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As primeiras formas de linguagem. Éh?

Novo livro sustenta a polêmica teoriade que a linguagem humana teve origem nos gestos e não na fala

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 31 out 2002, 22h00

Jerônimo Teixeira

Fim de noite. Com aquela generosidade que só o chope concede, você anuncia: “Hoje sou eu que pago”. O garçom está entregando um prato de fritas no outro lado do salão. Você acena para ele e em seguida sinaliza com a mão no ar, como quem escreve com uma caneta imaginária. O garçom responde com um aceno de cabeça e o polegar para cima e segue rumo ao caixa. Estamos todos entendidos: você acaba de pedir a conta. É um exemplo comum de como os gestos podem substituir a fala. Na história do gênero humano, porém, pode ter acontecido o contrário. No recém lançado From Hand to Mouth – the Origins of Language (Da Mão para Boca – As Origens da Linguagem, inédito no Brasil), Michael C. Corballis, professor de psicologia e ciências cognitivas da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, afirma que o ser humano começou a falar com as mãos.

Se sua hipótese está correta – e você vai ver a seguir que alguns cientistas já se mostram céticos a respeito –, nossos antepassados brucutus se faziam entender por meio de um misto de gestos e grunhidos e só muito gradualmente desenvolveram uma fala articulada.

“Evidências que apontam para a idéia de que a linguagem originou-se nos gestos estão se acumulando recentemente”, afirma Corballis. Tais evidências vêm das mais diversas áreas, como a lingüística, a biologia molecular, a primatologia e a neurociência. Em cada um desses campos de estudo, há um vespeiro teórico armado para o pesquisador cutucar. A polêmica começa pela própria natureza da linguagem. Para muitos lingüistas – especialmente aqueles influenciados pela obra seminal do norte-americano Noam Chomsky –, a linguagem é uma propriedade exclusiva e inata do ser humano, e será inútil tentar qualquer analogia com as formas de comunicação de outras espécies. O livro de Corballis insere-se no esforço mais ou menos recente de estudar a linguagem à luz da biologia. “Nos dias de hoje, é difícil ignorar a teoria da evolução. Isso significa que lingüistas e filósofos estão sendo obrigados a prestar mais atenção à ciência”, diz o autor.

Isso não significa que o teatro de Shakespeare ou os sonetos de Camões encontram paralelo na dança das abelhas ou no canto da cotovia. A linguagem é um salto evolucionário muito largo, e até hoje, que se saiba, só o Homo sapiens não tropeçou nesse passo (cientistas ainda discutem se o neandertal teria ou não um aparelho vocal que permitisse fala articulada). Especialistas têm catalogado os gestos e as vocalizações de outros primatas, mas os resultados são relativamente pobres. Uma certa espécie de macaco tem gritos específicos, de acordo com o predador potencial que esteja se aproximando. Há um para cobra, outros para leopardo, falcão etc. Isso parece sugerir uma propriedade lingüística: a capacidade de referir objetos. Nossa habilidade referencial, no entanto, é bem mais sofisticada. Somente o ser humano é capaz de referir objetos ausentes. O leitor que leu a palavra “macaco” neste texto imediatamente soube do que se tratava, ainda que não encontre nenhum por perto.

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Os macacos só dão o berro de “leopardo” na presença do felino.

Os animais não mostram aptidão para o que os especialistas chamam teoria da mente – a capacidade de se colocar no lugar de outro. Um chimpanzé consegue no máximo notar que alguém o está observando. A complexidade dessas construções mentais exigiria a elaboração de orações subordinadas. Coisa de que somente o ser humano é capaz. Os animais simplesmente não conhecem gramática. Nem o mais avançado aluno peludo pode superar uma criança humana. Estamos falando de Kanzi, um chimpanzé criado em cativeiro pela pesquisadora Sue Savage-Rumbaugh, da Universidade do Estado da Geórgia, em Atlanta, nos Estados Unidos. Com a ajuda de um teclado especial, Kanzi aprendeu um vocabulário básico de 256 símbolos que representam ações e objetos (substantivos e verbos). Ele entende e produz “frases” novas, mas sempre no padrão de objeto-ação. Uma declaração típica sua seria algo como “esconder amendoim” ou “pegar banana”.

Sue acredita que as habilidades comunicativas de Kanzi demonstram a existência de uma gramática básica, constituída por umas poucas regras simples. A ordem das palavras, por exemplo, parece seguir sempre o modelo sujeito-verbo-objeto (o qual, vale lembrar, não é comum a todas as línguas: em alemão e japonês, entre outros idiomas, o verbo costuma aparecer no fim). Na opinião de Corballis, Kanzi não ultrapassou o nível de uma protolinguagem. Esse termo foi cunhado pelo lingüista Derek Bickerton, da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, para designar formas de comunicação que apresentam pelo menos uma sintaxe primitiva. A protolinguagem está alguns passos adiante dos gritos e gestos que os chimpanzés apresentam no seu hábitat natural. Com seus poucos símbolos, Kanzi é capaz de produzir afirmações originais, criando combinações que não lhe foram ensinadas. Mas sua gramática – se é que ela existe – é muito rudimentar.

Não convém subestimar os macacos, no entanto. Foram eles que forneceram a Corballis uma das evidências de que a origem gestual da linguagem é plausível. Para que a linguagem seja compreendida, necessitamos de mecanismos de mapeamento mental que nos permitam reconhecer determinadas ações do nosso interlocutor como iguais às nossas. Na fala, por exemplo, precisamos compreender que as palavras que usamos são as mesmas do nosso interlocutor. O estudo das atividades cerebrais dos macacos mostrou indícios desse mecanismo. Certos neurônios reagem do mesmo modo quando o macaco agarra determinado objeto e quando vê um humano agarrar o objeto. Ou seja, essas células nervosas respondem de forma igual à ação e à percepção da ação. Por isso são conhecidas como neurônios-espelho.

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Esses neurônios encontram-se em uma área frontal nos dois lados do córtex cerebral dos macacos. No cérebro humano, são encontrados apenas no lóbulo esquerdo, próximos à chamada área de Broca, que está envolvida (embora não se saiba ainda em que extensão) na produção de linguagem. Corballis nota que os neurônios-espelho dos macacos respondem a gestos, não a estímulos auditivos – o que ele interpreta como uma evidência da origem gestual da linguagem. Este é um ponto controverso da tese. Resenhando From Hand to Mouth para a revista Nature, Michael Tomasello, professor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, flagrou uma certa parcialidade na argumentação de Corballis. Ocorre que, ao lado dos neurônios-espelho, os macacos talvez ainda tenham o que se poderia chamar de neurônios-eco, que respondem do mesmo modo à emissão e à percepção de estímulos vocais. Neurônios desse tipo ainda não foram de fato encontrados.

Mas Tomasello alega que a razão disso é provavelmente muito simples: até agora, nenhum cientista procurou por eles.

A linguagem de sinais empregada pelos surdos fornece outro argumento forte para Corballis. Por muito tempo, as linguagens de sinais estiveram cercadas de preconceito. Em 1880, um congresso internacional de educação de surdos realizado em Milão baniu o uso de sinais na sala de aula. Em muitos países, a proibição durou quase um século, com conseqüências desastrosas para a educação dos surdos. Estudos lingüísticos mais recentes provaram que as linguagens de sinais não são menos expressivas do que a fala. São sistemas de comunicação complexos, dotados de uma sintaxe sofisticada e capazes de elaborar os conceitos mais abstratos.

O dado mais relevante é que a área de Broca parece desempenhar as mesmas funções na linguagem falada e na linguagem de sinais. A abordagem de Corballis privilegia a linguagem como uma função especializada do cérebro, centrada no lóbulo esquerdo. Um dos capítulos mais interessantes de seu livro é dedicado a explicar por que o nosso cérebro é assimétrico ou lateralizado – isto é, por que existem funções específicas para cada lóbulo cerebral (linguagem no lado esquerdo; percepção espacial no direito). “Corballis coloca muita ênfase na lateralização do cérebro, o que não é um sinal de linguagem. Até mesmo as rãs, por exemplo, têm cérebros lateralizados que controlam suas vocalizações”, ataca Philip Lieberman, professor de ciências cognitivas e lingüísticas da Universidade de Brown, Estados Unidos. Lieberman também contesta que a área de Broca seja de fato o centro da linguagem.

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Estudos mais recentes demonstrariam que a linguagem envolve muitas áreas do cérebro, algumas inclusive abaixo do córtex, em centros nervosos responsáveis também por funções motoras.

Lieberman é um opositor categórico da hipótese de uma origem gestual da linguagem. “Há afinidades claras entre as comunicações verbais do ser humano e as de outras espécies”, argumenta. Ele é autor de Eve Spoke – Human Language and Human Evolution (Eva Falou – Linguagem e Evolução Humana, também inédito no Brasil), obra em que a emergência da fala aparece sincronizada com o surgimento do Homo sapiens na África, há cerca de 150 mil anos. Na visão de Corballis, o surgimento da linguagem é ao mesmo tempo jogado milhares de anos para frente e milhões para trás. As primeiras formas de linguagem ou protolinguagem – eminentemente gestuais, mas já pontuadas pela vocalização – teriam aparecido há cerca de 2 milhões de anos, talvez já com o Homo rudolfensis, o primeiro membro do gênero humano. O pleno desenvolvimento da linguagem falada, no entanto, só teria se dado há cerca de 50 mil anos.

Em seus primeiros 100 mil anos sobre a Terra, o homem ainda teria se valido principalmente das mãos e das expressões faciais para comunicar-se – com alguns grunhidos eventuais.

Acredita-se que a grande expansão do gênero humano da África para o resto do mundo começou há 50 mil anos. Há evidências fósseis de migrações anteriores, porém esses primeiros aventureiros parecem ter sumido sem deixar descendentes. Há 40 mil anos teria acontecido uma espécie de explosão evolutiva. O homem teria começado a fabricar utensílios sofisticados. Surgem também mostras de pensamento simbólico – pinturas nas cavernas, por exemplo. Corballis crê que esse progresso foi propiciado pela fala. Uma vez que as mãos estavam livres das funções de comunicação, puderam caprichar na manufatura de objetos. A fala permitiu, ainda, que os conhecimentos acumulados fossem transmitidos a seus descendentes. A fala teria dado ao Homo sapiens grandes vantagens tecnológicas sobre outros hominídeos, como os neandertais que habitavam a Europa e foram extintos há 30 mil anos. Não é à toa que hoje somos os únicos remanescentes do gênero Homo.

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No livro de Corballis, a linguagem não é apresentada como o passo final de uma tendência evolucionária, mas como uma invenção que o homem foi aprimorando ao longo de sucessivas gerações, tal como ocorreria bem mais tarde com a escrita. O autor está hoje atualizando essa tese à luz de novas descobertas. O livro já estava escrito quando foi publicada uma pesquisa revelando uma mutação em humanos, ocorrida nos últimos 100 mil anos. A mudança atingiu um gene que atende pelo simpático nome de FOXP2 e que está envolvido na nossa articulação vocal. Daria quase para publicar uma errata no livro: onde se lia “invenção”, leia-se “mutação”. “A mutação do FOXP2 certamente não foi o único evento que nos legou a fala”, afirma Corballis. O desenvolvimento do nosso aparelho vocal, por exemplo, foi resultado de uma evolução de longo curso, e não de uma mutação única. Corballis acredita que a mutação no FOXP2 apenas deu a vitória final à fala, que a partir de então estabeleceu-se como meio de comunicação dominante.

“A linguagem em si é muito complexa para ter emergido somente nos últimos 100 mil anos. Portanto, devem ter existido formas de linguagem que não dependiam puramente da vocalização, e é difícil pensar em outras modalidades além dos gestos manuais e faciais”, afirma. Não seria exato, portanto, dizer que a linguagem falada substituiu a gestual. Ela apenas se tornou predominante. Além disso, os gestos não desapareceram por completo. Continuamos a gesticular enquanto falamos – e o engraçado é que fazemos isso até no telefone, apesar de nosso interlocutor não nos enxergar.

A tese de Corballis é instigante, mas, como já se viu, controversa. Seu livro cobre um espectro muito amplo de disciplinas científicas e assim abre a guarda para receber críticas de todos os lados. Em uma resenha no Journal of Linguistics da Universidade de Edimburgo, na Escócia, James R. Hurford, especialista em evolução da linguagem daquela instituição, criticou Corballis por dar muito crédito às teorias de Merrit Ruhlen, lingüista da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, que afirma ser possível reconstituir palavras de nossa primeira língua falada com base nos idiomas existentes hoje. Parece que Ruhlen não é levado muito a sério pelos demais lingüistas. Tomasello aponta algumas imprecisões na descrição que Corballis faz do repertório gestual dos chimpanzés. E Lieberman, como se vê, ataca Corballis no seu próprio campo, a neurociência.

“Há várias afirmações de Corballis que eu acho demasiado pertinentes, incluindo a sua ênfase na lateralização das funções do cérebro”, afirma Terrence Deacon, professor de antropologia e neurociência na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Por outro lado, Deacon revela seu desapontamento com algumas lacunas de From hand to mouth. Faltariam, por exemplo, considerações mais detalhadas sobre a semiótica (estudo da significação) dos gestos. Aliás, Deacon considera que as linguagens de sinais existentes hoje não servem como modelo para especular que formas de comunicação nossos antepassados remotos teriam.

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O curioso é que Corballis cita uma obra de Deacon, The Symbolic Species (A Espécie Simbólica, ainda sem versão em português), como inspiradora da teoria gestual. De fato, Deacon jamais se une a Lieberman na crítica feroz a essa idéia. Ele acha plausível que hominídeos primitivos tenham usado gestos para se comunicar. O problema é que, ao contrário do que Corballis sugere, essa teoria não mata a charada. “A hipótese gestual nem remotamente explica as origens da linguagem, por que ela evoluiu, ou o que conduziu essa evolução. Ela simplesmente reconhece que o gesto é uma das características da linguagem que precisam ser consideradas”, diz Deacon.

Frases

A linguagem é um salto evolucionário muito largo que até hoje só o Homo sapiens conseguiu realizar. Outros primatas têm algumas propriedades lingüísticas – todas muito menos sofisticadas do que as do homem

Para saber mais

Na livraria

From Hand to Mouth – The Orings of Language, Michael C. Corballis, Princeton University Press, 2002

Eve Spoke; Human Language and Human Evolution, Philip Lieberman, Norton, 1998

Human Language and our Reptilian Brain, de Philip Lieberman, Harvard University Press, 2000

The Symbolic Species, Terrence Deacon, Norton, 1997

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