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A verdade sobre os testes em animais

Eles são, em algum grau, inevitáveis. Entenda os motivos.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 12 jun 2020, 11h35 - Publicado em 7 jun 2020, 11h34
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Não existe coisa mais complexa que uma criatura multicelular, como nós, um chimpanzé ou um camundongo. E não existem criaturas mais parecidas conosco que um chimpanzé (que tem 96% de seu DNA codificante – ou seja, que produz proteínas – idêntico ao nosso) ou mesmo um camundongo (70%). Da primeira afirmação, tiramos que é extremamente complexo simular o metabolismo de um organismo, e da segunda, que animais aparentados conosco (10 milhões de anos de evolução nos separam dos chimpas, e 80 milhões de anos dos camundongos) são representações mais ou menos fiéis do nosso organismo.

Esse é um jeito de dizer que, se ainda temos ambições de desenvolver novos medicamentos e tratamentos melhores para nossas doenças, teremos de lançar mão de estudos com animais. E esse é um ponto em que os cientistas em geral divergem fortemente dos defensores da libertação animal, como o filósofo Peter Singer. Em seu livro, ele tenta fazer parecer que estudos com animais são pouco ou nada representativos dos efeitos que certas drogas poderiam ter em humanos. E usa como exemplo a amedrontadora substância talidomida. Ele cita que experimentos feitos em animais mostraram que ela era completamente segura, o que não se revelou verdadeiro em humanos. Inversamente, há muitos casos em que drogas perigosas para certos animais-modelos são inofensivas para humanos e potencialmente úteis.

O problema é que esses são pontos fora da curva, justamente os que realçam o fato de que os animais são similares – e não idênticos – entre si. Mas se você parar para pensar que todos os medicamentos – todos, sem exceção – passam, antes de tudo, por testes animais, não é difícil imaginar que os casos de sucesso são muito mais numerosos do que os de fracasso. E outra: os cientistas reconhecem essas diferenças, tanto que os testes pré-clínicos com animais precisam ser seguidos por testes em humanos antes que qualquer novo medicamento chegue ao mercado.

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Sem testes com camundongos, a perda de vidas humanas seria incalculável. (sidsnapper/Getty Images)
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Agora, imagine que abolíssemos por completo testes de medicamentos em animais – uma gama variada de compostos que se mostrassem promissores em testes in vitro, com culturas de células, iriam direto para testes em humanos. A quantidade de sofrimento adicional produzida não seria nada desprezível (talvez até maior do que a que seria imposta aos animais, uma vez que humanos têm o hábito de sofrer, psicologicamente, quando veem outros humanos sofrendo), o desenvolvimento de novos fármacos seria freado consideravelmente e a quantidade de “tiros no escuro” seria enorme. Em suma, é muito difícil imaginar um mundo sem testes em animais.

Nossa compreensão das complicadas relações entre genética e ambiente está aumentando a cada momento, mas ainda estamos longe de simular um organismo completo, em todas as suas complexas cadeias bioquímicas, para substituir as cobaias em experimentos científicos.

Em compensação, já aprendemos o suficiente para tornar nossos modelos animais cada vez mais próximos dos humanos – hoje produzimos criaturas transgênicas que podem ter alguns dos nossos genes inseridos nelas para uma modelagem mais fiel de certas doenças características de nossa espécie. Também podemos manipular geneticamente criaturas para desativar genes e com isso produzir modelos de enfermidades genéticas humanas.

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Em suma: nossas cobaias animais já não são as mesmas de antigamente. Elas são melhores e são cuidadosamente confeccionadas para nossos propósitos experimentais, de forma que o argumento de que testes com animais podem não ser particularmente úteis, que já não se sustentava muito no passado, hoje é completamente inválido. É uma atitude especista? Sem dúvida que é. Mas não há muita alternativa, ao menos no momento. É possível entender o raciocínio de que é ético dar aos animais o direito de não serem explorados ou prejudicados para nosso próprio benefício, mas, convenhamos, é uma proposição utópica.

Mesmo que cessássemos toda a experimentação animal, mesmo que nos tornássemos todos vegetarianos (ou comêssemos apenas carne “sintética”, feita a partir da cultura de células que nunca estiveram num animal inteiro), mesmo que nos recusássemos a matar até mesmo os mosquitos que nos transmitem doenças sob o argumento de que eles são capazes de sofrer – e quem já viu um inseto esperneando ferido sabe que claramente eles sofrem –, e se até mesmo abdicássemos do direito de ter animais de estimação (não seria a liberdade um direito deles também?), ainda assim causaríamos muita morte e sofrimento na biosfera terrestre. Por causa das nossas intervenções ambientais.

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A agricultura em si é uma agressão ao meio ambiente. Sem ela, porém, morreríamos. (Ippei Naoi/Getty Images)
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Não custa lembrar, mas toda vez que separamos um pedaço de terra para plantar – e a agricultura seria uma peça essencial num cenário de “liberação animal” incondicional –, estamos eliminando pelo menos uma parte do nicho ecológico de um sem-número de espécies animais, que possivelmente reduzirão suas populações ou mesmo entrarão em extinção por conta de nossas ações. A partir do momento em que o ser humano começa a promover manipulações radicais no ambiente – e isso teve início não agora, no século 21, mas cerca de 13 mil anos atrás, quando inventamos a agricultura –, os outros animais começaram a sofrer os efeitos indiretos de nossa intervenção. A mesma inteligência que nos permite atingir reflexões éticas e morais mais elevadas é a que produz as ameaças aos animais. E não dá para ficar com uma parte e dispensar a outra.

Ou será que podemos voltar ao nomadismo e viver da simples coleta de frutos e de vegetais, sem lançarmos mão do plantio? Quantas bocas conseguiríamos alimentar dessa maneira? Lembrando que a situação teria de ser ainda pior do que os caçadores-coletores de outrora, uma vez que teríamos eticamente excluído a caça do nosso rol de opções. A alternativa a isso – e quase tão implausível quanto – seria nos abstermos completamente da biosfera terrestre. É isso aí. Ir embora. De vez. Podemos, em alguns milhares ou milhões de anos (uma ninharia diante da idade do nosso planeta), nos mudar para outros corpos celestes desabitados e então deixar a Terra inteirinha para seus demais habitantes, incapazes de produzir impactos ambientais tão brutalmente devastadores quanto os que o homem já produziu ao longo da história (sem falar nos que ainda vêm por aí).

Isso nos deixa com o fato de que a “libertação animal”, ao menos nos próximos milhares de anos, é uma utopia filosófica. O óbvio é que devemos nos concentrar na redução do sofrimento animal – não abandonar o especismo completamente, mas sim reconhecê-lo, abraçá-lo como uma “falha” inerente a seres que emergem de uma biosfera que é completamente amoral, e, como seres morais nesse mundo amoral, tentar diminuir seu impacto ao mínimo possível, ainda que reconhecendo as limitações disso.

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No fim das contas, o que mais incomoda nas histórias com experimentos animais é o nível de insensibilidade que se manifesta em muitos dos cientistas que realizam esses testes. Não dá para generalizar, claro, pois muitos tratam com reverência os animais que usam em benefício da humanidade, mas alguns deles realmente não se importam. Em 2014, uma jornalista estava gravando um programa de TV e um pesquisador se ofereceu para fazer uma vivissecção num rato somente para que o procedimento fosse filmado, sem nenhum propósito científico.

Não é possível aceitar que a vida – qualquer vida – seja tão facilmente descartada desse modo. Para onde vai a boa e velha empatia humana nessas horas? De forma talvez não muito surpreendente, ela vai embora com a maior facilidade. É o que veremos a seguir.

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