Astrologia:escrito nas estrelas
Houve um tempo em que todo bom cientista sabia fazer um mapa astral. Este é o relato de como a astrologia foi decisiva para a origem da ciência moderna.
Texto Reinaldo José Lopes
Tycho Brahe era uma figuraça, não há a menor dúvida. O nobre dinamarquês foi provavelmente o primeiro e único astrônomo do mundo a ostentar um nariz postiço de metal (o de verdade foi decepado durante um duelo) e a ter seu próprio bobo da corte, um anão chamado Jeppe. Brahe bateu as botas no outono de 1601, depois de literalmente estourar a própria bexiga – não quis ofender o anfitrião da festa em que estava e se recusou a se levantar da mesa para ir ao banheiro. Seu discípulo Johannes Kepler anotou meticulosamente a posição da Lua, de Saturno e de Marte no momento da morte e confirmou que, segundo os astros, a hora de Brahe tinha chegado mesmo.
Tudo isso não passaria de esquisitices do Renascimentonão fosse pelo fato de que a dobradinha Brahe-Kepler ajudou a fundar a ciência moderna, ao lado de sujeitos como Galileu Galilei e, mais tarde, Isaac Newton. As medições realizadas no nababesco observatório de Brahe, numa ilha do mar Báltico com instalações subterrâneas e instrumentos gigantes que permitiam observações com precisão inédita, fizeram com que Kepler desvendasse o movimento dos planetas do sistema solar e abrisse caminho para a compreensão da lei da gravidade. Ambos acreditavam piamente na conexão entre a ordem do Universo e a vida humana. E garantiam que o melhor jeito de encontrá-la era traçar um mapa astral.
É isso mesmo que você acaba de ler: embora a ciência hoje seja uma inimiga feroz da astrologia, questionando seus princípios, ela tem uma dívida um bocado grande com a arte de ler os desígnios dos astros. Por séculos, os sujeitos que tentavam entender a ordem do Cosmos eram os mesmos que recebiam gordas recompensas para contar aos poderosos o que o futuro reservava – e não pense que eles faziam isso só para descolar um extra no fim do mês. Conheça a história de como a astrologia fez o conhecimento científico avançar – e de como as duas coisas terminaram por se separar, provavelmente sem chance de reconciliação.
Um céu cheio de estrelas
De uma coisa pouca gente duvida: conhecimentos básicos sobre o movimento dos astros no céu são patrimônio da humanidade desde que o mundo é mundo. Monumentos pré-históricos que dão testemunho desse conhecimento aparecem no planeta todo, e ninguém nunca precisou de tecnologia avançada – aliás, de tecnologia nenhuma – para entender o traçado aparente do Sol, da Lua, dos planetas e das estrelas. “Tais conhecimentos vêm da observação da natureza, e qualquer caçador-coletor é capaz de obtê-los”, diz o arqueólogo Eduardo Góes Neves, da USP.
Entre as evidências mais antigas desse saber estaria uma estatueta de marfim de mamute, achada na atual Alemanha e com mais de 30 mil anos de idade.
Segundo o alemão Michael Rappenglück, especialista em arqueoastronomia (os conhecimentos astronômicos dos povos antigos), a estatueta, com forma humana estilizada e cabeça de leão, seria uma das representações mais antigas da constelação de Órion.
Certo ou errado, Rappenglück provavelmente tem razão em apontar que as constelações são reconhecidas como tais há vários milhares de anos. Quase tão antiga quanto esse conhecimento é a percepção de que o Sol traça um caminho (que hoje sabemos ser apenas aparente, pois quem se move é a Terra) pelo céu ao longo do ano, e que esse trajeto determina as estações do ano; e que algumas “estrelas” – chamadas hoje de planetas – se movimentam também pela abóbada celeste, enquanto outras permanecem (aparentemente) paradas ali o tempo todo. Monumentos do Neolítico, com idade entre 5 mil e 10 mil anos, deixam claro que já se sabia calcular momentos como o solstício de inverno, a data usada hoje para marcar o início dessa estação e que define o momento em que um dos hemisférios da Terra recebe menos luz solar durante o ano.
Ao juntar o conhecimento sobre as constelações com o caminho que o Sol, a Lua e os planetas descrevem no céu, os povos antigos passaram a contar com um verdadeiro relógio cósmico, que os ajudava a prever mudanças relevantes no clima e na natureza. Isso se tornou ainda mais importante com o avanço da agricultura, porque o único jeito de plantar e colher no tempo certo era seguir os sinais do céu. É claro que não dá para afirmar nada sobre isso com certeza (afinal, tais fatos aconteceram milhares de anos antes que a história começasse a ser registrada em forma escrita), mas é bastante possível que a mente dos povos antigos tenha saltado da conexão entre os acontecimentos celestes e os ciclos da natureza para uma relação direta entre os astros e a história de cada ser humano.
Coincidência ou não, parece ter sido na Mesopotâmia, o mais antigo berço da agricultura, que a idéia do que hoje chamamos de astrologia tomou corpo. Cerca de 1 000 anos antes de Cristo – no mínimo -, povos como babilônios e assírios já sabiam prever com precisão eclipses do Sol e da Lua. E iam além disso. Nas tabuletas de argila usadas como livros por esses povos do atual Iraque, arqueólogos encontraram predições que associavam as mudanças no céu a calamidades na Terra: “Quando Júpiter estiver na frente de Marte, haverá trigo nos campos e homens serão mortos… quando Marte se aproximar de Júpiter, haverá grande devastação… naquele ano o rei de Akkad morrerá”, e por aí vão os registros. É dessa região que vem o mais antigo mapa astral traçado para o nascimento de alguém, uma criança que veio ao mundo ao sul da atual Bagdá em 29 de abril do ano 410 a.C. – o calendário na Babilônia já era solar, o que permitiu aos pesquisadores calcular com exatidão a data do nascimento.
Pouco a pouco, essas observações e predições relativamente simples foram dando lugar a um sistema padronizado, que dividia o céu em 12 casas, correspondentes aos 12 signos do zodíaco ainda usados hoje. Como o próprio Kepler explicaria mais tarde: “Os fazendeiros precisavam buscar seu calendário no céu. Quando a Lua estava cheia, eles podiam ver, por exemplo, que a primeira lua cheia aparecia nos chifres de Áries, a segunda perto das Plêiades, a terceira perto de Gêmeos etc., e que finalmente a 13ª aparecia de novo na primeira constelação”. Esse primeiro calendário, lunar, foi unido à trajetória do Sol para criar a primeira versão da folhinha de 365 dias que ainda utilizamos.
Os conhecimentos mesopotâmicos não demoraram a se espalhar. Para o oeste, eles chegaram até o Egito e a Grécia; para leste, foram abraçados pelos persas, lar da casta dos magos, a classe de sacerdotes envolvida no estudo da astrologia que daria origem à história dos Reis Magos. No século 4 a.C., boa parte dessas terras, das cidades-Estado gregas às fronteiras da Índia, foram anexadas ao império de Alexandre, o Grande, criando um ambiente propício para que o conhecimento astrológico (e astronômico) se tornasse unificado e padronizado.
A adoção do grego como língua oficial da ciência e da cultura só fez impulsionar o intercâmbio entre estudiosos dos astros. E quando Roma chegou ao poder, o conhecimento astrológico foi abraçado com entusiasmo por seus poderosos nobres. Consta que vários imperadores romanos não davam um passo sem consultar seu astrônomo particular. Adriano, cujo reinado terminou no ano 138, teria feito predições para si mesmo todo santo ano.
Foi por volta da mesma época que um egípcio de fala grega, Cláudio Ptolomeu, desenvolveu a tese de que o Universo era ordenado por um modelo geocêntrico, no qual o Sol, a Lua e todos os demais planetas giravam em torno da Terra. Foi a primeira vez que alguém tentou explicar de forma coerente a mecânica do Cosmos. Estava tudo errado, claro, mas para o que se sabia na época ele até que se saiu razoavelmente bem. O trabalho ficou conhecido pelo nome árabe de Almagesto.
A cara-metade do Almagesto, por assim dizer, era o chamado Tetrabiblos.(“4 livros”, em grego). Enquanto o primeiro descrevia o movimento dos planetas, o segundo era um guia de como interpretá-los, explicando todas as regras básicas do trabalho astrológico – de como traçar um mapa astral até um método para determinar a duração da vida de uma pessoa no nascimento. Nos séculos seguintes, o Tetrabiblos passaria a ser o guia-padrão para qualquer astrólogo que se prezasse.
Por volta dessa época, também, Ptolomeu e outros astrólogos proeminentes estabeleceram a divisão da astrologia em 4 ramos principais. A divisão tentava cobrir todos os ramos da atividade humana de forma completa e adequada. Assim, surgiram a área mundana (ligada à sociedade como um todo, prevendo coisas como clima, colheitas, guerras e política); natal, baseada na data de nascimento de alguém (ou de alguma coisa, como a fundação de uma sociedade); horária, na qual um mapa astral é traçado com base na hora em que uma questão foi feita ao astrólogo; e eletiva, cujo propósito é escolher (ou eleger, como diz o nome) o melhor momento para se fazer alguma coisa.
A estrela islâmica
A queda de Roma acabou levando a uma diminuição do conhecimento astrológico na região durante os primeiros séculos da Idade Média. A prática da arte exigia um grau de educação formal e sofisticação tecnológica que sumiu junto com o domínio romano. Mas o surgimento do islã como nova potência mundial ajudou a preencher esse vácuo.
Com a conquista das regiões de influência persa e grega, a partir do século 7, os seguidores de Maomé traduziram para o árabe todas as principais obras ligadas à astrologia e às demais ciências da época. E, em muitos casos, ainda ampliaram esse conhecimento. Os árabes usaram a astrologia como base para avanços na matemática e na ótica, por exemplo. Quando as cruzadas colocaram em contato os mundos islâmico e cristão, as obras em árabe, traduzidas, impulsionaram avanços das ciências e das artes. A alquimia, “mãe” da química moderna, também tomou impulso com o conhecimento astrológico, porque considerava-se que os materiais alquímicos eram influenciados por princípios dos astros – acreditava-se que metais eram ligados a planetas, por exemplo.
O ápice desse processo de desenvolvimento do conhecimento e das artes passaria a ser conhecido como Renascimento, e algumas das principais figuras da ciência renascentista eram praticantes da astrologia. É o caso do italiano Girolamo Cardano, nascido em 1501. Seu trabalho matemático ajudou a fundar a álgebra moderna, e Cardano também estava à frente de seu tempo como médico, ao insistir que a higiene no quarto e na alimentação do doente eram essenciais para a cura – coisa óbvia agora, mas que nenhum médico medieval costumava levar em conta. Tabelas e mapas planetários produzidos por astrólogos-matemáticos guiaram a viagem de Colombo para a América em 1492, e o astrólogo Rui Faleiro ajudou Fernão de Magalhães a planejar a primeira expedição marítima a dar a volta ao mundo, que partiu em 1519 da Espanha.
Esses avanços vinham justamente quando o sistema cósmico elaborado por Ptolomeu – Terra no centro, planetas em volta – começava a desmoronar. O religioso polonês Nicolau Copérnico deflagrou a mudança ao propor que, na verdade, o centro do Universo era o Sol. Por ser contrária ao que a Bíblia parecia afirmar, a tese foi condenada pela Igreja.
Foi nesse contexto que Tycho Brahe, filho de um lorde e de uma condessa dinamarqueses, começou a atuar. Brahe conseguiu observar uma “estrela nova” (que hoje sabemos ser o resultado da explosão que marca a morte de uma estrela distante, aumentando muito seu brilho) e mostrar que ela estava acontecendo a uma imensa distância da Terra. Isso sugeria que a chamada região das estrelas fixas, supostamente imutável segundo a doutrina de Ptolomeu, não era tão imutável assim. Brahe foi além: tentou conciliar o sistema de Copérnico e o ptolomaico ao criar um modelo em que o Sol e a Lua giravam ao redor da Terra, enquanto os demais planetas circundavam o Sol.
Com o apoio do rei da Dinamarca, Frederico 2º, Brahe construiu um observatório na ilha de Hven, tão gigantesco que passou a ser conhecido como Uraniborg, “fortaleza do céu”. Lá, Brahe e seus discípulos usaram os melhores instrumentos da época (antes da invenção do telescópio, é bom lembrar) para realizar observações extremamente precisas e abrangentes. Ao mesmo tempo, Brahe professava sua crença na tradição astrológica e fez um mapa astral detalhado do príncipe-herdeiro dinamarquês, Cristiano 4º. Ele só parece não ter previsto que Cristiano retiraria o apoio real a suas pesquisas quando chegasse ao poder. Por sorte, a fama de Brahe lhe granjeou o posto de matemático do imperador germânico Rodolfo 2º. Por conta do novo posto, ele se mudou para perto de Praga, onde morreu depois da bebedeira que mencionamos no começo desta reportagem.
O alemão Kepler herdou o posto do mestre, e não ficou devendo em nada a ele. Usou os dados obtidos em Uraniborg para confirmar que o modelo de Copérnico (e não o meio-termo de seu mestre) era o correto, e também para mostrar que as órbitas dos planetas do sistema solar não eram círculos, formas consideradas “perfeitas” no sistema ptolomaico, mas elipses – círculos “espichados” ou ovalados, digamos. Kepler também jurava de pés juntos que a astrologia era uma forma “divina” de conhecimento, e diz-se que ele teria previsto a própria morte, em 1630.
Em certo sentido, a carreira de Kepler marcou tanto a ascensão quanto o começo da queda do prestígio científico da astrologia. A vitória do modelo de Copérnico teve muito a ver com isso: ao tirar a Terra do centro das coisas, ele ajudou a tornar menos plausível a idéia de que a vida humana do dia-a-dia é influenciada pelos acontecimentos celestes. Conforme o conhecimento astronômico avançava, ficava cada vez mais claro que o Cosmos era imensamente vasto, e que o Sol e seus planetas não passavam de um cantinho insignificante de uma galáxia como qualquer outra Universo afora. Ou que, embora pareçam alinhadas se vistas da Terra, as constelações não são formações naturais. No espaço, as estrelas que formam Libra ou Aquário ocupam posições sem qualquer relação. Até onde sabemos, fora as influências óbvias do Sol e da Lua, astros têm pouco ou nada a ver com o dia-a-dia da Terra. Mas, sem a idéia de que isso poderia acontecer, talvez nunca tivéssemos chegado a um conhecimento mais claro da imensidão lá fora.
Seu futuro no jornal
Se hoje todo mundo consegue dizer se é de Libra ou Escorpião, deve-se agradecer ao britânico William Allen – aliás, Alan Leo, ou “Alan de Leão”, nome que ele assumiu de acordo com o seu signo solar. Nascido em 1860, Leo foi um dos pioneiros da astrologia para as massas, fundando uma revista batizada de Modern Astrology e popularizando a idéia de que o local ocupado pelo Sol no zodíaco durante o nascimento da pessoa era a principal influência sobre o seu destino e, principalmente, o seu caráter. Para Leo, o Sol era o “princípio universal”, a “fonte primal da existência”. A tese é bastante diferente da longa tradição astronômica desde Ptolomeu, que sempre viu o Sol como apenas mais uma energia planetária, que influenciava as demais, mas também sofria influências poderosas delas. Seja lá como for,a idéia de Leo rendeu um bocado, graças principalmente à oferta de horóscopo por apenas um xelim (subdivisão hoje obsoleta que equivalia a um vigésimoda libra britânica). Ele fundou um curso de astrologia por correspondência, abriu uma editora e montou filiais em Paris e Nova York.Quem seguiu os passos de Leo com sucesso estrondoso foi a americana Evangeline Adams. Dizendo-se descendente de John Quincy Adams, um dos primeiros presidentes dos EUA, a astróloga oferecia seus serviços para uma variada clientela, até ser presa por charlatanismo, em 1914. Adams não se intimidou: no julgamento, convenceu o juiz de que a astrologia era uma ciência séria. Absolvida, tornou-se a primeira astróloga a ter programa de rádio em 1930, além de lançar uma autobiografia e 3 guias astrológicos paraleigos. Seus clientes incluíam o rei inglês Eduardo 7º e o ator Charles Chaplin.
Sábios do Oriente
Enquanto mesopotâmicos, árabes e europeus transformavam a astrologia em arte elaborada, outras tradições tão ou mais antigas de leitura dos astros lançavam raízes na China. Há indícios de que a astrologia tenha se desenvolvido por lá antes do ano 2000 a.C. Curiosamente, as bases eram parecidas com a da astrologia mesopotâmica: um calendário anual que incorporava conhecimentos sobre as constelações. Chineses também desenvolveram um sistema que previa o destino de uma pessoa com base na data de nascimento – algo como um mapa astral. No lugar das 12 constelações do zodíaco ocidental, havia um ciclo de 12 anos, cada um correspondente a um animal – hoje conhecido como horóscopo chinês. Na sociedade centralizada da China, astrólogos eram funcionários públicos, subordinados diretamente ao imperador. Previsões consideradas subversivas – golpes de Estado ou doenças na família real – eram proibidas. Nos relatos do viajante italiano Marco Polo, do século 13, é mencionada a existência de 5 mil astrólogos na corte do imperador de origem mongol Kublai Khan. Outro europeu, o jesuíta Matteo Ricci, visitou Pequim em 1583 e relatou que era um crime capital estudar astrologia sem autorização do soberano chinês.
Para saber mais
A Bruxa de Kepler, James A. Connor, Rocco, 2005
The Fated Sky, Benson Bobrick, Simon & Schuster, EUA, 2005
Heavenly Intrigue, Joshua Gilder e Anne-Lee Gilder, Anchor Books, EUA, 2005
Rumo ao Infinito, Salvador Nogueira, Globo, 2005