A vaca imortal
Fazenda em Brasília desenvolve programa pioneiro de clonagem para proteger espécies ameaçadas de extinção - e trazer de volta animais que já morreram
José Francisco Botelho, de Brasília. Com reportagem de Ricardo Lacerda
A vaca se chamava Lenda, e seus dotes eram mesmo legendários. Representante exemplar da raça holandesa, ela era capaz de verdadeiras façanhas: em um ano, chegava a produzir 10 mil quilos de leite, quase cinco vezes a média das outras vacas (antes que você pergunte: sim, a produção de leite é medida em quilos, não em litros, porque alguns leites são mais densos do que outros). Durante sete anos, a abundante Lenda viveu pastando nos campos da Fazenda Vale do Sol, no município de São Miguel do Passa Quatro, Goiás. Mas em uma manhã chuvosa, em setembro de 2003, sua vida acabou em uma pequena tragédia rural. Tudo porque Lenda resolveu pular a cerca – no sentido literal da expressão. A vaca, que estava no cio, tentou saltar sobre um dos arames que dividiam os campos da propriedade. No meio do pulo, um vergalhão de ferro espetou as tetas de Lenda, rompendo a veia mamária. A vaca cambaleou por alguns metros e caiu no chão. Quando os funcionários da fazenda a encontraram, estava se esvaindo em sangue. E, antes que a manhã acabasse, a fonte de Lenda havia secado. Para sempre.
Para sempre? Não exatamente. Sim, Lenda morreu de hemorragia em 2003 – mas, 11 anos depois, ela continua vivíssima. Ou, pelo menos, uma cópia geneticamente idêntica a ela e batizada com o mesmo nome. Quando a vaca original morreu, algumas células foram coletadas às pressas e usadas para fazer a clonagem. Hoje com 10 anos, a nova Lenda vive na fazenda Sucupira, de propriedade da Embrapa. “A história da Lenda demonstrou que, pela clonagem, é possível resgatar um patrimônio genético que parecia perdido para sempre”, diz Rodolfo Rumpf, um dos responsáveis pela clonagem. As tecnologias genéticas não servem apenas para trazer de volta certos indivíduos -também podem ajudar na preservação de espécies inteiras. Prova disso é a vaca Porã: clone de uma vaca junqueira, raça que está à beira da extinção (restam apenas cem representantes vivos em todo o Brasil). Clonada em 2005, Porã é vizinha de Lenda na fazenda Sucupira. Além delas, o local de 1.800 hectares tem outros habitantes ilustres: 300 animais em risco de extinção, incluindo uma raça de asnos, duas de equinos, três de ovinos, três de caprinos e sete de suínos. Por isso, a fazenda – situada em uma área ensolarada a 35 quilômetros de Brasília – ganhou entre os funcionários e pesquisadores um apelido bíblico: Arca de Noé.
Quando Lenda renasceu, a clonagem já era uma tradição no cardápio científico da Embrapa. Três anos antes, em 2001, os pesquisadores haviam realizado uma façanha de dimensões continentais. Foi na Fazenda Sucupira que nasceu o primeiro animal clonado em toda a América Latina: uma bezerra da raça simental, batizada como “Vitória da Embrapa” – ou apenas Vitória. A bezerra clonada cresceu forte e viveu até os 10 anos – muito para uma vaca. Além disso, teve dois filhos e quatro netos, provando que animais clonados têm um potencial de reprodução tão alto quanto suas versões originais. “Na época em que a Vitória nasceu, muita gente duvidava que o Brasil um dia pudesse dominar esse tipo de tecnologia”, lembra Rumpf. Hoje, de 5% a 7% dos animais clonados pela Embrapa sobrevivem e levam vida normal, o que é considerado excelente (a média mundial é de 1%).
A onça no freezer
Hoje, existem mais de 600 espécies em extinção no Brasil – entre animais domesticados e espécies selvagens. Algumas das espécies domesticadas já foram clonadas. Mas, por enquanto, não existem clones de bichos silvestres. Isso pode mudar graças a um projeto da Embrapa e do Jardim Zoológico de Brasília. Pesquisadores das duas entidades estão montando um banco com o DNA de animais como o lobo-guará, o cachorro-do-mato, o quati e a onça-pintada. A ideia não é trazer de volta espécies que já sumiram – é evitar que as espécies ameaçadas desapareçam. Em cilindros de nitrogênio líquido, são armazenados materiais como células, espermatozoides e ovócitos (células sexuais femininas que dão origem aos óvulos). Os animais resultantes do projeto não serão soltos na natureza, mas criados no Zoológico de Brasília. Hoje, o projeto reúne mais de 400 amostras de DNA. “Já estamos cultivando células de um dos animais para iniciar estudos de clonagem. Mas só vamos divulgar a espécie quando houver uma gestação confirmada”, diz o pesquisador Carlos Frederico Martins. A clonagem não é uma panacéia, pois gera bichos geneticamente idênticos uns aos outros – e, portanto, mais suscetíveis a doenças. “Para que uma espécie sobreviva, ela precisa ter variabilidade genética”, explica o pesquisador Eduardo Melo, da Embrapa. Ao recriar uma espécie, o ideal é gerar animais que possuam DNAs diferentes uns dos outros, como na natureza. Por isso, o projeto está coletando amostras de centenas de animais – para ter vários representantes genéticos de cada espécie. Seja como for, é melhor gerar alguns bichos, ainda que sejam idênticos, do que nenhum. “A clonagem pode garantir a existência de um macho e uma fêmea, que levem a espécie adiante. É melhor do que nada”, diz Rodolfo Rumpf, pesquisador licenciado da Embrapa.
Embora estejam menos ameaçados do que seus colegas selvagens, os animais domesticados também podem entrar em extinção. É o caso das raças crioulas ou rústicas – descendentes abrasileirados de bois, cavalos, ovelhas, cabras, porcos e asnos trazidos da Europa no processo de colonização do País. Os bovinos, por exemplo, foram introduzidos no Brasil pelos portugueses no século XVI, e com o tempo se espalharam por diversas regiões brasileiras, adaptando-se ao clima, à geografia e às doenças de cada lugar. E deram origem a raças que só existem aqui, como as junqueiras e as lageanas crioulas – estas últimas, surgidas na serra de Santa Catarina, têm um couro grosso que as torna resistentes a frio, bernes e carrapatos. Outro exemplo é o cavalo pantaneiro. Descendente dos cavalos ibéricos trazidos à região do Pantanal, ele vive bem em regiões úmidas e quentes: seus cascos podem passar até seis meses debaixo d¿água sem apodrecer. Já o bode azul (cuja pelagem tem essa cor) é perfeitamente adaptado à caatinga nordestina.
Mas, nos últimos cem anos, raças recém-chegadas foram substituindo as rústicas. O bode azul, por exemplo, perdeu lugar para raças importadas como a dopper e a sane, que têm mais carne e produzem mais leite. O problema é que as novas raças são menos resistentes e precisam ser criadas em confinamento. “Se fosse largado na caatinga, um bode dopper não conseguiria se alimentar e morreria rapidamente. Já o bode azul sobrevive comendo só cactos e pequenos arbustos”, explica Manuel Avelino Paiva, técnico em agropecuária e um dos encarregados dos 300 animais da fazenda Sucupira.
Como as raças rústicas são mais fortes, criá-las em larga escala pode ser uma forma de produzir carne de modo sustentável, com menos antibióticos e hormônios. “Essas raças podem ser usadas em processos de produção mais próximos à natureza, que permitam o comportamento natural das espécies”, diz Daniel Perotto, do Instituto Agronômico do Paraná. Quem sabe um dia estejamos comendo carne de gado lageano. E bebendo leite da vaca Lenda. A própria.
Seis animais ameaçados que poderão ser salvos via engenharia genética
Jaguatirica
Onde vive – Cerrado, Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica.
Como está – Prejudicada pela destruição gradual de seu hábitat e também alvo de caçadores. Restam 40 mil.
Lobo-Guará
Onde vive – Cerrado e Pampa.
Como está – Vítima de atropelamentos em estradas e doenças transmitidas por cachorros domésticos. No Pampa, restam apenas 50 animais.
Cachorro-do-Mato Vinagre
Onde vive – Da Amazônia até o leste do Maranhão.
Como está – Restam 9 mil indivíduos no Brasil. Nas regiões mais povoadas, a espécie já desapareceu.
Tamanduá-Mirim
Onde vive – Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica e Pampa.
Como está – No Sul, vem sendo extinto pela alteração do hábitat e atropelamentos. Restam 10 mil indivíduos.
Mico-Leão Preto
Onde vive – Mata Atlântica.
Como está – Restam pouco mais de mil indivíduos, a maioria em unidades de conservação como o Morro do Diabo (SP).
Cervo do Pantanal
Onde vive – Perto das várzeas de rios, ao longo do Pantanal e do Cerrado, até a região Amazônica.
Como está – Em 2000 (último dado disponível), restavam 44 mil indivíduos. Hoje, é provável que haja menos.
Fontes: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) e International Union for Conservation of Nature (IUCN)