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Adão, Eva e Ricardo

Na busca pelo Adão e pela Eva do mundo real, a ciência já descobriu quando eles viveram e chegou a uma conclusão surpreendente: fomos concebidos em uma relação nada convencional

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 26 jun 2011, 22h00

O casal-maior da Bíblia existiu, mas não do jeito que você imagina. Eva, cientificamente falando, é a ancestral comum entre todos os Homo sapiens vivos agora. Todos nós temos uma única tatata(…)tataravó. Essa é a Eva da vida real, uma mulher que viveu há 200 mil anos. Adão? Bom, a ciência sabe que todos os sapiens machos que existem hoje têm um ancestral comum – é o Adão da ciência. E ele nasceu mais de 100 mil anos depois. Adão e Eva, portanto, não se conheceram. E essa história fica mais louca ainda: existe um terceiro elemento aí, que não é nem a mulher que deu origem a nós nem o patriarca de todos os machos modernos. É um amante, digamos assim. Porque hoje a ciência já sabe que a maior parte da humanidade tem outro ancestral comum: o neandertal. Você conhece: a espécie prima da nossa, só que 200 mil anos mais antiga, e que acabou extinta dezenas de milhares de anos antes de o homem ocupar a Mesopotâmia – o lugar que a Bíblia chamaria de Jardim do Éden, a morada do Adão e da Eva tradicionais… Mas só agora a ciência começa a desvendar a realidade sobre a nossa origem. E encontrou uma suruba genética ali.

Vamos apresentar duas pessoas intrigantes: o Adão do cromossomo Y e a Eva mitocondrial. A existência desses dois só pôde ser revelada, nos últimos anos, graças a duas particularidades da reprodução humana. Nosso material genético é composto de 46 cromossomos, dos quais 23 vêm do pai e outros 23 vêm da mãe. Só que dois desses cromossomos são os que definem o sexo e são diferentes entre homem e mulher. Quando o sujeito é macho, tem um na versão Y e outro na versão X. Quando é fêmea, tem dois X.

O resultado disso é que, nos homens, como os cromossomos sexuais não formam par idêntico (XY), a maior parte do material do Y nunca se mistura ao do X, diferentemente do que acontecem com os outros pares de cromossomos antes de passar à próxima geração. Na prática, isso significa que o Y é transmitido intocado de pai para filho.

Ao longo das gerações, claro, algumas mudanças ocorrem nele por causa de mutações. E aí está a chave para a descoberta do Adão do cromossomo Y. Ao comparar as sequências de letrinhas inscritas no Y de diversos homens vivos hoje e sabendo em que ritmo essas mutações se acumulam no DNA ao longo do tempo, é possível estabelecer quando viveu o homem que seria ancestral direto de todos os que existem agora.

Não é uma conta exata, evidentemente. Mas, ao que parece, esse sujeito viveu na África entre 90 mil e 60 mil anos atrás. Sua época coincide mais ou menos com o momento em que os primeiros humanos modernos conseguiram sair da África e iniciaram a colonização do globo e também com o surgimento dos comportamentos culturalmente sofisticados típicos de gente como a gente.

Minha pequena Eva

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E quanto à Eva da ciência? Dá para concluir quem foi ela com base no chamado DNA mitocondrial. As mitocôndrias são organelas celulares que produzem energia no interior das nossas células. Elas têm seu próprio conjunto de genes, o que faz cientistas suporem que sejam antigas bactérias que foram absorvidas pelas nossas células em uma época remota, quando as únicas formas de vida na terra eram microrganismos. Mas o importante para nós aqui é que as mitocôndrias que habitam seu corpo hoje são descendentes diretas das mitocôndrias que havia no óvulo da sua mãe antes mesmo de ser fecundado. Os espermatozoides do seu pai também tinham suas mitocôndrias, mas elas são perdidas quando ele adentra o óvulo. O resultado é que seu DNA nuclear (presente no núcleo das suas células) veio metade do seu pai e metade da sua mãe, mas o DNA das suas mitocôndrias só veio da sua mãe.

Fazendo a mesma análise que se aplica ao cromossomo Y, dá para descobrir, pela taxa de mutações, quem foi a dona das mitocôndrias que servem como ancestrais comuns para as que estão em circulação nos nossos corpos hoje. E aí terminam as semelhanças entre a mitologia religiosa de Adão e Eva com a versão científica da história, pois, pelos cálculos dos cientistas, a Eva mitocondrial nem chegou a conhecer o Adão do cromossomo Y.

Datar DNA mitocondrial não é a coisa mais simples do mundo. Mas um novo estudo estatístico, divulgado no ano passado, parece ter chegado à melhor estimativa possível da época em que viveu a Eva mitocondrial. E ela coincide com os mais antigos vestígios de Homo sapiens, de 200 mil anos atrás.

Uma coisa relevante, e que dá credibilidade ao resultado, é que os cientistas usaram dez modelos diferentes para calcular a idade com base nas mutações do DNA mitocondrial, e todas apontaram mais ou menos na mesma direção. “A estimativa foi muito similar em todos os casos, o que torna nosso resultado mais robusto”, diz Mark Kimmel, professor de estatística da Universidade Rice, nos Estados Unidos, e autor do estudo, publicado na revista científica Theoretical Population Biology.

Ei. Espera aí. Então Adão viveu há 60 mil anos e Eva, há 200 mil? Como é que pode ser verdade uma coisa dessas? O fato é que o Adão e a Eva da ciência não foram os primeiros em nada. Havia outros homens e mulheres vivendo na época deles, claro. A única coisa que os pesquisadores demonstram é que todos os homens vivos hoje são descendentes diretos daquele sujeito, e todos os humanos, independentemente do sexo, têm Eva como sua ancestral comum. Mas você pode ser ancestral do Adão e de uma mulher qualquer que copulou com ele há 60 mil anos. Ou pode ser da Eva e de um sapiens ordinário, cujos genes não estão em toda a humanidade hoje. Ah, claro: tem o amante aí.

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Pecado original

A prova da traição está nos genes:

Até 4% do DNA de brancos, asiáticos e indígenas é neandertal.

Só as pessoas 100% negras são 100% Homo sapiens.

O neandertal Ricardo

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Quando o homem moderno surgiu na África, os neandertais dominavam a Europa e boa parte do Oriente Médio. Para deixar o continente de origem, os sapiens teriam de passar por eles. Especula-se que tenham tentado diversas vezes antes de obter sucesso, em algum ponto entre 100 mil e 50 mil anos atrás. Dá para imaginar que não tenham sido encontros pacíficos. A maior evidência disso é que, cerca de 30 mil anos atrás, os últimos neandertais sumiram da face da Terra e foram extintos. Mas foram mesmo?

Um incrível feito científico foi concluído por um grupo alemão comandado por Svante Pääbo, do Instituto Max Planck para Antropologia Evolutiva. Coletando amostras de DNA em sítios arqueológicos, o grupo anunciou em 2010 ter sequenciado o genoma do neandertal. E a maior surpresa foi constatar que a maioria da humanidade viva hoje tem um pouquinho de neandertal. A comparação entre o genoma deles e o dos sapiens mostra que houve cruzamento entre as espécies. E ele se deu bem na época em que os humanos modernos resolveram sair da África. Como sabemos disso? Ocorre que todo mundo nascido hoje em todos os continentes tem um porcentual significativo de DNA neandertal – salvo os africanos. “Os neandertais não estão totalmente extintos. Eles continuam vivendo dentro de alguns de nós”, disse Pääbo à época do anúncio do genoma.

Ou seja: se a sua família é 100% africana, como eram o Adão e a Eva da ciência, você não tem genes de neandertal. Mas, se você tem ancestrais europeus, asiáticos ou indígenas, pode ter uma certeza: seu DNA tem um pouco desse hominídeo. Não tem jeito.

Da mesma forma que alguns genes neandertais sobrevivem, é possível que alguns costumes tenham sido transmitidos deles para seus conquistadores sapiens. Os detalhes, é claro, estão perdidos para sempre – também não dá para saber se o mais comum era um neandertal macho transar com uma sapiens fêmea ou o contrário. Mas a antropologia já evoluiu o suficiente para encontrar algumas pistas de como viviam esses caras. O que os cienistas fazem é observar os costumes de agrupamentos humanos isolados que até hoje preservam os modelos sociais mais simples que existem. São os caçadores-coletores, povos nômades que mantêm sua população sempre em pequeno número (em razão da disponibilidade de alimento). Tudo indica que Adão, Eva e seus namorados viviam como eles.

Mas descobrir que eles que passavam a existência em grupos pequenos, de mais ou menos indivíduos, estabelecidos basicamente em torno de relações familiares e de parentesco próximo, e que praticavam o nomadismo não é realmente saber muito sobre eles. Só que de acordo com o antropólogo americano Donald Brown, da Universidade da Califórnia, dá para concluir muito mais do que isso.

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Brown compilou outras características básicas que são comuns a todas as sociedades humanas. E concluiu que as primeiras tribos de todos os tempos provavelmente viviam dessa forma. De que forma?

Primeiro, de forma machista. Os equivalentes científicos de Adão e Eva, segundo Brown, viviam em sociedades dominadas pelos Adões, com as Evas em posição submissa – basicamente porque toda cultura primitiva (e mesmo as nem tão primitivas) funciona assim até hoje.

O casamento, entendido como o direito de acesso a uma mulher para fins reprodutivos, já existiria entre os membros das primeiras sociedades. E o comércio era limitado a trocas de bens e serviços. Há um senso de justiça e de punição, que vai do ostracismo à execução, para agressões como estupro, violência e assassinato. E a cultura também inclui noções do sobrenatural e de magia, que muitas vezes se misturam à medicina e a esforços para controlar o tempo.

Outra coisa curiosa é que a moda já estava na moda na época de Adão. A turma já se preocupava com a estética e produzia adereços e roupas, além de zelar por penteados diferentes. E, claro, eram exímios produtores de ferramentas básicas e armas como lanças e machados – no tempo de Eva não era bem assim: há 200 mil anos as ferramentas eram toscas, e ainda levaria mais de 100 mil anos até inventarem os primeiros adereços.

Outra teoria é que o povo de Adão falava a lendária “língua-mãe”, um idioma que teria dado origem a todos os outros conforme esses grupos foram se multiplicando e se espalhando pelo globo. Os linguistas estão tão acostumados quanto os biólogos a fazer árvores evolutivas de seus objetos de estudo. Intuitivamente, dá para perceber que muitos idiomas são aparentados com outros (basta ver a semelhança entre português e espanhol). Os especialistas pegam isso e vão bem mais longe: reconstroem a genealogia completa das línguas. No topo, dizem eles, deve haver uma só linguagem, e ela deve ter sido falada pelos primeiros humanos.

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O idioma de Adão

Independentemente da época em que surgiu, a primeira língua nasceu mesmo na África. Ou pelo menos é o que sugere uma nova análise feita por Quentin Atkinson, psicólogo da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia. Ele usou uma técnica inédita para identificar a idade das línguas: o número de fonemas presentes em cada uma delas.

Ele partiu do princípio de que, quanto mais fonemas tem um idioma, mais antigo ele é – os sons iriam se acumulando na língua ao longo dos milênios. Curiosamente, no mundo todo, os que têm mais dessas unidades sonoras básicas estão no sul da África, o continente onde a Eva mitocondrial e o Adão do cromossomo Y viveram e morreram. Bom, se é claro que os idiomas atuais do sul da África são os mais antigos, também é fato que eles provavelmente guardam pouca semelhança com a “língua-mãe” – caso realmente tenha havido uma. Se meia dúzia de séculos já muda bem uma língua (o português arcaico das cantigas de amigo está de prova, “minha senhor”), imagine quase 2 mil séculos.

Mas dá para conluir algo. Com toda a probabilidade, a língua-mãe devia ter sons como cliques (aqueles que saem quando produzimos estalos na boca), usados hoje em pouquíssimos idiomas presentes entre tribos isoladas africanas, notadamente os !Kung (a exclamação se lê como um clique) e os Hadzabe. As línguas desses povos têm pouco em comum, exceto os cliques, mas uma análise de seu DNA mitocondrial mostra que eles pertencem a duas das linhagens mais antigas da humanidade. São parentes mais próximos de Eva. Então provavelmente ela falava dando estalinhos com a boca. Além disso, os linguistas já perceberam que é raro uma língua ganhar cliques conforme evolui. Então, a preservação dos cliques nas tribos africanas só pode ser um traço da língua-mãe. Mas será mesmo? A verdade é que o desejo de conhecer nossas origens ainda vai além do que a ciência pode explicar. Mas já avançamos um bocado, e um quadro mais límpido começa a se cristalizar. Límpido, mas com detalhes picantes.


Árvore da criação

Suas células revelam a época em que o Adão e a Eva da vida real existiram

Mitocôndria

Existe um retrato da Eva da vida real dentro de você: a mitocôndria, uma bactéria que vive nas nossas células. A sua, seja você homem ou mulher, é clone daquela que viveu dentro da primeira mulher.

Eva

A mulher que é ancestral comum de todos os humanos viveu há 200 mil anos – bem a época em que o Homo sapiens surgiu, como evolução de um hominídeo mais primimitivo, o Homo heiderbergensis, que também é pai do neandertal.

Adão

O ancestral comum de todos os homens de hoje viveu bem depois de Eva, entre 90 mil e 60 mil anos atrás. Antes dele houve outros Adões, outros ancestrais comuns. Mas este cara tomou o posto de pai da humanidade.

Cromossomo Y

As pistas sobre a origem de Adão estão no cromossomo Y, que é passado intacto de pai para filho (e que as mulheres não possuem). O Y do Adão científico está hoje em todos os homens do mundo.

Para saber mais

Before the Dawn

Nicholas Wade. Penguin Books, 2006

 

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