente, sinal de dor ou infecção.

Ela ficava puxando o implante até sangrar. Começou a perder a coordenação, e tremia de forma descontrolada ao ver funcionários do laboratório. Sua condição foi piorando por meses até que se decidiu pela eutanásia. Uma necrópsia revelou que ela tinha sangramento no cérebro, e o implante deixara partes do seu córtex cerebral “esfarrapadas”.

Esse é um problema que persiste desde os primeiros implantes cerebrais de eletrodos, remontando aos anos 1990. Eles tendem a induzir a morte de células e a formação de cicatrizes no tecido cerebral que tocam. E isso, com o tempo, acaba fazendo com que os chips parem de funcionar corretamente.

Eles teriam de ser substituídos, mas isso nem sempre é possível – pois o local onde os fios já foram inseridos está prejudicado. Além disso, sempre existe o risco de que os implantes (seja na primeira inserção ou em subsequentes) causem danos cerebrais, que podem levar à morte.

Não por acaso, quando Miguel Nicolelis desenvolveu seu projeto Andar de Novo, que permitiu a um paraplégico dar o pontapé inicial da abertura da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, ele optou pelo uso de toucas de eletroencefalografia (que não exigem a inserção de implantes) para captar os sinais cerebrais.

Esse método é muito menos preciso do que a captação feita por eletrodos inseridos diretamente no cérebro. Mas, como é totalmente não invasivo, não coloca em risco a saúde do paciente. Os testes produziram melhoras consideráveis na sensibilidade e no controle motor dos pacientes – mas ainda estão longe de restaurar completamente a mobilidade. São as limitações atuais das tecnologias não invasivas, que tanto frustram Musk.

Outra questão polêmica foi que o bilionário distorceu informações sobre os macacos da Neuralink. Em mensagens publicadas no X, ele disse que foram escolhidos animais já com mais idade, e que nenhum deles morreu por conta dos implantes. Ex-funcionários da empresa, que falaram anonimamente à revista Wired, disseram que isso não é verdade.

Tudo isso acabou retardando os planos da companhia. No início de 2022, a FDA negou autorização para os testes clínicos em humanos. Segundo a agência de notícias Reuters, isso teria ocorrido por dois motivos: preocupações com a bateria de lítio do dispositivo e a possibilidade de que os microfios dos implantes migrassem para outras partes do cérebro. A autorização só veio em maio do ano passado, o que resultou na primeira implantação em um humano, mencionada por Musk agora.

Mas os riscos ainda estão lá. Os fios da Neuralink são mais flexíveis, o que promete reduzir seu impacto sobre o tecido mole do cérebro, e os potenciais danos. Mas sua eficácia e durabilidade só poderão ser constatadas após testes de longa duração em humanos, daqui a vários anos. Musk não costuma ter paciência com o ritmo cauteloso de pesquisas médicas, mas há quem veja um lado bom na atitude agressiva do empreendimento.

“As controvérsias envolvendo modelos animais (especialmente macacos), a ideia de criar ciborgues e o cronograma ambicioso, pouco aderente às questões de segurança, arranharam a imagem da empresa”, comenta Dias. “Porém, fato é que a Neuralink contribui imensamente para a popularização das neurociências, o que se traduz em mais verbas de pesquisa e talentos migrando para esse campo”, diz.

Segundo ele, a comunidade científica vê com certa ressalva o modus operandi da Neuralink e sua velocidade típica de startup. Mas, ao mesmo tempo, encara a empresa com boa vontade.

 

Os concorrentes – e o futuro
A Neuralink não é a única desenvolvendo implantes para tentar restaurar os movimentos de pessoas paralisadas. Existem outras, como Synchron, Paradromics, Blackrock Neurotech e Precision Neuroscience, que estão avançando de forma consistente nessa mesma direção.

No ano passado, a Synchron apresentou os resultados, no periódico médico Jama Neurology, do teste de uma interface cérebro-máquina em quatro pacientes, que receberam um implante cerebral e foram acompanhados por 12 meses. Todos conseguiram controlar um dispositivo eletrônico com o implante, o que facilitou atividades como escrever, mandar emails, gerir contas bancárias e fazer compras online.

As outras empresas do setor também estão fazendo testes clínicos com implantes similares. Uma delas, a Precision, foi criada por um cofundador da Neuralink – o que mostra como a empresa de Elon Musk também ajudou a polinizar o mercado. Não há dúvida de que essas interfaces continuarão a se desenvolver, e poderão ganhar status comercial em alguns anos.

Mas a ambição central de Musk com a Neuralink vai além disso. Ele quer decodificar os sinais elétricos do cérebro, e permitir a transmissão direta de pensamentos entre as pessoas – ou mesmo entre humanos e máquinas. Tanto que o implante da empresa foi batizado de Telepathy (“telepatia”, em inglês).

Foto de uma mão segurando o implante da Neuralink.
64 é o número de microfios, com ao todo 1.024 eletrodos, no implante da Neuralink. (Neuralink/Divulgação)

Mas isso é um óbvio exagero. Dias ressalta que ainda estamos muito longe de entender a “linguagem” interna do cérebro a ponto de decodificar pensamentos complexos e abstratos. “O controle do mouse com a mente só funciona porque não envolve ideação. Esse é o truque. Ninguém tem a menor ideia sobre como as ideias se manifestam molecularmente, uma a uma”, afirma Dias.

Os implantes conseguem captar os padrões de sinais elétricos que correspondem a determinados movimentos, mas não há como fazer isso com relação a pensamentos – porque a ciência ainda não sabe como eles se formam no cérebro.

Segundo o neurocientista da Unifesp, só seria possível realizar o sonho de Elon Musk se fosse possível converter em código binário, usado pelos computadores, a linguagem eletroquímica que o cérebro usa para codificar pensamentos e ações complexas. “Nada disso seria possível sem que a gente desvendasse o ‘mentalês’. E nenhum passo relevante foi dado nesta direção nos últimos 50 anos”, explica Dias.

É uma má notícia para os fãs da Neuralink – que, guiados pelo discurso de Musk, consideram essa a única possibilidade de manter a relevância do ser humano em um futuro dominado pela inteligência artificial. “A IA vai obviamente ultrapassar a inteligência humana, por muito… Há algum risco de que, nesse ponto, algo de ruim aconteça”, declarou Musk. Ele acredita que os humanos poderão se tornar meros “pets” da IA – ou serão enxergados por ela como um empecilho, algo a ser eliminado. Será mesmo?

“Eu chamaria isso de alucinação, não fosse o fato de ser um discurso forjado para beneficiar o próprio Musk”, afirma Dias. “Não há qualquer indício de que o aumento da capacidade operacional dos algoritmos leve a um salto em direção à intencionalidade [a IA adquirir desejos próprios]”, diz. “A visão de Musk foi construída para que ele emerja como o salvador da humanidade, combinando um falso problema com uma falsa solução. Não é correto, mas certamente é genial.”

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